No livro do meu querido amigo e mestre Manuel Alegre, Alma é Águeda. Para nós que fomos da Águeda do rio, do adro, da Venda Nova, da Rua de Cima e da Rua de Baixo, do campo dos ciganos e do Botaréu, Águeda será sempre alma. A alma da gente. Passar-se-ão os anos, as décadas, morreremos todos tal como Alma/Águeda também morreu aos poucos devorada pelo cimento, pelo betão, pela estupidez e pela ganância de aqueles que a governaram. Não vale sequer a pena tentarem erguer a voz em sua defesa.
São culpados! Continuam a ser culpados! Mataram a Águeda-a-Linda do Júlio Portela, mataram a Águeda da nossa memória, deixaram ficar as ruínas das nossas lembranças impossíveis. Volto ao Alma: «À mesma hora, o Beira-Rio jogava com a Vista Alegre. (…) E por nada deste mundo, muito menos por causa de um comício, eu estava disposto a perder o jogo no velho campo de São Cristóvão». O Beira-Rio era o Recreio. Ninguém em Águeda chama o Recreio de Águeda de Águeda. É o Recreio e ponto.
O Campo de São_Cristóvão era o Campo de São Sebastião, nas traseiras da capela do mesmo nome. Um campo de terra batida, bancadas de madeira, um retângulo de lousa para se jogar basquetebol por detrás da baliza do lado leste. O Campo de São Sebastião também desapareceu. Ergueu-se o edifício horrendo da câmara, um bloco cinzento sem janelas, e depois a Rua Eugénio Ribeiro que pretendia ser o novo centro de Águeda e talvez até seja mas sem o encanto das esplanadas do Café Moderno e do Zip Zip, da Praça Vermelha, onde se juntava a malta de esquerda, e do Cais das Laranjeiras, onde se estacionavam os batéis que subiam o rio em busca dos achigãs e até, diz-se, de lampreias.
O Campo de São Sebastião pertencia ao meu bisavô Afonso. No tempo do meu bisavô Afonso havia uma frase que muitos repetiam com orgulho: «Águeda é o Mundo!». E até certo ponto era verdade. O Recreio nunca pagou um tostão para usar o Campo de São Sebastião: o meu bisavô Afonso também gostava de dizer – «Para Águeda, e para quem é de Águeda, dou tudo e não quero nada em troca». As pessoas não sabem. Quase ninguém em Águeda conhece a história de Águeda._
Quando o Rui Anjos (para nós o Mónica), presidente do Recreio, me convidou para um Recreio-Académica, agora já no Municipal, no Redolho, porque decidira que antes do jogo que se faria um minuto de silêncio em honra do meu pai, que morrera uns dias antes, houve um mamífero a meu lado que bufou: «Mas o que é que este gajo fez pelo Recreio?». Águeda é assim. Ou melhor, a gente de Águeda é assim: ignorante e ingrata. Pouco importa. Vendo bem, Águeda há muito que deixou de ser Águeda. É, de certa forma, uma metáfora. Uma metáfora de velhas camaradagens e saudades por doer. Como o Recreio.
Dos manos Brincoao Hernâni…
À volta do Campo de São Sebastião havia tapumes de madeira e o Recreio disputou nele os jogos mais históricos da sua vida exceto um. Nestas coisas de jogos históricos, a memória tem uma importância fundamental: quanto menos a gente se lembra deles, mais históricos são. Não há jogos históricos sem imaginação e um ou outro pormenor impossível de confirmar que possam motivar discussões vitalícias. Não é segredo para ninguém: a memória é a maior inimiga da imaginação. Nenhum golo é tão bonito como aquele do qual não há quem se lembre, mas do qual toda a gente finge lembrar-se no momento em que alguém se decide descrevê-lo. A bola caindo na entrada da área, o Fanfas chutando de primeira, as redes da baliza do lado da capela abanando de alegria… São poucos os que se atrevem a discutir um golo inventado. E quando o discutem tornam-no verdadeiro: isto é, mais histórico.
Na exceção dos jogos históricos do Campo de S. Sebastião, há o Recreio-Benfica já na beira rio, junto às Lavadeiras e ao Fojo. Nessa tarde foi tanta gente ao Municipal que o público se esticou até às linhas laterais e eram guardas republicanos a cavalo que vigiavam os fiscais de linha. A malta gritava, irritada: «Tira o cavalo da frente!». Na exceção dos jogos históricos do Campo de S. Sebastião passou, depois, a existir outro: aquele em que pela primeira vez a Seleção Nacional jogou em Águeda. Na altura, eu era o responsável pela comunicação da seleção e chateei toda a gente que mandava, presidente da Federação e tudo e tudo. Águeda! Era em Águeda que Portugal precisava de jogar um dos últimos encontros de preparação para o Euro-2004. E jogou. Contra o Luxemburgo. Foi também uma homenagem.
Ao Manuel Alegre, ao meu pai, àqueles que, em miúdos, ouviam os jogos da equipa nacional pela rádio e não se esqueceram mais da frase derrotista de uma época em que tudo era a branco e preto neste pedaço de areia que o Atlântico vem beijar mas não abraça: «Portugal ataca; a Espanha marca!». Quando os manos Brinco, que eram três, vestiam a camisola grená do Recreio, não passava pela cabeça de quem quer que fosse a ideia de a seleção jogar em Águeda. No tempo do Hernâni, que foi o único jogador de Águeda a vestir a camisola da Seleção Nacional, também jamais se pensou que a seleção pudesse jogar em Águeda. E, no entanto, ela jogou: num sábado, sábado, dia 29 de maio. Para muitos de nós, Águeda continua a ser o Mundo, nem que seja apenas de vez em quando. E até agora ninguém nos desmentiu.
O Recreio de Águeda nasceu em 1924 como uma excrescência da famosa fábrica de louças do Outeiro e, por isso, começou por chamar-se Club Artístico Recreativo e Cultural. Depois passou a ser só Recreio e esteve em riscos de acabar. Aguentou-se. À custa de gente de bem que desprezou a hipótese de não pagar as dívidas como alguns cobardes ameaçavam. Joga nas profundezas das divisões secundárias mas isso não lhe retira a nobreza. A rapaziada do meu tempo conheceu o adepto mais ferrenho do Recreio: subia ao seu trono de águas-furtadas e, lá de cima, equipado a rigor, com a camisola grená e o calção azul, ladrava um discurso orgulhoso de amor ao clube e esperança renovada num futuro de glórias imarcescíveis. Era o cão do Jorginho dos viewmasters. Soube o nome de muitos cães de Águeda, do Tom Mix ao Avenidas, mas não me recordo do nome do cão do Jorginho dos viewmasters que era gordo, de cara muito vermelha, e em julho e agosto, na Praia da Barra, andava a vender aqueles discos de imagens que enfiávamos numa maquineta precária e nos dava o fascínio das imagens a três dimensões. Pouco importa. Ficará para sempre na sua janela minúscula da Venda Nova. Vestia a camisola grená e o emblema em brasão, a bola de futebol castanha de travessas no centro, a cruzeta branca e azul, as letras em redor e ladrava: Recreio Desportivo de Águeda!