Jon Fosse vence o Prémio Nobel da Literatura de 2023

Jon Fosse vence o Prémio Nobel da Literatura de 2023


Com a subtil oração da sua prosa minimalista, este prolífico autor norueguês, descrito como um realista místico, consegue cativar a Academia Sueca que reconhece no morse obstinado da sua escrita a capacidade de dar voz ao indizível.


É com um entusiasmo e uma expectativa artificiais que a cada ano é aguardado o anúncio do Prémio Nobel da Literatura. Há muito que essa escolha não promete nada de mais incitante, nenhuma revelação que perturbe a nossa compreensão do mundo ou do nosso lugar nele. Na passagem do duradouro para o caduco, do estável para o efémero, de algum modo vimo-nos destituídos de uma consciência da dimensão histórica do momento actual. Submergidos em aparências e simulacros, tudo são anúncios vazios, manias disparatadas, unguentos miraculosos, mansos delírios, cómicas ficções, paixões excêntricas, uma série de aspectos um tanto aleatórios e que caracterizam este regime ostentatório que, afinal, aponta para uma experiência empobrecida da realidade. Como nos diz Claudio Magris, oferecendo-nos uma chave para a compreensão deste tempo, “na globalização toda a identidade se sente ameaçada, com o temor de se dissolver e desaparecer, e então exaspera a sua particularidade, faz dela uma diferença absoluta e selvagem, um ídolo – que, como todos os ídolos, impele facilmente à violência e ao sacrifício de sangue”. Do outro lado desses efeitos, a maior devastação é a indiferença, aquela que logo subjaz ao excesso de estímulos.

O Nobel é apenas outro dos sinais que se articulam ruidosamente na selva publicitária em que vivemos. Convém até abandonar um autor no momento em que todos parecem descobri-lo com tamanha efusividade. A literatura não suporta esse estado de embevecimento do público consigo mesmo, com a fatuidade dos seus favores e juízos. Este período de graça, esta espécie de reinado de um autor entre os demais, não dura mais do que um ano. Há um súbito impulso na difusão da sua obra, com a multiplicação das traduções e dos títulos disponíveis nas livrarias em todo o mundo, e logo depois esses mesmos autores assistem ao definhamento desse prestígio súbito, que acaba nalguns casos por se assemelhar a uma espécie de maldição, à medida que os livros antes tão exaltados, uns anos depois, só conseguem ser escoados em saldos de feira. A lista dos galardoados dos últimos anos consegue tornar-se quase jocosa, como uma dispersa dinastia de figuras que não chegaram a produzir um mínimo tremor na relação que temos com a cultura do nosso tempo. Lemos essa lista com uma pressa desinteressada, como perante um texto que formiga de erros, inconsistências e outros defeitos. Não se percebe muito bem quais são os critérios da Academia Sueca, mas é cada vez mais difícil reconhecer ali um rumo, uma série de apostas audaciosas no sentido do alargamento da nossa consciência. Dos galardoados nos últimos anos, nenhum teve uma intervenção pública memorável a não ser, pela ausência, Bob Dylan, com a sua prolongada hesitação depois do disparatado anúncio, recusando-se a levar a sério esse esforço da academia de contribuir qualquer coisa para a sua lenda, recusando aos membros daquele comité o privilégio de contarem com a sua presença em Estocolmo no seu cerimonial tosco. Este tipo de estratégias acaba por ser fatal. E agora, depois de uma sucessão de escândalos e trapalhadas de toda a ordem, a academia tem-se mostrado empenhada em fazer as escolhas mais conciliadoras, acabando por confundir os seus fins com os de qualquer outra organização humanitária. Pelo caminho, perde-se aquele sentido da leitura como o prazer de alucinar às portas, e a literatura como essa reserva de um sentido que se escapa, essa promessa dos lugares ou passagens onde fervilha a imaginação. Importa, assim, preservar esses indícios clandestinamente transmitidos, esse morse obstinado e a que é preciso estar atento, mobilizado como um exército face ao inimigo. As palavras são decisivas na medida em que só através delas os corpos são capazes de uma aproximação que não está limitada pela coincidência temporal.

É neste sentido que vincamos que “a linguagem apenas nos interessa como a obcecada medida da distância” (Eduardo Prado Coelho). Também por isso é importante defender a literatura desse regime das recepções e dos cocktails, essas ocasiões dirigidas à frivolidade e que procuram corresponder ao brilho enganador da fantasmagoria mercantil, entre valor de troca e valor de uso, a insistência em fórmulas culturais esvaziadas de tensão, que se reciclam sem qualquer força transformadora, e cujo sintoma é o da inocuidade e da estagnação artística e teórica. Adorno diz-nos que a arte só é interpretável pela lei do seu movimento, mas no circuito que hoje acompanha a divulgação e publicitação das obras literárias, damos por um ambiente no qual as palavras amolecem e tornam-se pegajosas, cedendo-se a um leve estonteamento da delapidação, a náusea de tudo o que se impõe por mera conveniência. Num dos seus textos, Benjamin assinalava como motivos sociais da impotência o facto de a imaginação da classe burguesa ter deixado de se ocupar do futuro das forças produtivas por ela desencadeadas… Hoje um prémio viu invertido o seu efeito, e se antes era uma forma de reservar a um autor essa consideração que levaria a que os leitores abordassem a sua obra esperando encontrar dificuldades, hoje essas massas que seguem as indicações dos comités de júris orientam-se por uma ritualização oca, por uma usurpação da tradição literária com essa agência que se organiza de forma algo anárquica, segundo princípios de fascínio e resistência. Como lembra Eduardo Prado Coelho, “é fortemente provável que aquilo que nos resiste seja muito mais interessante do que aquilo que começa por não nos resistir, e de qualquer modo, tudo aquilo que é defendido em nome de uma ética da clareza aplicada à produção, e que manda que se rejeite o que não é claro, esquece, por outro lado, que a esta se opõe uma ética da recepção que se define segundo o dever de procurar conhecer o novo, forçosamente menos claro por isso mesmo, em vez de nos atermos simplesmente a reforçar o que já se sabe”.

Ora, o que há de mais instigante na literatura é precisamente esse enredo mais vasto que permite ao pensamento acompanhar uma espécie de luminosidade espectral através dos tempos, uma experiência soberana que vai urdindo um percurso segundo uma ordem aparentemente leve e quase distraída, mas que, depois, se revela rigorosa e implacável. Por isso é importante chamar a atenção para essas figuras que nos oferecem percursos repletos de obstáculos, esses guardiões dos limiares, de portas, portões, varandas, campainhas, corredores que constituem objectos privilegiados do fascínio. Estou a servir-me abusivamente do entusiasmo de Benjamin, que nos fala com o seu romantismo anárquico “daquela estirpe poeirenta dos senhores dos umbrais, que guardam a entrada na existência”. E vinca que aquilo que os distingue é o seu saber residir numa “arte da espera”. Esse é o verdadeiro encanto da literatura, essa promessa que é feita aos desastrados, às criaturas mais estranhas, aos seres de mundos inacabados. E a sua arte passa por uma deambulação sensível em que tudo o que se toca é integrado àquela que vai, que atravessa essas portas-limite e sofre alguma metamorfose. Reconhecemos logo uma obra de literatura pregnante através dessas passagens que preservam a presença do passado nos seus espaços, com a sua luz crua e os seus recantos escuros. Por outro lado, os prémios literários que apenas convocam a si essas massas que se organizam segundo um fluxo que tudo indispõe, e neutraliza essa tensão dos territórios infixáveis, consegue apenas dissipar o encanto, como se os lugares aos serem pisados por essas legiões fossem degradados e perdessem o seu vigor flutuante. A incerteza é o próprio apelo e desafio da literatura, e hoje todas as distinções são aplicadas como um castigo, uma forma de invasão desses mecanismos do espectáculo que actua empurrando tudo para esse vazio da experiência, uma vez que, nos rituais que são próprios da sociedade do consumo, e que decorrem de condições de vida e processos de produção alienantes, não há lugar para a experiência individual. Tudo se submete aos valores distractivos, e a partir daí torna-se essencial que cada leitor se furte a esse ritmo, tornando-se o secreto agente de uma sabotagem construtiva.

Um bom exemplo deste regime tenso e subtilmente desagregador do espesso manto de noções que hoje substituem a própria percepção do real é precisamente aquele que domina a obra de Jon Fosse, o autor norueguês de 64 anos que acaba de receber o galardão da Academia Sueca “pelas suas peças de teatro e prosa inovadoras que dão voz ao indizível”, de acordo com o comunicado do júri na conferência de imprensa realizada esta quinta-feira em Estocolmo. Um gigante das letras no seu país, Fosse é um autor bastante reservado, que se esquiva o mais possível ao lado mundano da vida literária, dando poucas entrevistas, protegendo o seu foco, o que lhe permitiu tornar-se um autor prodigiosamente prolífico, cobrindo os mais variados géneros, e tendo ganho todos os principais prémios nórdicos, isto apesar de escrever em nynorsk, uma variante menos comum da escrita norueguesa que é usada nos seus condados rurais ocidentais.

Nascido a 29 de Setembro de 1959 na comuna norueguesa de Haugesund, é a partir do final da década de 1990 que as suas peças começaram a circular, e a ser encenadas em vários países, sendo hoje um dos dramaturgos contemporâneos mais representados nos palcos europeus. Em Portugal, só recentemente começaram a ser publicados alguns dos seus romances com a chancela da editora Cavalo de Ferro, mas Fosse considerava Jorge Silva Melo um amigo pessoal, tendo algumas das suas 30 peças teatrais sido traduzidas, encenadas e publicadas na colecção de teatro que a Cotovia, editora que encerrou a sua actividade em Novembro de 2020, mantinha em colaboração com a companhia Artistas Unidos. Há cerca de década e meia fez uma interrupção no seu trabalho como dramaturgo para se dedicar integralmente à prosa, tendo escrito um longo romance em sete partes (Septologia) o qual, na sua edição original, se estende por 1300 páginas. Além de muitos livros de poesia, que foi o que começou por escrever ainda na adolescência, publicou também uma vintena de romances, alguns ensaios e livros infantis.

Ruth Margalit, num formidável ensaio na revista The New York Review of Books, ao abordar o seu longo romance Septologia descreve Fosse como um realista místico, apontando a forma como a sua prosa surge impregnada de simbolismo religioso, assumindo, na sua linguagem encantatória e nas suas repetições, o ritmo do rosário. Ao lermos os romances de Fosse, naquele registo que parece proceder num fôlego sempre medido, sem grandes haustos, naquilo que ele descreve como uma “prosa lenta”, de baixa intensidade, procedendo por avanços e recuos, que segue o regime da meditação, sentimos muitas vezes que esta é uma escrita que procura urdir um labirinto de derivas interiores, ficando muito próxima da oração. Numa longa e esclarecedora entrevista dada a José Riço Direitinho para o jornal Público, em 2021, Fosse assinalou a influência na sua obra das tradições monásticas dos antigos cristãos, e da tradição mística medieval. Contou ainda um episódio que acabaria por ter uma centralidade decisiva na forma como veio a organizar a sua vida enquanto escritor. “Eu não gosto de falar nisto, é uma história dolorosa, mas, aos sete anos de idade, quase morri. Vi-me naquela típica experiência de um lugar onde tudo era bonito e estava em paz, com uma estranha forma de felicidade. Eu olhava para a casa onde cresci e sabia que a via pela última vez, olhava também para os meus pais e sabia que seria a última vez que os via, mas tudo estava em paz. Foi a experiência fundamental da minha vida. Tudo isto acaba por fazer de mim um artista. Acho que a minha arte está sempre perto desta experiência.”

Certamente não teria sido possível a Fosse, como a tantos outros autores noruegueses que hoje vêm assumindo um assinalável destaque nas letras a nível internacional, produzir obras tão significativas se não fosse pela sólida política cultural que aquele país tem levado a cabo em tantas áreas, entre elas a literatura, com muitos criadores a serem subsidiados independentemente do género literário e das vendas, como explicava Riço Direitinho num dos seus artigos, destacando como o Estado adquire parte das edições dos seus livros para que estes sejam distribuídos pela rede de bibliotecas públicas, adiantando que os apoios à divulgação internacional e às traduções não são despiciendos e são eficazes. Num país com uma população que é metade da portuguesa, e com uma língua apenas falada pelos seus habitantes, é hoje evidente o triunfo desta aposta, e a mesma deveria obrigar-nos a reconhecer o fracasso da estrutura de apoios públicos em Portugal, nomeadamente no que toca à literatura, onde se gastam todos os anos somas absurdas, “desviadas para iniciativas que são da ordem do circunstancial, do espectáculo, do foguetório, das celebrações e comemorações”, como vem assinalando Diogo Ramada Curto nas suas crónicas, consubstanciando um regime de políticas áulicas que, em vez de dar aos criadores a possibilidade de se libertarem dos imperativos mundanos e das orientações de um público que praticamente não lê nada, consegue assim enfeudar estes autores, e fazê-los circular pelo país nesse limbo dos festivais que apenas serve para as autarquias servirem simulacros de uma vida cultural em cidades ou povoações do interior onde muitas vezes nem há uma livraria para oferecer outra coisa que consiga resistir ao ciclo acelerado das novidades de cada estação. Outro aspecto que nos causa espanto é o facto de ter sido deixada à disposição de Fosse uma residência na capital norueguesa num edifício do século XIX, situado na propriedade do Palácio Real de Oslo, chamado “Grotten” (“Caverna”), e que é atribuído, por decreto real, a título honorário, como residência permanente a um destacado artista norueguês. Jon Fosse é o quarto distinguido com esta honra “real” desde 1920, explica Riço Direitinho.

É uma forma de apoio que não procura transformar o artista num “dependente”, numa figura mendicante e que faz os possíveis por agradar a vereadores de cultura e funcionários que, a partir dos gabinetes camarários, durante alguns dias em cada ano, se vêem a representar o papel dos antigos mecenas na forma como distribuem os dinheiros públicos. Voltando à escrita de Fosse, esta assinala uma espécie de confiança essencial, num registo repetitivo, com um vocabulário que se coloca do lado oposto às acrobacias do estilo, a essa “masturbação de grilos” (Eduardo Prado Coelho) que vai sendo desenvolvida nos cursos de escrita criativa e que caracteriza boa parte da ficção portuguesa, incapaz de contrariar ou sequer resistir impondo narrativas que elevem as possibilidades de os factos exteriores serem assimilados à nossa experiência. Ora, como sintetiza Riço Direitinho, boa parte da “literatura norueguesa traduzida — sobretudo as histórias que se desenrolam até metade do século XX — tem como pano de fundo das suas acções aldeias piscatórias submersas na miséria, na fome, nas duríssimas condições climáticas — são lugares ancestrais, míticos, onde tudo parece ter sido negado aos seus habitantes, como se uma vontade divina quisesse descobrir quanta dor é que afinal o coração humano ainda consegue suportar”. A literatura portuguesa que vai triunfando está completamente alheada desse desígnio de transmitir com alguma força de denúncia ou esplendor as experiências que caracterizam esta forma de destituição que tem ocorrido nos centros urbanos, com esse pesadelo distópico dos arredores betonados, essa “tundra de paisagens indiscriminadas”, num registo sufocante em que não se salva nenhum ponto de vista, nenhuma noção de si.

A prosa de Fosse, pelo contrário, despe-se do lado ornamental, não apenas recorre a repetições, como o seu vocabulário é bastante austero, chega a parecer uma escrita um tanto inóspita, um reflexo das vastidões congeladas que caracterizam a paisagem do país. Uma escrita que recusa o artificialismo, e na qual abundam os adjectivos genéricos, por vezes reforçados por advérbios igualmente insípidos. A narração segue uma espécie de monólogo interior, repleta das imperfeições vivas que se encontram na fala (e que normalmente são apagadas na escrita): recuos, hesitações e aproximações. É uma prosa que chega a soar como se o narrador estivesse a transcrever meticulosamente o seu discurso interior, e Fosse caracterizou o seu processo de escrita como um "acto de escutar", adiantando que não pensa no leitor quando o faz. "Se o fizesse, acabaria por sentir pena dele." Fosse insiste que vê a escrita como uma espécie de “dádiva” ou “graça”, deixando-se levar, não planeando nem a estrutura nem o enredo, como se fossem os livros a escreverem-se a si próprios. E ele vai tomado desse encanto. Assim, domina a arte do tédio, em busca “do invisível, da indefinível presença de algo”. Por isso, o minimalismo dos seus romances a certa altura torna-se vívido, alcançando um vigor inesperado, arrebatando o leitor, que por fim consegue ganhar pé e reganhar uma competência perceptiva, o que chega a dar-lhe a sensação de estar numa espécie de transe, dominado por um universo em que tudo o que toca é integrado, e assume um efeito de radiância e de um significado profundo, quase religioso.

Abandonando o vício das nossas estreitas noções do humano, também a realidade assume uma outra textura e capacidade de assombro na experiência interior que dela construímos. “Eu cresci naquele lugar junto ao fiorde de Hardanger, diante do mar”, contava Fosse na entrevista acima mencionada. “Dali via as ondas, as montanhas escuras, andei em barcos desde que me lembro, primeiro com o meu pai, e por volta dos sete anos já andava sozinho, de um lado para outro. É uma paisagem muito impressionante, e no Inverno é completamente escura, com uma luz aqui e outra além, nas casas dispersas. Ainda lá estou quando escrevo. Vivo parte do ano numa aldeia austríaca, a paisagem em redor tem algumas similaridades. Foi lá que escrevi Septologien, mas era na paisagem do fiorde de Hardanger que pensava. Transformo as coisas, mesmo a paisagem, não se consegue reproduzir a realidade. Para ser literatura, a realidade tem que ser transformada naquilo que se chama imaginação.”