Em Democracia, umas vezes ganha-se, outras vezes perde-se e depois há a Madeira. Bem, em rigor, a Madeira e todos os territórios em que a alternância não é afirmada ou considerada, por uma diversidade de fatores específicos que fazem toda a diferença e são desvalorizados por quem se entrega à análise mediática das dinâmicas e dos resultados. Em regra, nesses territórios de poder consolidado, no plano local ou regional, quem está no poder tende a abusar dele e que está na oposição enleia-se numa espiral autofágica impeditiva de sublinhar a alternativa. E depois, há o resto.
Os madeirenses e portosantenses foram a votos, a coligação PSD/CDS ganhou, mas não obteve a maioria absoluta nas urnas, entretanto colocada como pressuposto para o exercício político num novo mandato, em jeito de mobilização do voto útil. As direções nacionais dos maiores partidos tendem em não se alaparem às dinâmicas eleitorais regionais, porque existe autonomia e não acrescentam valor, mas o líder do PSD, Luís Montenegro, quis cavalgar os louros de uma potencial estrondosa vitória da coligação para a sua desvalida liderança. O registo de emplastro, em jeito de gesto solidário com quem está no terreno, qualquer que seja o cenário, esbarra na clareza dos estudos de opinião sobre as dinâmicas e na realidade concreta da Madeira, qual território com decisores políticos à margem ou acima de tudo. A síndrome do emplasto desnorteado perante a falta de afirmação da liderança, apostada em que o poder nacional caia de podre nas mãos de quem é a alternativa que passa na rua, levou Montenegro ao chico-espertismos de tentar clonar a vitória insuficiente de Miguel Albuquerque, dada a sua paixão e inspiração pelo modelo de governação madeirense do PSD.
Mas afinal, ao fim de décadas de poder e de instalação nas estruturas dos serviços, que modelo é esse que Montenegro quer para a República.
Na Madeira, com tanto desenvolvimento inspirador, um em cada quatro madeirenses vive em risco de pobreza, a taxa de analfabetismo é a segunda maior do país, o desemprego anda a toque das dinâmicas de um turismo acima da média nacional que não gera perspetivas de quotidiano e de futuro para os residentes, empurrando muitos para emigração.
Na Madeira, que sofreu relevantes transformações materiais com fundos comunitários, convive-se bem com a promiscuidade entre a política e os negócios, ao ponto de se abafarem denúncias de protagonistas políticos dessa realidade, como aconteceu com as denúncias de Sérgio Marques de obras falsas e influência dos grupos económicos no partido.
Nesse modelo que inspira Montenegro para a República, é normal que um candidato em campanha eleitoral encapotada receba papelinhos com cunhas para o Presidente do Governo arranjar uns ajustes diretos de obras a uma empresa de construção civil, como confessou Miguel Albuquerque ao Tal & Qual. Na República de Montenegro será normal o sentido do tradicional despudor de Alberto João Jardim em reconhecer que os resultados eleitorais obtidos são “muito pouco para um governo que teve uma forte comunicação social, teve dinheiro e fez o que fez, em coligação”.
O mais espantoso em tudo isto não é o desespero desnorteado de Luís Montenegro para se agarrar a um aditivo regional para a sua liderança, afinal para esta gente vigente os fins justificam todos os meios. O mais fantástico é a complacência com que se aceita a disfunção do funcionamento do sistema, a geometria variável das palavras ditas, que permitem a substituição da maioria absoluta obtidas nas urnas pela composição parlamentar de uma maioria para governar, a afetação de recursos públicos para fins eleitorais e a instrumentalização dos media.
O que choca não é o que queiram fazer com as margens de gestão da autonomia regional, mas o que isso significa como expressão de um país dual e arbitrário, com registos indignos de um Estado de Direito Democrático e disfunções das suas instituições.
O que choca é termos cada vez mais um país a diversas velocidades em função dos protagonistas, das condições financeiras, das geografias e dos interesses em presença, com a anuência de muitos dos que possam ter alguma responsabilidade de escrutínio e zelo pelo regular funcionamento do Estado de Direito. Rasgam-se vestes na praça pública por questões acessórias, perceções pouco sólidas e causas residuais, permite-se este nível de desvario e desespero em modo de “vale tudo”, em que não falta um primeiro-ministro e líder do PS que não escolhe melhor formulação para comunicar com o vencedor insuficiente das eleições regionais do que desejar-lhe “votos de continuação de bom trabalho em prol da região e do país”, em contradição com a realidade e a narrativa do seu partido nas eleições.
A República, demasiado configurada à complacência cívica e à satisfação com os padrões mínimos que lhe são proporcionados pelas opções políticas, dispensa que se somem às disfunções gerais particularidades madeirenses no uso e abuso do poder, na complacência institucional e no irrespirável pulsar das dependências. Não precisa a República, não devia precisar a Madeira, por mais que o líder do PSD se sinta confortado.
No meio de tantos excessos de colagens e extrapolações regionais, ressalta a clareza da exclusão do Chega nas opções de governação do PSD na Madeira e num pretenso futuro no país. Como é possível que tanta determinação e destrato, permitam a subsistência nos Açores de um governo PSD com o apoio parlamentar do Chega. Um país, dois ou mais sistemas. Ou o país do vale tudo. É tudo demasiado poucochinho.
NOTAS FINAIS
MONTENEGRO CONSEQUENTE. Apesar da autonomia, nos Açores não faz sentido governar com o apoio do CHEGA.
VENTURA CONSEQUENTE. Apesar da autonomia, nos Açores, considerando o destrato na Madeira e no país, não faz sentido o PSD manter ou contar no futuro com o CHEGA para apoiar uma solução de governo.
MINISTÉRIO PÚBLICO COERENTE. Abriria vários processos ao uso de recursos públicos em campanha eleitoral, às declarações de Miguel Albuquerque a propósito da cunha filmada do empreiteiro e das afirmações de Alberto João Jardim. Do Sindicato dos Jornalistas nem uma palavrinha, um silêncio ensurdecedor sobre a “forte comunicação social”.