O estio convida à simplificação da análise, mais ainda se feita de sound bites televisivos. A autópsia das eleições legislativas espanholas do passado domingo tem-se centrado na vitória moral da esquerda (mesmo perdendo as eleições…) sobre os perigos da extrema direita representada pelo Vox (que viu desaparecer 36,5% dos Deputados, passando de 52 para 33) ou no crescimento da direita, com o PP a passar de 89 para 136 Deputados, num Parlamento em que a maioria absoluta se atinge com 176 eleitos.
A diminuição da abstenção saiu cara ao PP. Em 2011 Mariano Rajoy obteve o mesmo número de votos da soma do PP e do Vox em 2023 (11,1 milhões) e conseguiu 186 Deputados. O método de Hondt premeia as coligações eleitorais pelo que o PP, ainda que ganhando mandatos ao Vox, “perdeu” os votos que numa coligação teriam rendido bem mais do que os sete Deputados que faltam à direita para ter uma maioria absoluta.
No jogo do perde-ganha o PP ganhou as eleições mas não será Governo porque dos pequenos partidos nacionalistas (ou, no limite, autonómicos) só contará com a abstenção de dois ou três que somados não têm mais do que quatro Deputados. PSOE e Sumar contarão com o apoio (ou a abstenção) dos restantes partidos nacionalistas e Pedro Sánchez não terá de chamar a carrinha das mudanças para sair da Moncloa.
Até aqui, e visto a partir da Lusitânia, nada de novo. A arte de gerigonçar é Made in Portugal. O efeito tónico das coligações eleitorais em sistemas proporcionais também é conhecido em Portugal, com dois exemplos históricos à direita (Aliança Democrática e Portugal à Frente). Desaparecido o CDS, o PSD encontra-se na mesma encruzilhada em que o PP se perdeu: sendo a coligação com o Chega/Vox indesejada, ou mesmo abertamente rejeitada, os votos que vá roubar à extrema direita podem não compensar a perda de Deputados garantida pela ausência de coligação.
Já os apoios parlamentares a conceder a um Governo de esquerda só têm um ponto em comum nos dois países: dispensam (ou recusam) uma presença no Governo. Já o preço político é bem diferente nos dois lados da fronteira. Há reivindicações dos nacionalismos regionais que têm uma expressão orçamental e, como aconteceu em Portugal com o Bloco e com o PCP, podem ser pagas. Já as reivindicações de “soberania” regional são dificilmente enquadráveis na actual Constituição espanhola. Em tese poder-se-ia admitir a transição do actual Estado autonómico para um verdadeiro Estado federal, quiçá um Estado confederal. Pelo menos um dos partidos que terá de se abster para garantir um governo Sánchez III, o Junts per Catalunya, e que elegeu sete Deputados, tem como programa a independência da Catalunha.
Sánchez tentará fazer ao Junts o que Costa fez ao Bloco e ao PCP: esticar a corda e provocar eleições no contexto político que lhe seja mais favorável. Há no entanto uma grande diferença entre os eleitorados de uns e de outros: os nacionalistas não serão sensíveis a propostas que não conduzam directamente à independência pelo que em novas eleições não haverá transferência de votos do Junts para o PSOE. De 2019 para 2023 o PSOE só ganhou um Deputado passando de 120 para 121. Em futuras eleições antecipadas terá de crescer o suficiente à custa do PP e do Vox para não precisar do Junts. E terá de fazê-lo sem alienar o eleitorado de esquerda, o do centro e os nacionalistas moderados.
O populismo continua a ser uma das grandes ameaças às democracias contemporâneas. Na versão nacionalista é ainda mais perigoso. Se o populismo nacionalista é de base regional é também o Estado que corre perigo.