O nº 2 do artigo 275º da Constituição da República Portuguesa – “As Forças Armadas compõem-se exclusivamente de cidadãos portugueses” – é visto como um empecilho à vontade de encontrar a preço de saldo os estrangeiros que encham os quartéis de onde fogem os portugueses. Gente prática e dotada de espírito simplificador reclama uma revisão constitucional que elimine o desaforo do exclusivo nacionalista na composição das Forças Armadas. Gente ainda mais prática e dotada de espírito maquiavélico, atenta à ausência de propostas de modificação do nº 2 do artigo 275º no processo de revisão constitucional em curso, sugere (mais) uma revisão da lei da nacionalidade: um contrato de prestação de serviço militar daria direito à atribuição da nacionalidade portuguesa (imagina-se que revogável em caso de incumprimento contratual).
Fazer portugueses não é fácil e nos últimos anos nem os portugueses (e portuguesas) os fazem. Noutros tempos a Constituição definia a materialidade do Português e do contrato social com o Estado (que não social), defesa nacional incluída: “Todo o Português deve ser justo. Os seus principais deveres são venerar a Religião; amar a Pátria; defendê-la com as armas, quando for chamado pela lei; obedecer à Constituição e às leis; respeitar as Autoridades públicas; e contribuir para as despesas do Estado.” (Constituição de 1822, artigo 19º).
Adeptos da escola pedagógica consideram o serviço militar obrigatório como uma etapa formativa da cidadania e um garante contra derivas pretorianas. A revisão constitucional de 1997 eliminou a obrigatoriedade do serviço militar e abriu caminho para a profissionalização das Forças Armadas, mantendo a exclusividade da nacionalidade portuguesa. 26 anos depois a discussão do perímetro do recrutamento anuncia versões locais das legiões estrangeiras (com efectivos não segregados em unidades próprias, ao contrário do que acontece em França e em Espanha), num mercenarismo em que se atribuiria a nacionalidade portuguesa a troco da prestação de serviços (spoiler alert: depois do último voo de Prigozhin, Putin mandou legislar a obrigação de os mercenários jurarem lealdade ao Estado).
Em muitas e brilhantes carreiras políticas pontificam soluções para problemas criados pelos próprios. Os melhores dos mais brilhantes conseguem resolver problemas que não existem. A lei portuguesa da nacionalidade já é muito generosa por via do ius soli: os filhos de imigrantes residentes em Portugal e que aqui nasçam são cidadãos portugueses. E vários já exercem funções militares em Portugal (já a prestação de serviço militar não obrigatório a Estado estrangeiro é fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa por efeito da vontade, Lei 37/81, alínea c) do nº 1 do artigo 9º).
A solução para as dificuldades de recrutamento dos militares é a mesma que existe para o recrutamento de professores, enfermeiros, médicos, polícias e quaisquer outros funcionários ou agentes. Não sendo o dinheiro elástico e não sendo possível ao Estado extorquir aos portugueses muito mais em impostos, taxas e contribuições é chegado o momento de decidir quais é que são as necessidades colectivas que devem ser satisfeitas com recursos públicos. Na satisfação de necessidades colectivas em matéria de saúde, educação e segurança social nem todos, em nome de critérios de justiça material, devem receber as mesmas prestações. Já a necessidade colectiva de segurança nacional não é divisível pelos diversos indivíduos e não é sensível à sua condição económica.
Fazer do recrutamento dos que integram as Forças Armadas a race to the bottom, transformando a base da pirâmide num caldo de miséria como já acontece por vezes na agricultura e na restauração é uma falsa solução capaz de pôr em causa o Estado.