As Jornadas Mundiais são mais um pretexto para exercitarmos num caso concreto, as suficiências e as insuficiências do povo português e dos decisores que ele escolhe. O problema das Jornadas não é a sua realização, é tudo o que está subjacente aos restantes dias do ano, dia após dia, ano após anos, sem resposta estruturada ou superação. O problema são os desencantos e as disfunções do quotidiano, sem atenção, resposta ou outra ação que mitigue ou resolva. O problema é a leviandade com que coletivamente somos lançados para projetos locais, nacionais e internacionais, sem a transparência das candidaturas, o debate público e a adequada avaliação dos custos e retornos. Alguém decide, avança-se e paga-se o que for preciso.
A rota de aproximação às Jornadas Mundiais serviu para tudo, adensadas por um ano em que os escândalos de abusos sexuais na Igreja Católica ganharam relevância mediática e foram tratados com os pés pela sua hierarquia, completamente desfasada do senso que há muito se exigia para reconhecer a realidade que tolhia a sua ação positiva em muitos aspetos nas comunidades locais.
O EXERCITAR DOS PRINCÍPIOS
Indignaram-se muitos com os gastos e a fluidez dos processos de concretização por ajuste direto invocando a natureza laica do Estado português na lei, mas tantas vezes torpedeada pela prática sem nenhum tipo de escrutínio público ou mediático. Aliás, até existem meios de comunicação social tão zelosos de zurzir as distorções alheias nos processos e gastos que não hesitam em engendrar mecanismos de ajuste direito com autarquias locais para sorver milhares de euros a propósito de projetos que de especiais só têm o nome, como acontece com a Cofina.
Como agnóstico fustigado por demasiadas inconsistências da crença, não me choca que o país possa acolher um evento destes, com a projeção internacional que implica, mas gostava de ver o mesmo nível de exigência cívica, de ativismo e de escrutínio com a governação do país, as opções políticas e os problemas estruturais que persistem, muitos remetidos para uma indiferença sem expressão mediática ou pública.
O problema não são as Jornadas, é o que não é feito no quotidiano.
O EXERCITAR DO OPORTUNISMO
Perdida a fase do escrutínio da candidatura e da decisão, há quem aproveite o momento para colocar em cima das mesas da existência as reivindicações não atendidas e pretensos despertares para realidades como se fossem novas, num misto entre abuso do estado de necessidade da oportunidade e mobilização para a penalização da falta de decisão favorável às pretensões. Uma vez mais, havendo consciência para as realidades, o problema é deixar arrastar a situação até às Jornadas, decidindo em estado de necessidade e sem ponderação das questões gerais de justiça relativa.
O EXERCITAR DO ESPANTO
Descontado o estrutural laxismo na preparação de acontecimentos previsíveis e o reiterado triunfo dos umbigos em tudo o que tem existência mediática, gerou espanto a desarticulação das várias instituições envolvidas na organização das Jornadas, em constantes sacudir da água do capote quando o tema queimava ou protagonismo da concretização quando era positivo, e os ajustes diretos dos projetos do evento.
Há muito que é uma evidência que o tempo da decisão é incompatível com o tempo da necessidade ou da concretização. É assim com o que é expectável, imagine-se com o que é extemporâneo, que só poderia ter existência como risco ponderado ou previsão. Os processos de decisão e de concretização precisam de ser revistos, sem se perder rigor, transparência e escrutínio. E, num tempo de inteligência artificial e algoritmos em barda, só mesmo a sobrevivência dos pequenos poderes e das burocracias podem justificar a morosidade dos processos incompatíveis com a concretização de respostas. A contratação pública é um pesadelo. As plataformas eletrónicas de contratação pública são uma vergonha, pelo menos, pela disparidade de regras e dinheiro que sorvem aos concorrentes, em inscrições, selos e afins.
O EXERCITAR DA DESPROPORÇÃO
Apesar de todo o ruído, das disputas organizativas e da mobilização de todos os meios para os fins em estado de necessidade, as Jornadas serão sempre um momento de exaltação para os crentes, de atenção para os outros, de projeção internacional do país e de aproveitamentos múltiplos. O problema não são as Jornadas, mas a desproporção de atenções, recursos e ações em relação aos problemas estruturais das pessoas e dos territórios, mas isso é coisa em que o Papa e a Igreja podem fazer muito menos que os cidadãos e os decisores políticos quantas vezes embalados em cortinas de fumo mediáticas, em agendas parciais e interesses sem nexo para a generalidade da população, no presente e para futuro.
Houve mais Jornadas ao longo do ano, na vontade de fazer, de concretizar e de responder que não teríamos a pobreza, o risco de pobreza, as desigualdades, as injustiças e a desesperança que vamos tendo.
O problema não são as Jornadas ou o exercitar das crenças com a presença do Papa, mas a falta de compromisso quotidiano com o que não foi feito em quase 50 anos de Democracia e a anuência face às disfunções do funcionamento da sociedade portuguesa. Até lá, boas Jornadas Mundiais.
NOTAS FINAIS
O DESLAÇO DO CRITÉRIO POLÍTICO. O triunfo dos habilidosos políticos e do vale tudo pelo poder confrontam-se por estes dias com as contradições passadas e com as expetativas do futuro. Governar sem ter ganho despertou a Pandora dos bloqueios e das imprevisibilidades. Agora, é lidar.
O VERÃO QUENTE E O INCENDIÁRIO. Em todos os sentidos, o Verão tem tudo para ser quente. Tiago Oliveira, a escolha de António Costa para presidente da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF), foi ao parlamento insultar os bombeiros com a falsidade de “receberem em função da área ardida” e os municípios por gastarem “uma barbaridade de dinheiro nos bombeiros, quando não gastam dinheiro a gerir a floresta”.
Desestabilizar o dispositivo de emergência e proteção civil em véspera de um grande evento e em plena época de incêndios é mais do que motivo para ir pregar para outra freguesia, fora das responsabilidades públicas e políticas.