A influência da Constituição dos EUA nos países da América latina não se fica pela tentativa de cópia do sistema de governo. Presidencialismos sul-americanos há muitos, mas alguns com um grau elevado de originalidade. Na Argentina as eleições primárias não são deixadas, como nos EUA, à liberdade organisativa dos partidos políticos. Na eleição do Presidente da República o Estado institucionalizou, desde 2009, eleições primárias, conhecidas como PASO (primárias, abertas, simultâneas e obrigatórias) dotadas de uma cláusula barreira que exclui os candidatos que não obtenham pelo menos 1,5% dos votos. As PASO podem penalizar os blocos políticos que apresentem mais do que um candidato. No passado domingo sobraram três fortes candidatos a Presidente (e os respectivos candidatos a Vice-Presidente) um outsider (Javier Milei), um dos peronistas (Sergio Massa) e a segunda dos peronistas (Patricia Bullrich) e dois candidatos residuais (que obtiveram respectivamente 3,83% e 1,87% dos votos). Concluídas as PASO a primeira volta das presidenciais decorrerá a 22 de Outubro e uma eventual segunda volta, caso o vencedor não obtenha 45% dos votos ou obtendo 40% tenha menos de 10% de vantagem sobre o segundo classificado, terá lugar a 12 de Novembro.
Javier Milei, no mundo conhecido como El peluca, por respeito à farta e despenteada cabeleira (cuja forma o próprio diz dever-se à mão invisível de Adam Smith), ganhou as eleições primárias com com 30% dos votos, quase 10% à frente do candidato peronista melhor votado. Milei auto-qualifica-se como anarco-capitalista e promove uma versão simplificada de algumas ideias da escola austríaca do pensamento económico, com Hayek à cabeça. Assume-se como um académico divulgador das boas soluções para os problemas do Estado: “Todos y cada uno de los gobiernos, hasta los menos despóticos, han obtenido siempre la parte más importante de sus ingresos mediante la recaudación coercitiva de impuestos. A lo largo de la historia ha sido la principal causa de la esclavitud y la muerte. No importa cuán pequeño sea el poder del gobierno, no importa cuán baja sea la carga impositiva o cuán igualitaria su distribución, de cualquier modo crea dos clases desiguales e inherentemente conflictivas en la sociedad:
(i) Aquellos que pagan en forma neta los impuestos («los contribuyentes»).
(ii) Los parásitos que viven en forma neta de los impuestos.” […] “Por consiguiente, en una sociedad auténticamente libre, en la cual se respeten todos los derechos individuales de la persona y de la propiedad, el Estado debería necesariamente dejar de existir.” (“El camino del libertario”, Buenos Aires, 2022, pp. 171-2).
A morte do Estado como salvação do capitalismo e da propriedade tem uma justificação histórica centrada na realidade argentina e nas sucessivas situações de bancarrota: “En esta colosal historia de decadencia, el centro de la escena lo ocupa el Estado. Una institución que, inventando derechos donde no los hay, ha venido cercenando libertades individuales a discreción, cuyas formas más recurrentes han sido el déficit fiscal y el default en al menos tres versiones:
(i) el aumento de la presión tributaria,
(ii) la inflación,
(iii) el repudio de la deuda.” (idem, pp. 173-4).
Para acabar de vez com a expropriação por via da inflação (e a bancarrota associada ao aumento da dívida pública) Milei propõe a dolarização da Argentina e, como brinde, dinamitar o Banco Central.
Em Portugal os populistas não são estudiosos dos economistas clássicos e não escrevem programas eleitorais sob a forma de divulgação académica. Mas tal não os torna nem menos perigosos nem menos eficazes na captura do voto.