A debilidade da consciência cívica construída ao longo dos últimos quase cinquenta anos de democracia, depois do obscurantismo do Estado Novo em matéria de direito, liberdades e garantias, faz com que muitos persistam num evidente desequilíbrio na observância dos deveres associados aos direitos individuais e da pertença à sociedade portuguesa. Essa resistência em relação aos deveres que estão nas órbitas das esferas de liberdade individuais é pasto para as complacências e as tentações de fuga ao cumprimento integral das obrigações que dormitam nas cominações das regras legais, no bom senso ou na incontornável clareza dos sinais. Além do que é imposto, até com violência moral, como acontece com a carga fiscal, a falta de consciência e de evidência da importância dos direitos conduz a uma certa desvalorização do compromisso cívico com os deveres. E isto acontece em relação aos mais próximos e em relação aos outros, numa notória fragilização do contrato social e do deslaço na mobilização para causas comuns.
Quantas vezes ignoramos os sinais, as tendências e os comportamentos para prosseguirmos no conforto das nossas existências ou nos enleios dos ritmos dos nossos dias, à procura de levar o barco a bom porto, sem grandes perturbações? A criança está a fazer birra, dê-se o telemóvel para que se entretenha. Falhámos em relação a alguém, dê-se um mimo material.
Quantas vezes, apesar dos meios científicos e tecnológicos, o Estado, as instituições e os media não se cingem ao imediato e às circunstâncias para não terem de ser confrontados com as realidades, as dinâmicas, os desvios e as distorções das ideias, dos comportamentos ou da afirmação de interesses parciais? Por conveniência estratégica ou de circunstância, deixa-se andar. Pode ser que passe. Pode ser que não ganhe relevância, mas, por vezes, ganha, na forma de tragédia mais ou menos evidente. Já foi assim em tanta coisa, mas, a indiferença perante os sinais, numa espécie de compromisso entre o “deixa andar” e o desenrascanço, tem tudo para nos sujeitar à apresentação de faturas no futuro.
Este quadro de miséria, enfunado pela debilidade cívica e pelas indiferenças dos decisores perante os sinais, poderia ser aplicado a muitas realidades que transformam os quotidianos dos portugueses em pesadelos de sobrevivência para pagar contas e compromissos com o Estado ou os projetam para órbitas de dependência, de solidariedade ou de caridade. Como retrata as disfunções de funcionamento e organização que impedem a realização individual e comunitária penalizadas pelas tentações do “deixa andar” e de as regras serem para os outros, perante a letargia da sanção, que faz compensar o incumprimento e o crime.
Numa sociedade de sucessivas demissões, em casa e na sua, sobra para a escola e deveria sobrar para os decisores quando confrontados com evidentes sinais de preocupação, mas, não. A regra é o deixa andar e o brandar de teses e indignações quando alguém resolve agir.
É uma evidência que existe entre os mais novos uma amplificação dos défices de atenção, de concentração e de compromisso com as regras. Uma parte porque replicam as heranças, outros porque as circunstâncias os levaram a assumir comportamentos e subterfúgios durante os processos de crescimento e de aprendizagem.
Perante as evidências de há anos, potenciadas pelas diversas expressões das redes sociais e pelo crescente sedentarismo, tem vigorado o “deixa andar”, perante a panóplia de problemas e desafios que as famílias, as comunidades e o país enfrentam. É quase sempre assim. Mas, não. Há quem não se resigne e resolva procurar agir face aos sinais e às realidades.
O município de Almeirim, em articulação com a comunidade escolar, decidiu condicionar o uso dos telemóveis pelas crianças nas escolas do concelho do 2.º e 3.º ciclo durante o tempo em que estão no espaço da escola pública. A iniciativa municipal “Desliga-te! Dentro da escola o foco é outro” pretende reduzir o uso do telemóvel no espaço escolar, aumentar os níveis de atenção nas aulas, promover a interação social, reduzir os comportamentos aditivos com as tecnologias e combater o cyberbulling. Em democracia, pode-se debater tudo. Podem até os complacentes com as inações de tantos e os frágeis compromissos com os deveres, eclodir nos espaços públicos para contestar quem faz, mas é incontornável o mérito do Pedro Miguel Ribeiro que, perante os sinais e as preocupações de quem intervém nos processos de aprendizagem, decidiu agir. Não se remeteu ao conforto da indiferença perante os sinais e as tendências, não pensou na sobrevivência política, não se reconduziu ao “deixa andar”, agiu. E bem, naturalmente com espírito aberto para avaliar os impactos no final do letivo.
Em boa parte das ocasiões, nada fazer não é grande solução. Perpétua e nada resolve. É nisto que andamos em demasiadas áreas da sociedade e problemas estruturais, perante a complacência e a falta de exigência de muitos. Vai sendo tempo de mudar.
NOTAS FINAIS
REGRESSO COXO. Com nuvens negras no horizonte dos quotidianos dos portugueses, da habitação às despesas de consumo, o inacreditável número de greves que persistem na saúde, na educação, na justiça, entre outros setores, antecipa um regresso às rotinas pejado de constrangimentos anteriores às férias. O reset da falta de paciência dos cidadãos no verão pode ir por água abaixo.
O TIRO AO LADO. O problema do comportamento do presidente da Federação Espanhola de Futebol não foi as funções, a mediatização ou os aproveitamentos das causas. O problema é o que significa de expressão do que é estrutural. É que a ter em conta alguns dos comentários, parecia que a situação era grave por ser concretizada por alguém em funções. Não, é o comportamento cívico em si que é grave. Ou ao cidadão comum, sem funções acrescidas, já é permitido?
AVANTE, MAS POUCO. A Festa lá se fez, com reiterado compromisso com a posição de anuência e complacência do PCP em relação à invasão da Ucrânia pela Federação Russa, feita soviética. Não há paz, sem condenação inequívoca de quem fez a guerra. A Rússia pode não retirar, o PCP corre o risco de ser retirado do Parlamento Europeu.