O Estado, os cortes da Santa Casa e os feitos desportivos excecionais


É de questionar se, perante a desresponsabilização social e desportiva, se devem manter os privilégios da Santa Casa nas concessões públicas de jogos de sorte e azar.


De supetão a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, detentora de concessões exclusivas de jogos de sorte e azar e fiel depositária de competências da segurança social no concelho de Lisboa, comunicou a diversas federações desportivas e aos comités olímpicos e paraolímpicos o fim dos apoios financeiros. A repentina interrupção dos compromissos com o desporto português, fundada nas dificuldades da instituição, depois de sucessivos desmandos de gestão, em Portugal e no exterior, a coberto da rédea larga do poder político, é reveladora da relação nacional com a prática desportiva. Exultamos com os feitos desportivos, logo clonados pela presença de protagonista político qualquer, por rasgados elogios sobre a conquista ou por uma reação de afago do Presidente da República a partir de Belém ou de outra latitude, mas achamos coletivamente que tudo cai do céu. Aliás, o facto mais espantoso no plano corrente do desenvolvimento das atividades desportivas de competição, é o de algumas federações terem de contrair empréstimos bancários ou negociarem descobertos para boa parte dos primeiros meses de cada ano, porque o dinheiro do Estado só chega lá para junho. Ou termos atletas de seleções nacionais a conduzirem e a deslocarem-se de automóvel durante milhares de quilómetros, a dormirem em tendas, para depois competirem nos campeonatos da Europa da modalidade em nossa representação, como acontece, por exemplo, com o kayak Polo.

Sem um esforço integrado e sustentado, os feitos desportivos continuarão a ser acontecimentos excecionais, fruto de circunstâncias e não de uma vontade coletiva, da alocação de recursos e da previsibilidade de uma orientação política destinada à promoção da prática de estilos de vida saudáveis, à valorização do talento nacional e da afirmação de bons níveis competitivos. 

Sem os apoios da Santa Casa, resultantes das contrapartidas das concessões exclusivas dos jogos de sorte e azar, perde-se ainda mais chão para a sustentabilidade da prática desportiva de competição e para as atividades de formação das diversas modalidades, a menos que o Estado se chegue à frente, disponibilizando mais recursos para o setor, como devia fazer de forma sustentada, a tempo e horas, sem cativações ou burocracias ridículas, entre o desleixo e as conta-gotas.

A degradação da saúde financeira da Santa Casa aconteceu porque a instituição sempre foi vista como uma espécie de prateleira dourada de protagonismos, com uma ampla margem de arbitrariedade na gestão, recursos infindáveis e diminuto escrutínio público e político das tutelas. O gigantesco poder de meios publicitários num contexto de empresas de media à míngua de dinheiro para as contas e a capacidade de integrar estrategicamente pessoas nos quadros para reforçar os compromissos com o perfil das gestões trataram do resto das cortinas de fumo. As dificuldades financeiras resultam da complacência do Poder Central e das suas lideranças, comprometidos com grupos de interesses partidários, e de opções de gestão desastrosas que, há muito, deveriam ter sido estancadas e devidamente sancionadas. Uma vez mais, os sinais sucederam-se, sem que houvesse ação ou escrutínio. Agora é gerir o quadro de desastre, com impactos relevantes na sociedade portuguesa. Pagam os atletas, as federações desportivas e os comités olímpicos e paraolímpicos. Resultarão em menos desporto e menos resultados para as exaltações nacionais com os feitos de mulheres e homens que são seres excecionais, não o resultado de uma aposta sustentada na atividade física e nas modalidades desportivas.

É claro que persistirão sempre umas migalhas no Orçamento de Estado, a responsabilidade social de algumas empresas e o compromisso sustentado das autarquias locais com milhares de clubes e instituições do movimento associativo que disponibilizam oferta de atividade física e apoiam o desenvolvimento de modalidades, mas é suficiente? Claro que não.

Sem uma vontade política sustentada e traduzida em previsíveis recursos, públicos e privados, os feitos continuarão a ser excecionais e Portugal continuará a ser o país da União Europeia com pior atividade física, em que 45% dos adultos portugueses fazem menos de 150 minutos de atividade física por semana, numa espiral de perda acentuada desde 2017.

Sem somar na aposta política e nos apoios, em vez de subtrair, como acontece com a deliberação da Santa Casa, não se estanca o galgar de terreno do sedentarismo, com impactos no bem-estar e nos serviços de saúde. 

Acresce que os condicionamentos da pandemia na prática desportiva, sobretudo das modalidades coletivas, deveriam estar a ser alvo de uma estratégia integrada de resgate dos que se ficaram pelas consolas e de mobilização de mais crianças e jovens para a atividade desportiva sustentada, além dos sacrifícios fantásticos de muitos pais, famílias, clubes e federações para que as dinâmicas positivas se mantenham. Mas, não, a resposta do Estado, através da Santa Casa, é a do corte nos apoios, a um ano dos Jogos Olímpicos de Paris. Que belo exemplo para a realidade e para a sociedade portuguesa!

Acresce ainda que, para além da promoção do bem-estar mental e físico, a atividade física e o desporto têm uma enorme capacidade de integração social e de geração de dinâmicas positivas em contextos individuais e comunitários difíceis. Também por isso, deveriam ser um importante pilar das políticas de saúde, integração social, segurança social e administração interna. Mas, não, está remetida a impulsos excecionais do Poder Local e de algumas sensibilidades isoladas mais apuradas, sem meios de sustentabilidade e generalização do virtuosismo do desporto na integração e realização individual.

Em suma, a retirada de apoios ao desporto da Santa Casa é um desastre, quem gerou o quadro de dificuldades na instituição, por ação e omissão, deve ser responsabilizado e o Estado tem de suprir a perda de recursos para as federações e comités, em tempo útil e para o futuro. Também é de questionar se, perante a desresponsabilização social e desportiva, se devem manter os privilégios da Santa Casa nas concessões públicas de jogos de sorte e azar.

É preciso vontade e recursos para transformar a excecionalidade dos feitos desportivos em algo corrente, resultante de outra aposta na atividade física e nas modalidades desportivas. Olha-se e não se vislumbra essa ambição.

O Estado, os cortes da Santa Casa e os feitos desportivos excecionais


É de questionar se, perante a desresponsabilização social e desportiva, se devem manter os privilégios da Santa Casa nas concessões públicas de jogos de sorte e azar.


De supetão a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, detentora de concessões exclusivas de jogos de sorte e azar e fiel depositária de competências da segurança social no concelho de Lisboa, comunicou a diversas federações desportivas e aos comités olímpicos e paraolímpicos o fim dos apoios financeiros. A repentina interrupção dos compromissos com o desporto português, fundada nas dificuldades da instituição, depois de sucessivos desmandos de gestão, em Portugal e no exterior, a coberto da rédea larga do poder político, é reveladora da relação nacional com a prática desportiva. Exultamos com os feitos desportivos, logo clonados pela presença de protagonista político qualquer, por rasgados elogios sobre a conquista ou por uma reação de afago do Presidente da República a partir de Belém ou de outra latitude, mas achamos coletivamente que tudo cai do céu. Aliás, o facto mais espantoso no plano corrente do desenvolvimento das atividades desportivas de competição, é o de algumas federações terem de contrair empréstimos bancários ou negociarem descobertos para boa parte dos primeiros meses de cada ano, porque o dinheiro do Estado só chega lá para junho. Ou termos atletas de seleções nacionais a conduzirem e a deslocarem-se de automóvel durante milhares de quilómetros, a dormirem em tendas, para depois competirem nos campeonatos da Europa da modalidade em nossa representação, como acontece, por exemplo, com o kayak Polo.

Sem um esforço integrado e sustentado, os feitos desportivos continuarão a ser acontecimentos excecionais, fruto de circunstâncias e não de uma vontade coletiva, da alocação de recursos e da previsibilidade de uma orientação política destinada à promoção da prática de estilos de vida saudáveis, à valorização do talento nacional e da afirmação de bons níveis competitivos. 

Sem os apoios da Santa Casa, resultantes das contrapartidas das concessões exclusivas dos jogos de sorte e azar, perde-se ainda mais chão para a sustentabilidade da prática desportiva de competição e para as atividades de formação das diversas modalidades, a menos que o Estado se chegue à frente, disponibilizando mais recursos para o setor, como devia fazer de forma sustentada, a tempo e horas, sem cativações ou burocracias ridículas, entre o desleixo e as conta-gotas.

A degradação da saúde financeira da Santa Casa aconteceu porque a instituição sempre foi vista como uma espécie de prateleira dourada de protagonismos, com uma ampla margem de arbitrariedade na gestão, recursos infindáveis e diminuto escrutínio público e político das tutelas. O gigantesco poder de meios publicitários num contexto de empresas de media à míngua de dinheiro para as contas e a capacidade de integrar estrategicamente pessoas nos quadros para reforçar os compromissos com o perfil das gestões trataram do resto das cortinas de fumo. As dificuldades financeiras resultam da complacência do Poder Central e das suas lideranças, comprometidos com grupos de interesses partidários, e de opções de gestão desastrosas que, há muito, deveriam ter sido estancadas e devidamente sancionadas. Uma vez mais, os sinais sucederam-se, sem que houvesse ação ou escrutínio. Agora é gerir o quadro de desastre, com impactos relevantes na sociedade portuguesa. Pagam os atletas, as federações desportivas e os comités olímpicos e paraolímpicos. Resultarão em menos desporto e menos resultados para as exaltações nacionais com os feitos de mulheres e homens que são seres excecionais, não o resultado de uma aposta sustentada na atividade física e nas modalidades desportivas.

É claro que persistirão sempre umas migalhas no Orçamento de Estado, a responsabilidade social de algumas empresas e o compromisso sustentado das autarquias locais com milhares de clubes e instituições do movimento associativo que disponibilizam oferta de atividade física e apoiam o desenvolvimento de modalidades, mas é suficiente? Claro que não.

Sem uma vontade política sustentada e traduzida em previsíveis recursos, públicos e privados, os feitos continuarão a ser excecionais e Portugal continuará a ser o país da União Europeia com pior atividade física, em que 45% dos adultos portugueses fazem menos de 150 minutos de atividade física por semana, numa espiral de perda acentuada desde 2017.

Sem somar na aposta política e nos apoios, em vez de subtrair, como acontece com a deliberação da Santa Casa, não se estanca o galgar de terreno do sedentarismo, com impactos no bem-estar e nos serviços de saúde. 

Acresce que os condicionamentos da pandemia na prática desportiva, sobretudo das modalidades coletivas, deveriam estar a ser alvo de uma estratégia integrada de resgate dos que se ficaram pelas consolas e de mobilização de mais crianças e jovens para a atividade desportiva sustentada, além dos sacrifícios fantásticos de muitos pais, famílias, clubes e federações para que as dinâmicas positivas se mantenham. Mas, não, a resposta do Estado, através da Santa Casa, é a do corte nos apoios, a um ano dos Jogos Olímpicos de Paris. Que belo exemplo para a realidade e para a sociedade portuguesa!

Acresce ainda que, para além da promoção do bem-estar mental e físico, a atividade física e o desporto têm uma enorme capacidade de integração social e de geração de dinâmicas positivas em contextos individuais e comunitários difíceis. Também por isso, deveriam ser um importante pilar das políticas de saúde, integração social, segurança social e administração interna. Mas, não, está remetida a impulsos excecionais do Poder Local e de algumas sensibilidades isoladas mais apuradas, sem meios de sustentabilidade e generalização do virtuosismo do desporto na integração e realização individual.

Em suma, a retirada de apoios ao desporto da Santa Casa é um desastre, quem gerou o quadro de dificuldades na instituição, por ação e omissão, deve ser responsabilizado e o Estado tem de suprir a perda de recursos para as federações e comités, em tempo útil e para o futuro. Também é de questionar se, perante a desresponsabilização social e desportiva, se devem manter os privilégios da Santa Casa nas concessões públicas de jogos de sorte e azar.

É preciso vontade e recursos para transformar a excecionalidade dos feitos desportivos em algo corrente, resultante de outra aposta na atividade física e nas modalidades desportivas. Olha-se e não se vislumbra essa ambição.