“António Maia Gonçalves: “Se fosse político tinha vergonha de propor uma lei de suicídio assistido”

“António Maia Gonçalves: “Se fosse político tinha vergonha de propor uma lei de suicídio assistido”


Médico defende uma verdadeira aposta na rede de cuidados paliativos. E defende que ‘matar alguém nunca será um ato médico’.


A lei que despenaliza a morte medicamente assistida entrou em vigor em julho, mas ainda está sujeita a fiscalização sucessiva pelo Tribunal Constitucional e está a aguardar pela regulamentação…

Sim. Mas para que haja fiscalização sucessiva é preciso que 10% dos deputados a requeiram. A verdade é que ninguém sabe muito bem como é que será aplicada, já que a lei é um bocadinho atabalhoada e a ideia que tenho é que os deputados têm uma ideia genérica de liberdade e não tentaram fazer uma lei estruturada. É um assunto demasiado relevante para ser feito desta maneira. Por exemplo, diz que é necessário estar presente um médico, mas não se percebe muito bem para quê. Os fármacos a utilizar não se sabe bem onde é que serão disponibilizados. Fala-se em duas condições para se poder recorrer ao suicídio assistido e que basicamente são condições completamente genéricas: doença grave incurável ou lesão irreversível com grande sofrimento. A medicina não se faz, graças a Deus, com essa imprecisão toda. Se quiséssemos ter uma lei estruturada, no contexto de quem defende o suicídio assistido como um direito então não haveria a necessidade de ter presente um médico porque o doente toma o comprimido e morre. É preciso ter um médico se houvesse alguma coisa para atuar, eventualmente terá depois de declarar o óbito. Por outro lado, é enganador chamar-lhe lei da eutanásia porque não há eutanásia nenhuma, há um suicídio. Os fármacos são disponibilizados pelo Governo, é o doente que toma os comprimidos e só numa situação em que o doente seja tetraplégico, por exemplo, é que alguém pode – também não sei em que modos, se será nomeado por um juiz ou se será nomeado pelo próprio – administrar esse tipo de fármacos. É uma lei do suicídio assistido de que estamos a falar. Falar em suicídio assistido medicalizado é um absurdo, porque matar alguém nunca será um ato médico. A lei está cheia de lacunas, de vazios, as situações clínicas não são claramente tipificadas e dá azo a que ninguém saiba muito bem para o que é. E os deputados andam a tentar aprovar isso há cinco ou seis anos.

Houve vários avanços e recuos, mas as tais lacunas continuam a persistir?

As lacunas persistem. Mesmo a comissão de acompanhamento que tem de verificar a evolução da situação nos primeiros seis meses, a Ordem dos Médicos recusa-se a indicar um médico para isso. É um sinal claro de que clinicamente a lei é um absurdo. E quando estamos a falar de assuntos com algum cariz clínico, os médicos dizerem que as coisas estão mal feitas deveria levantar algum alarme. Os deputados não têm de ser médicos, mas há pareceres técnicos e comissões técnicas que podem apoiar as decisões.

Não houve um apoio da classe médica…

Claramente não. Como é que de uma forma muito genérica se fala em doença incurável ou em lesão de extrema gravidade? Dá para tudo? O que é que estamos a falar?

Um cancro, por exemplo?

Mesmo a doença oncológica hoje em dia é cada vez mais uma doença crónica. Teoricamente, um médico é uma pessoa apaixonada pela vida e a relação entre médico foi evoluindo, em que é preservado totalmente a autonomia do doente. Não imponho nada ao doente. Indico os caminhos e ele escolhe. Tenho quase todas as semanas situações, em que o doente não concorda com a minha orientação, pretende seguir outro caminho e eu apoio-o. A autonomia do doente é o garante de toda a relação médico-doente. Já tive situações graves oncológicas, em que o doente se recusou a ser tratado – até já tive médicos que se recusaram a ser tratados – e dou-lhe todo o apoio, nomeadamente conforto e analgesia. Nos dias de hoje falar-se de eutanásia e de suicídio assistido não faz muito sentido, porque a própria terapêutica de conforto muitas vezes abrevia o processo da morte. É muito importante a intenção com que se faz as coisas. O médico tem intenção de curar se possível, mas de cuidar sempre.

Então apoia o doente no caso de querer desistir de um tratamento?

Por exemplo, um doente faz um transplante hepático, depois a medicação que faz favorece a ocorrência de um tumor no sangue, trata-se do tumor do sangue, depois surge um fenómeno de rejeição e fica farto, debilitado e não quer mais. Então nesse caso tem o direito de decidir isso. A partir daí, o que é que faço? Dou-lhe todo o apoio e conforto: analgesia, alívio de sintomas, enjoos, náuseas, tiro as dores, garanto que tem um sono confortável, garanto que está bem. O problema é que a nossa rede de cuidados paliativos é miserável, não existe.

Em vez da lei da eutanásia deveria ter-se apostado no reforço da rede de cuidados paliativos?

Se fosse político tinha vergonha de propor uma lei de suicídio assistido quando não há uma rede verdadeira de cuidados paliativos. E os paliativistas, sejam eles médicos ou enfermeiros, fazem um trabalho notável. Não está a ver a generosidade dos meus colegas e dos enfermeiros que se dedicam a essa área. Além do ponto de vista remuneratório terem valores irrisórios não têm nenhuma compensação objetiva, fazem-no com alma e coração, com uma dedicação fantástica. Muitas vezes, o que acontece é que não há paliativistas que cheguem e, nós não paliativos, prestamos esses cuidados, pedindo orientação aos colegas. Quando daqui a uns anos se pensar nisto, as pessoas vão pensar na hipocrisia e no cinismo de se fazer uma lei de suicídio assistido – e é disso que estamos a falar – quando não há uma rede de cuidados paliativos. Se não há paliativos, se não poder cuidar do doente, se não lhe puder dar conforto, tirar as dores, os enjoos, garantir um sono eficaz, que tem algum apetite e que está confortável nos seus últimos dias de vida obviamente que prefere morrer. É um cinismo e uma hipocrisia que não é aceitável, não é digno. Um médico tem de cuidar sempre. Não há cuidados paliativos que cheguem, tentamos improvisar, pedindo apoio aos colegas, mas temos de ter alguma dignidade. Em Portugal menos de 20 ou 25% das pessoas têm direito a cuidados paliativos, os outros 75% estão numa situação desesperada, cheios de dores e se não tiverem apoio nenhum se calhar querem mesmo morrer.

É o desespero… 

É o desespero e é isso que é extremamente difícil de aceitar, não só como médico, mas como pessoa. Numa situação de extremo desespero todos temos de ter alguém que não nos abandona. Qualquer um de nós já passou – mesmo sem ser um problema de saúde física, mas por estarmos muito deprimidos – por momentos de desespero, mas houve alguém que nos ajudou. Esta história do suicídio assistido é a negação da última fronteira, isto é, de haver sempre alguém que não desiste de nós. Claro que se não quer ser tratado, não o será, mas terá todo o conforto e apoio para poder morrer em paz. O processo de morrer faz parte da vida e deve ser muito digno. As pessoas devem ter direito a pensar, a falar as últimas coisas, a terem conforto, a terem afeto. Há uma dimensão dos afetos que não podemos menosprezar. Os afetos, as competências humanas são a essência da nossa natureza e não podemos negar isso. Em sociedade temos de ser tolerantes a tudo e aceitar a diversidade como uma riqueza, mas temos de ter princípios básicos. E o princípio básico da nossa sociedade tem de ser o respeito pela vida. E mesmo no fim da vida temos de garantir que esse respeito é garantido. É claro que uma pessoa pode dizer que não quer nada disso e que quer morrer, mas aí já não é uma área nossa. Nós médicos temos de ter sempre a capacidade de cuidar e é esse o nosso objetivo. Um doente que quer morrer e se a sociedade entender que isso é um direito de cidadania – não é a minha opinião – que o faça, mas que não tente mascarar a situação como sendo um ato médico.

Mas o médico terá de prescrever o medicamento?

É preciso haver um médico para orientar do processo, que depois será avaliado por uma comissão. No entanto, isso também não está muito claro na regulamentação da lei. Nem sei quem é disponibiliza os fármacos. Foi tudo sempre feito em cima do joelho. Primeiro os partidos queriam a eutanásia, afinal já não é eutanásia e é suicídio assistido, é o tentar aprovar qualquer coisa. A grande questão para os deputados é acharem que isto é uma coisa de liberdade.

E no caso, por exemplo, de um tetraplégico que está há vários anos nesta situação, em sofrimento, que está saturado. Poderá ver uma luz ao fundo do túnel?

Não será seguramente um problema médico. Um problema médico é uma doença, uma dor, em que é preciso diagnosticar e cuidar. Um tetraplégico se tiver uma rede de cuidados de fisioterapia, se tiver apoio familiar, se tiver alguma coisa para fazer porque é que há de querer morrer? Uma pessoa quer morrer se tiver desesperado e sem nada para fazer. Se estiver abandonado numa cama cheio de escaras, sem cuidados nenhuns e aí sim. Tenho histórias fabulosas. Tenho um jovem de 30 e poucos anos que estava em Angola desviou-se num jipe para não atropelar um catraio, o jipe capotou, veio paraplégico para Portugal, mas agora anda. Teve todo o apoio possível e imaginário. Mas se me perguntar como é que estava quando veio posso-lhe dizer que estava desesperado, que queria morrer e que não queria tratamento nenhum. Fico muito feliz por ele, não é nenhum mérito meu. Quero que haja sempre um mundo com uma face muito humanizada e com afetos, porque é a nossa natureza. Negarmos a nossa natureza é negarmos a nossa essência.

E há sempre esperança na evolução da medicina…

Há sempre evolução e a medicina não é como a engenharia, não é uma ciência exata. Nós equacionamos as coisas, tentamos e todos nós temos casos, em que milagrosamente o doente ficou bem. Fico completamente feliz.

É uma vitória…

É uma vitória do doente. Nós estamos para ajudar a cuidar. Não estamos para mais nada e seguramente não para matar. As pessoas têm de perceber que isso não é um ato médico. Esta história de chamar suicídio assistido medicalizado é uma forma de tentar branquear uma coisa que é um suicídio assistido.

Portugal tem uma população cada vez mais envelhecida e muitos com poder de compra muito reduzido, não havendo cuidados paliativos para todos esta solução, por vezes, é apontada como uma tábua de salvação…

Todas as vidas têm valor, sejamos nós velhos, sejamos nós novos. E têm um valor único incalculável. Em relação às pessoas de idade não nos podemos esquecer que trabalharam uma vida inteira e a sociedade tem obrigação de cuidar. Veja os velhinhos de agora e o que eles passaram. Havia fome em Portugal. As pessoas trabalhavam e viviam com enormes dificuldades, tinham famílias numerosas e agora vamos abandoná-las? Isto é uma coisa que se não fosse verdade era um pesadelo. Como é que é possível pensar nisso? Eu, graças a Deus, tive o privilégio de poder cuidar dos meus e de ter uma irmã santa que me ajuda a cuidar da minha mãe que ainda é viva, mas quem não tem esse privilégio ou quem não tem meios para isso, nesse caso tem de ter o direito que alguém lhes dê os meios para cuidar. Até mesmo esta história dos cuidadores informais é uma vergonha, têm uma missão muito importante e a atribuição das ajudas não existe.

E é um estatuto recente…

Não existe. Menos de 20 ou 30% dos cuidadores informais têm esse direito. Temos de ser sérios e temos de ter prioridades e a prioridade serão seguramente as pessoas. Tudo o resto não tem nenhum valor ao pé de cada pessoa. Temos o dever de cuidar dos nossos, é tão simples como isso.

Disse recentemente que a lei da eutanásia era uma ajuda à sobrelotação hospitalar…

Se não lhes damos nada e se uma pessoa está abandonada em grande sofrimento seguramente que prefere morrer. E vai desocupar hospitais. Neste momento, temos em Portugal cerca de 3,6 milhões de pessoas com seguro de saúde, depois temos 700 ou 800 mil que têm subsistemas, como a ADSE, a ADM [Assistência na Doença aos Militares], etc. Mas sobram 5,5 milhões de pessoas para o Estado cuidar. É evidente que com esta inversão da pirâmide demográfica, com o envelhecimento da população, o número de patologias e de complicações é muito maior. Neste contexto, o suicídio assistido será seguramente um meio para os abandonados terem uma saída.

E vê-se muitos idosos abandonados nos hospitais…

Não é assim que deve funcionar. Há um serviço social e temos de estar atempadamente a planear as coisas. Não é quando somos confrontados com as situações não termos soluções. É preciso fazer as coisas com o mínimo de bom senso e de responsabilidade. As coisas não podem ser feitas como se fosse uma manta de retalhos que depois nem sequer cola.

Sente que estamos a banalizar a morte?

A banalização da morte é uma coisa que se vira contra todos nós. Estamos a falar dos velhos e não é uma coisa a que nós não vamos chegar, só não chegamos se tivermos o infortúnio de ter uma doença incurável, mas vamos chegar lá todos. É isso que vamos querer para nós? Quanto mais não seja pensem assim. Tenho imenso respeito com as pessoas de idade. Lembro-me que as pessoas passavam fome, tinham sete ou oito filhos, trabalhavam de sol a sol e agora não fazemos nada, não lhes damos o mínimo? Que raio de sociedade é essa? Há pessoas que defendem o suicídio assistido com consciência e com convicção, mas acho que isso não representa o pensamento da nossa sociedade. Além da vergonha de não existir os cuidados paliativos também parece que estamos a empurrar as pessoas para isso e objetivamente ainda ninguém percebe muito bem como é que vai funcionar. O legislador tem a obrigação de fazer as leis com clareza e com operacionalidade. E isto é tudo menos claro e operacional. É um conceito de liberdade. Fazia sentido nos anos 80, em que o médico não respeitava a autonomia do doente. O médico era um homem que estava no seu pedestal e que impunha. Hoje em dia não faz sentido nenhum, porque a essência da relação médico doente é a autonomia do doente.

Mesmo que recusem o tratamento…

É preciso garantir todo o direito à autonomia e conforto para o doente e as pessoas têm esse momento como um momento de coragem e de dignidade. É isso que fica para a família. Outra coisa diferente é 'dê-me aí uns compromissos para morrer'. As coisas têm de fazer algum sentido até no final da vida para o próprio e para os que ficam.

Tem uma visão apaixonada da medicina, que é o cuidado do doente, mas acha que todos pensam assim?

Em regra geral, tenho uma boa ideia da classe nesse sentido. Ainda agora no concurso para faculdade, a segunda média mais alta foi para medicina. Os médicos ganham 1.500 euros por mês. Os meus pais eram engenheiros e quando disse que ia para médico disseram-me: 'um filho que é inteligente vai para engenheiro, não vai para médico'. Logo na primeira noite de Natal estavam todos na consoada e fui fazer urgência. Cuidar de uma vida humana é algo que supera tudo. Merecer a confiança das pessoas é um privilégio, alguém que entra no consultório, não me conhece de lado nenhum e confia em mim isso é uma maneira que nos faz superar. Fazemos coisas pelos doentes que não fazemos pela família. Se estiver um doente muito mal vou lá. Se o meu filho me ligar não vou sempre. É normal nos médicos essa disponibilidade. Nunca vi nenhum médico terminar o turno e dizer 'vou-me embora'. É natural na profissão médica esta visão e essa postura. E depois há as especialidades. Por exemplo, um ortopedista poderá não estar vocacionado para este tipo de coisas, mas também não vou operar uma fratura na anca. Os médicos mais dados ao cuidado e a estas situações de fim de vida – a medicina interna, o médico de família, o palitivista, o oncologista, o nefrologista – estão muito vocacionadas para prestar esses cuidados e para garantir o conforto. A generosidade que vejo nos meus colegas é imensa.

Nesta questão da eutanásia acha que haverá muitos médicos que irão recorrer à objeção de consciência?

Podem não declarar objeção de consciência, mas tenho a certeza que centenas de médicos se forem nomeados vão dizer que não vão. Não há nenhum médico que não sinta que seja perturbador ir assistir a um suicídio.

Mas admite que reanimar nem sempre é uma decisão acertada, não é incoerente?

Não, porque sei que a vida tem limites. Antigamente havia um pouco aquele conceito de obstinação terapêutica, ou seja, o doente já não tinha reversibilidade nenhuma, mas ainda fazíamos mais isto e mais aquilo. Hoje em dia prevalece o bom senso que é não fazer o doente ter um sofrimento sem benefício objetivo. Já me aconteceu reanimar um doente e depois via a história clínica de doenças oncológicas, tumor metastizado já em fase final de vida. Neste caso, não vou contrariar a natureza e suspendo as manobras de reanimação. Isso é uma boa prática médica. Obstinação, excesso de tratamentos está definido na medicina como uma má prática médica. O não reanimar é uma decisão muito difícil, mas plena de sentido médico.

E às vezes a decisão tem de ser tomada em segundos…

Uma decisão dessas nunca se toma sozinho. Nesses casos vai-se suportando as funções vitais para depois decidirmos em conjunto.

E nesses casos, a família é consultada?

Sempre, até porque a informação é muitas vezes dada pela família. Gostamos muito de integrar a família na decisão clínica, porque o morrer tem que ter dignidade e tem de integrar as pessoas que mais amam o doente. É raro haver uma unidade de cuidados intensivos que não tenha uma sala para conversar e para lhes explicar a situação. Além disso, a comunicação em cuidados intensivos é muito estudada e é má prática se não existir. No entanto, os médicos dos cuidados intensivos são uns privilegiados, temos excelentes condições de trabalho, enquanto no resto do hospital não há isso. E já viu quantas horas extras faz um médico? São imensas e ao fim de 24 horas a trabalhar tem de ter capacidade de comunicar, o que não é fácil. Mas é como digo, trabalhamos em equipa e vamos tentando partilhar decisões.

Há pouco falou de colegas de trabalho que sempre se dedicaram ao serviço público e que nunca foram para o privado. Como é que vê estas greves e o braço de ferro entre médicos e Ministério da Saúde, apesar de Manuel Pizarro já ter rejeitado a ideia de que o serviço de saúde está cada vez mais frágil…

Manuel Pizarro é um excelente médico. Foi meu colega de curso, é de medicina interna como eu, agora está a fazer de político que é um lugar que não lhe invejo. Obviamente que as propostas que estão em cima da mesa em termos sindicais não serão da minha área. Não trabalho num hospital público, desde 2021 e acho que é muito difícil segurar os médicos no Serviço Nacional de Saúde. E não passará seguramente só pelo aspeto remuneratório. Passa por outras coisas: pelas carreiras estarem objetivamente dignificadas, por ser fornecida formação contínua e de muita qualidade, por permitir que as pessoas se sintam realizadas. Percebo que Manuel Pizarro tenha de fazer o papel dele como político, mas acho que os médicos estão cheios de razão.

E como vê o fecho de urgências de obstetrícia aos fins de semana, pessoas que morrem na sala de espera…

Há um problema muito grande que é o facto de nunca se ter privilegiado os cuidados primários de saúde. Por exemplo, um médico de família não fazer uma ressonância. Acha isso normal nos nossos dias? Não faz sentido ter de o mandar para o hospital para uma consulta, para depois se marcar uma ressonância e nisso perdem-se seis meses. Há que privilegiar os cuidados primários. O Governo tem agora um projeto feito por Manuel Pizarro e pelo diretor do SNS de criar 39 ULS [Unidades Locais de Saúde], em que basicamente querem integrar os cuidados primários com os serviços hospitalares ao nível regional. Se for bem feito pode resultar, a não ser que seja feito apenas por motivos economicistas para tentar diminuir o número de doente subsidiários. Se for feito com honestidade e acredito que o seja porque são dois médicos a pensar nisso irá privilegiar mais os cuidados primários. E com isso evitamos que toda a gente vá para as urgências por não ter cuidados. Mas com toda a honestidade, a parte remuneratória é sofrível e, por isso, é muito difícil segurar os médicos neste sentido. Hoje em dia, cerca de 40% das camas hospitalares são privadas em Portugal. Escusamos de nos iludir, os cuidados privados têm tudo, têm qualidade e daí terem procura.

O público terá de ser para os tais 5,5 milhões que não têm acesso ao serviço privado…

Entendo que o direito à saúde é fundamental e, como tal, temos de criar condições para isso e acreditar que esta proposta que o Governo quer instituir vai funcionar como um salto qualitativo, porque os médicos trabalham muito e como toda a gente gostam de ganhar minimamente bem, mas também gostam de ter condições para trabalhar. Como é que posso explicar a uma senhora de 90 anos que está numa urgência com falta de ar, com pulseira amarela e teve de esperar 15h? É uma vergonha. Se esta reformulação do SNS for feita com objetividade e preocupada com o reforço dos cuidados primários para prestar melhores cuidados aos doentes é uma oportunidade para melhorar muito.

E até para combater a falha de falta de médicos de família…

Não é só criar unidades de saúde é também integrá-las com o hospital, o que vai permitir ao doente que tenha sempre um acesso direto com o seu médico e só depois é que será encaminhado para os hospitais. É assim que deve funcionar, agora em Portugal qualquer pessoa com um problema vai para a urgência. Acredito que esta proposta de reorganização é corajosa e tem capacidade de melhorar qualquer coisa. Acho que a saúde nem devia estar assim politizada.

O primeiro-ministro disse há pouco tempo que não pode continuar a ‘atirar’ dinheiro para o setor da saúde e que tem de haver uma maior organização da parte hospitalar, nomeadamente na sua gestão…

Gostava de o ouvir dizer que quer é cuidar cada vez melhor das pessoas. A política é uma coisa que não me interessa nada.

Acha que o estado de graça do ministro deixou de existir nestes últimos meses?

É médico, é inteligente e acredito sinceramente que a proposta de reorganização se for instituída com um objetivo não meramente economicista poderá dar resultados, porque impede o recurso excessivo aos hospitais, entupindo-o todo. Um hospital tem as suas cirurgias programadas, mas se depois entraram cinco ou seis pessoas pela urgência, o bloco ficou entupido e o doente que estava programado fica para trás. Isto é ingerível e tem de se criar as condições para que seja gerível. Acredito piamente que isto é uma proposta interessante, com pernas para melhorar e para tentar tornar os cuidados primários no protagonista do sistema.

E evitar esperas de dezenas de horas nas urgências dos hospitais, como acontece principalmente no inverno…

Não pode ser assim. Ninguém gosta disso. Os doentes seguramente não, nem as suas famílias, nem os médicos e tenho a certeza que Manuel Pizarro também não. As soluções não são fáceis e quem disser que são não é sério. As soluções são complicadas, mas também acho que esta proposta é ousada e tem pernas para tornar as coisas melhores se der um protagonismo objetivo aos médicos de família. Imagine que tem uma dor na coluna, depois faz um raio-X e deixa dúvidas, depois faz um TAC e deixa dúvidas. Tem de mandar para o hospital para a ortopedia e a ortopedia leva três ou quatro ou cinco meses a marcar. O ortopedista depois acha que deve fazer uma ressonância e leva dois ou três meses a marcar. E afinal até era uma metástase, um tumor na próstata que estava escondido. Perde-se a oportunidade de cuidar bem.

Por vezes, o diagnóstico chega tarde demais…

Perde-se a oportunidade de cuidar bem. Tenho ideia que há essa vontade para que os médicos de família tenham maior protagonismo. Isso vai seguramente otimizar os circuitos, melhorar os cuidados. Sou um homem de fé, acredito que as coisas são feitas para o bem.

E o que acha dos incentivos para reduzir as listas de espera?

Para reduzir as listas de espera, muitas vezes, as cirurgias são feitas ao fim de semana, em que não há atividade hospitalar normal. Se um médico vai trabalhar ao sábado e ao domingo, mas trabalhou de segunda a sexta então é justo que seja remunerado pela cirurgia. Não me parece que esteja a subverter nada. Acho que tem todo o direito. A minha família habituou-se a que o telefone toque todos os dias: ao sábado, domingo à noite e à hora da refeição. Então se temos esta disponibilidade é justo que seja remunerada. E recuperar listas de espera é bom. Não faz sentido uma pessoa esperar um ano por uma cirurgia, depois de já ter estado à espera seis meses a um ano por uma consulta. Isso é que devia envergonhar os políticos. E quem manda são os políticos, não são os médicos. Os médicos criticam e fazem muito bem em criticar. Por isso, há que otimizar os processos, recuperar as listas de espera e isso tem de ser feito remunerando os médicos. Não sou cirurgião e, por isso, não estou a falar em proveito próprio. Mas acho que é inacreditável pensar que uma pessoa vai passar o sábado e domingo a operar e não ser remunerado por isso.

Disse que deixou o serviço público e que foi para o privado. Foi por estar desiludido, por ter sido uma proposta irrecusável?

Foram 30 anos de cuidados intensivos num hospital público e como já disse tem excelentes condições de trabalho e é um serviço privilegiado em relação ao resto do hospital. Mas tenho 57 anos e ao fim de 30 anos fazer 24 horas de serviço um ou dois dias por semana e se for preciso às 3h da manhã fazer uma reanimação já não dá. Lembro-me de alguns colegas mais velhos de se afastarem, ficarem a dormir e ir o colega mais novo. Isso também não pode ser. Há um momento em que não temos capacidade para isso. Tenho capacidade para muita coisa graças a Deus, mas fazer duas ou três vezes por semana 24 horas já não tenho. E achei que era o momento. No meu tempo havia cinco faculdades no país e terminávamos 200 por faculdade, agora terminam quase 3000. Naquele tempo, habituávamo-nos a fazer urgências que nunca mais acabavam. Lembro-me que, no meu início de carreira vinha dormir a casa três vezes por semana. Fazia quatro vezes 24 horas por semana, umas no hospital normal, onde estava a fazer a especialidade, outras num hospital público para ganhar dinheiro para me sustentar. Trabalhávamos sempre muito, muito. Agora não há essa ideia, as pessoas mudaram e a maneira de pensar das pessoas é diferente. Não há disponibilidade para trabalhar essas horas todas. Acho bem que não haja, porque a partir de dada altura, o compromisso e o discernimento não é tão bom. Ainda há pouco tempo um colega ligeiramente mais velho do que ele achou que a situação não correu muito bem com o doente e que era o momento de não operar mais. Mas disse isso a chorar e quando saí do hospital pensei que não tive uma situação dessas, mas tive medo de um dia que isso me acontecesse e achei que era o momento.

Daí a lei no serviço público obrigar a que os médicos aos 70 anos se reformem…

Cada caso é um caso e acredito que as pessoas têm de ter consciência. Terei muita pena de deixar de ser médico, mas não quero nunca fazer mal a ninguém. Não sei se os médicos deviam de deixar de trabalhar aos 70 anos, mas para nos mantermos atualizados trabalhamos muito, temos de estudar, de ler. Ainda há três anos fiz um exame e não acredito que a partir de determinada altura tenha esta capacidade de trabalhar, de estudar e fazer tudo ao mesmo tempo. Não consigo.

Tem ajudado alguns professores seus que chegam ao final da sua vida e pedem-lhe ajuda. É fácil essa tarefa?

Tenho alguns colegas que me deram essa honra. É o respeito dos pares, mas é uma dificuldade acrescida, porque os médicos não são, em regra, bons doentes. Sempre que um colega procura ou envia um filho é a maior honra para um médico. As pessoas acham que os médicos são corporativos, se calhar serão um pouco, mas há essa ética de que temos de cuidar da família dos nossos.

Mas isso também implica uma responsabilidade acrescida?

É uma dificuldade acrescida. Quando estamos a tratar de um médico, então se for um professor, aparecem mais 50 a perguntar porque é que não fez isto, ou aquilo, etc. Temos de ter a serenidade de fazer o melhor e de estar tranquilos.

Está prestes a arrancar a vacinação contra a gripe e covid-19. Sente que há resistência?

Faz-me confusão que as pessoas tenham muitas dúvidas em relação à vacinação. As pessoas não se lembram de janeiro de 2021, mas fomos o pior país do mundo em termos de mortalidade durante quase uma semana inteira, porque não havia vacina. A vacinação foi aquilo que nos permitiu vencer esta pandemia e a vacinação é para ser feita. Não há ninguém no seu juízo perfeito que não entenda isso. Temos de prevenir os grupos de maior risco. E é isso que é proposto pela DGS, ou seja, que tem mais de 60 anos ou quem seja de risco.

Já temos hospitais, como o de Santa Maria, a pedir o uso de máscara…

E bem, porque nas últimas três semanas houve um aumento muito grande da doença e nas pessoas com maior fragilidade pode ser muito grave. Vale a pena vacinar as pessoas e agora até há esta desburocratização – nem tudo é mau no Governo – em que nem é preciso receita médica, basta mostrar o cartão de cidadão. Tem mais de 60 anos, tem direito a ser vacinado para a covid e para a gripe. O benefício é maior por fazer a vacinação do que não fazer. E isso tem de ser entendido pelas pessoas. E a verdade é que a mortalidade cresceu um bocadinho em agosto.

Por causa da Jornada Mundial de Juventude?

Sim. Sempre que houver algum ajuntamento há esse risco. Mas as jornadas foram uma bênção. O Papa disse que era uma pena os países que querem facilitar assim a morte.

A par da saúde também tem outras paixões, como pintura, música e cozinhar. Consegue ter tempo para tudo?

Consegue-se ter tempo para tudo, não o tempo que queria. A vida não é só a paixão per si é poder vivê-la também, é o prazer de ver, de conviver. A música é a serenidade.

E admite que se for ‘necessário’ pode dar a ‘volta ao mundo’ por um bom espetáculo de ópera….

Isso faço. Temos de ter essas pequenas coisas e no fundo é uma defesa. Tenho uma senhora que me escolhe o espetáculo, compra os bilhetes e assim temos de ir, porque se não havia mais um doente para ver. Essas pequenas coisas obrigam-nos a quebrar a rotina e as quebras na rotina são importantes para conseguimos manter o discernimento. Se estivermos sempre obcecados e mergulhados no trabalho perdemos um bocadinho o discernimento. Claro que gosto muito de espetáculos de ópera, mas se não tivesse quem me impulsionasse a ir não ia. A quebra na rotina tem um efeito enorme na estabilidade e na sanidade. Se não nos obrigarmos a ter alguma coisa extra perdemos um bocadinho o sentido da vida.

Frequentou o Colégio Militar e tinha um pai que foi general. Isso implicou ter tido uma formação mais rígida?

O colégio tinha uma coisa boa, sou um pouco indisciplinado e isso nota-se até pelo cabelo e disciplinou-me um bocadinho. Por outro lado, também havia uma grande camaradagem. Vivíamos em regime de internato e só se ia a casa ao fim de semana. Alguns nem ao fim de semana iam porque era longe. Essa camaradagem foram valores que ficaram e que me ajudaram muito no dia a dia.

Mas foi uma escolha impulsionada pelo seu pai?

O meu pai era muito católico, tinha muito o sentido de serviço e dizia que se pudesse fazer o bem fazia, sem esperar nada em troca. Era o filho mais novo e até era muito liberal comigo. Há uma coisa engraçada, depois de ter sido obrigado durante oito anos a rapar o cabelo quando saí do colégio tive um ano sem cortar o cabelo. Quando vinha a Cascais, a casa dos meus pais, ele abria a porta e dava-me 20 escudos e dizia-me ‘vai cortar o cabelo e depois vem cá’. E eu ia. Orgulho-me de ter sido aluno do Colégio Militar. Guardei amigos para a vida e os valores que me incutiram ficaram. Há coisas que não são perfeitas, mas globalmente, o balanço que faço é muito positivo. Ao contrário do que se diz, não é um colégio elitista, é muito inclusivo. Para ter uma ideia, tinha no meu curso um filho de um cabo e de um general e éramos todos iguais. Também foi fundado para apoiar os militares que iam para o Ultramar, como se dizia antigamente. No meu caso, o meu pai estava em Macau 75 veio a Lisboa e deixou-me no colégio. Depois veio de Macau e foi para Londres e o colégio dava o apoio para permitir que os militares tivessem a vida que tinham. Foi também um pouco tradição familiar, ele tinha andado, os meus irmãos também. Agora está um pouco diferente, mas na essência, os valores continuam lá. Os meus filhos não frequentaram, porque não quiseram vir. Morávamos no Porto e eles disseram que não queriam e não os obriguei. Mas deu-nos também capacidade de trabalho, o colégio era muito exigente em termos de notas. Aprendi a transgredir um pouco, mas com elegância, sem ser apanhado, porque se transgredíssemos e se fossemos apanhados levávamos uma lambada. Havia castigos severos e havia aqueles castigos de não poder ir ao fim de semana a casa e de ter de ficar encarcerado 15 dias seguidos. Era uma chatice.