A guerra dos tronos entre Belém e São Bento

A guerra dos tronos entre Belém e São Bento


Ainda faltam dois anos e meio de convivência, mas o ambiente de guerra que se vive entre Belém e São Bento tem cheiro de fim de ciclo. Costa já mostrou que não está para brincadeiras. E Marcelo?


por Raquel Abecasis

Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa conseguiram a proeza de colocar o Conselho de Estado, um órgão consultivo do Presidente da República composto por senadores, no centro da polémica política.

O conflito aberto em que os dois principais protagonistas da política portuguesa se envolveram desde a recusa por parte de António Costa de demitir João Galamba, como lhe exigia Marcelo Rebelo de Sousa, tem levado a um constante medir de forças entre Presidente e primeiro-ministro. O problema é que os dois têm armas e poderes diferentes e, face a um primeiro-ministro com poder absoluto, ao Presidente pouco mais resta do que fazer recurso a vetos e convocações de Conselhos de Estado.

O segundo ato do Conselho de Estado desta semana esteve envolto em polémica, depois de o silêncio de António Costa ter caído com estrondo na sala dos conselheiros e ter extravasado para fora da sala de reuniões.

 

É preciso pôr o Presidente na ordem

Dentro do Partido Socialista as reações não se fizeram esperar. Descontentes com os atos e as palavras de Marcelo nos últimos tempos, os socialistas passaram ao ataque.

O descontentamento já vinha desde o momento em que o Presidente tomou a decisão inédita de convocar um Conselho de Estado em dois atos. O primeiro, no final de um ano político em que o Governo esteve debaixo de fogo e se chegou mesmo a colocar o cenário de dissolução. O segundo, numa altura em que os socialistas desejavam que os problemas tivessem ficado enterrados na areia, e que a rentrée ditasse um novo ciclo.

Ao convocar novo encontro para finalizar o primeiro, consideram os socialistas, o Presidente quis instrumentalizar o Conselho de Estado para pressionar o Governo. Essa terá sido a razão principal que levou António Costa a manter-se em silêncio, não dando palco nem espaço a Marcelo. Mesmo assim, as fugas de informação sobre o que se passou no interior da reunião vieram reabrir o debate e os socialistas fizeram toque a rebate para combater os excessos presidenciais.

«Quem fiscaliza o Governo é a Assembleia da República» e «o Conselho de Estado é um órgão consultivo e confidencial» são os dois argumentos que se ouvem no Largo do Rato e que foram verbalizados por António Costa nas horas seguintes ao final da reunião em Belém.

Marcelo terá recebido o recado, ao vir dizer que ficou «estupefacto e incomodado» com as interpretações que se fizeram sobre o silêncio do primeiro-ministro. Numa tentativa de apaziguar os ânimos, o Presidente explicou que já sabia antecipadamente que António Costa não iria usar da palavra e descartou por completo a leitura de que o silêncio fosse um ataque ao Presidente. «O primeiro-ministro veio desmentir notícias de hoje sobre as quais o seu silêncio era contra o Presidente da República. Eu tenho lido essas notícias e ficado estupefacto com elas, mas percebo que ele tenha esclarecido, que não se tratava disso».

 

Paz ou recuo tático

A dúvida que persiste no início de mais um ano político é se o choque de titãs desta semana entre as duas principais figuras do Estado colocou um ponto final no conflito institucional cada vez mais tenso ou se as declarações de Marcelo significam apenas um recuo tático.

Os próximos dias poderão trazer alguma luz sobre o que se pode prever para o futuro. Já está agendada para o final do mês nova votação do pacote Mais Habitação na Assembleia da República, que obrigará o Presidente a promulgar o diploma que chegou a classificar como «lei cartaz». Entre as muitas declarações que fez no final do Verão, Marcelo alertou para o facto de que o caso não fica encerrado com a promulgação, porque depois é preciso regulamentar as leis, que terão que voltar às mãos do Presidente. Será que o aviso é para valer, face às novas circunstâncias, ou será que entretanto o Presidente acha melhor deitar a toalha ao chão?

E o Governo? Tem mesmo que regulamentar através de legislação ou pode fazê-lo por portaria? Se for esse o caso, a intervenção do Presidente fica mesmo pela promulgação da lei e nada mais passará pelas suas mãos.

Outra pista para perceber em que modo estão as relações entre Presidente e primeiro-ministro é a  forma como a partir de agora Marcelo vai avaliar a legislação que lhe chega para promulgação. Desde o episódio Galamba que praticamente não há diploma que não seja aprovado ou vetado pelo Presidente sem ser acompanhado de apreciações críticas do chefe de Estado. Este tem sido o método privilegiado para colocar pressão em São Bento.

Os socialistas e António Costa estão agora de olho em Marcelo, e, a avaliar pelos primeiros episódios desta rentrée, é de esperar que António Costa não fique de braços cruzados diante de um Presidente líder da oposição. Embora o facto já lhe tenha servido para dar uma ferroada a Luís Montenegro no regresso de férias.