Eleições espanholas derrota doce, vitória amarga

Eleições espanholas derrota doce, vitória amarga


Na noite de domingo todos sabiam que não bastava ganhar ou perder. Derrotado nas urnas, Sánchez discursou como um vencedor e prometeu encontrar ‘a fórmula de governabilidade’.


Na noite de domingo, contrariando as sondagens e com mais de 40 por cento dos votos contados, o PSOE estava em ligeira vantagem; com metade dos votos já contabilizados, o cenário era de empate entre blocos e, no fim da noite, já só faltando os votos da emigração, os cenários eram o de bloqueio e novas eleições, ou uma reedição de um ‘governo Frankenstein’ liderado por Pedro Sánchez. A expressão é do ex-líder do PSOE Alfredo Pérez Rubalcaba que, em 2018, afirmou que o os socialistas não podiam «ir para uma investidura de mão dada com os partidos independentistas, que querem destruir aquilo que eles querem governar».
O sistema partidário espanhol, como o português, ainda se caracteriza por dois partidos hegemónicos. O PP e o PSOE reforçaram o seu peso, concentrando 64,7 por cento dos votos (o que não acontecia desde 2016). Mas talvez seja imprudente falar no regresso do bipartidarismo. Na noite de domingo todos sabiam que não bastava ganhar ou perder, e a lógica era a de bloco: sem maioria absoluta e num parlamento com 11 partidos, seria preciso negociar. 
E os sistemas parlamentares podem produzir resultados aparentemente contraditórios, em que um PP vencedor perde e um PSOE derrotado pode ganhar; e em que o separatismo catalão, que teve nestas eleições o pior resultado desde 1982, se pode tornar ainda mais decisivo na determinação da política nacional. 

Nem Andaluzia, nem Extremadura

O PP venceu as eleições, mas com um resultado muito aquém da maioria folgada que Alberto Núñez Feijóo pedira aos eleitores. Os populares tinham colocado a fasquia de 150 deputados, mas ficaram-se pelos 133. Um crescimento de 47 deputados face a 2019, mas provavelmente insuficiente para dar a Feijóo a presidência do Governo.

Vários fatores explicam a subida do Partido Popular, desde uma maior mobilização entre a oposição, à absorção dos eleitores do defunto Ciudadanos ou o efeito do voto útil. Mas é possível que o PP tenha mobilizado e somado menos na última semana, face a uma esquerda apostada na remontada. E num tempo em que a política também é espetáculo, os eleitores poderão ter castigado a ausência de Feijóo no debate entre candidatos a chefes de Governo. 
Na sede do PP, a vitória vinha acompanhada de algum desânimo, visível, por exemplo, na cara da Presidente da Comunidade de Madrid, Isabel Díaz Ayuso. Depois de uma campanha inteira apostado em governar sozinho, repetindo o feito da Andaluzia, o partido era confrontado com a lógica de blocos. E não do bloco de direita que lhes assegurou o Governo da Extremadura depois das autonómicas, mas uma reedição dos pactos de Sánchez.

E houve, nessa noite, quem antevisse a repetição de 2015. Nesse ano o PP venceu as eleições, mas Mariano Rajoy, antecipando a impossibilidade de ter maioria nas cortes, recusou a nomeação do Rei para tentar formar governo, ato inédito na história da democracia espanhola. Se, na altura, o PP tinha uma vantagem de 33 deputados face ao PSOE, agora essa vantagem é de apenas 14. 

No discurso, Feijóo, lembrou que a última vitória dos populares fora há sete anos; que o PP tinha sido primeira força em 40 das 52 províncias e cidades autónomas, e que todos os partidos que ganharam eleições em Espanha, governaram. Na assistência gritava-se o nome de Ayuso e «Que te vote el Txapote». 
Nessa noite, como durante a campanha, foi a Sánchez que Feijóo lançou um repto e fez um pedido: «A nossa obrigação agora é que não se abra um período de incerteza em Espanha. E peço que ninguém tenha a tentação de voltar a bloquear Espanha. Peço expressamente ao Partido Socialista e ao resto das forças políticas que não bloqueiem Espanha mais uma vez».
Mas dentro do partido há quem não acredite na boa vontade dos socialistas. No dia seguinte às eleições, fontes próximas de Ayuso vaticinavam que «enquanto a direita estiver dividida, será tudo igual». Ayuso animou Feijóo a tentar a investidura, mas afirmou que «Sánchez já tem um pacto para vencer a nossa nação em duas semanas», deixando um aviso: «Estamos conscientes de que vêm aí tempos difíceis, mas são tempos de valores, unidade e patriotismo».

Vitória relativa 

O PSOE não venceu as eleições, mas superou, em deputados e número de votos, o resultado de 2019. O partido parece ter saído beneficiado pela decisão, arriscada, de Sánchez de precipitar o tempo político e convocar eleições. Antecipando-se uma derrota absoluta, os socialistas conseguiam uma vitória relativa.

Alguns fatores ajudam a compreender esta derrota com sabor de vitória. Primeiro, o PSOE não jogava para ganhar as eleições, mas para que o bloco de direita as perdesse. E, nesse sentido, venceu. As expectativas, em política, contam muito e, neste caso, eram baixas. O sinal emitido pelo resultado das autonómicas; uma situação económica difícil, e demonstrações públicas de rejeição a Sánchez (que foi vaiado quando foi votar no domingo) faziam antecipar um mau resultado para os socialistas. Finalmente, foram essenciais para o PSOE os inesperados ganhos eleitorais na Catalunha e no País Basco, à conta de transferência de voto independentista.

Uma derrota menos pesada e a ausência de maioria alternativa permitiram que Sánchez, o vencido, discursasse na varanda da sede socialista como se fosse vencedor: «Somos mais, muitos mais, os que queremos que Espanha avance, e assim continuará a ser».
No dia seguinte, na reunião com a cúpula do Partido, Sánchez deixava uma mensagem aos adversários: «Esta democracia encontrará a fórmula da governabilidade».

Terceiro lugar 

À direita do PP e à esquerda do PSOE, VOX e Sumar, havia uma competição pelo voto ideológico. E o Partido de Abascal venceu, conseguindo a posição de terceira força política. No entanto, no fim da noite, era a coligação liderada por Iolanda Díaz que somava para uma possibilidade de governo que se assemelhava, cada vez mais, a uma manta de retalhos.

O VOX perdeu, como esperado, face aos resultados de 2019. Embora a perda de votos não fosse significativa, traduziu-se numa redução mais acentuada de número de mandatos. Pior, o partido liderado por Abascal não era, como esperado à direita e temido à esquerda, chave para formar governo.
E na noite de domingo, só na Calle Bambu se admitiu a derrota. Com ironia, Abascal declarava que Feijóo não dependeria dele para governar, mas do sanchismo: «O Senhor Feijóo ganhou as eleições, como queria, não dependendo do VOX, como também queria, e imaginamos que manterá a oferta ao Partido Socialista, para que lhe permita governar».
Antecipando um dos cenários possíveis, Abascal afirmou que a aritmética do resultado era «uma má notícia para muitos espanhóis»: «Pedro Sánchez perdeu, mas pode bloquear ou ser investido com os seus sócios do comunismo, do separatismo golpista e do terrorismo, que terão agora muito mais poder de chantagem do que na legislatura anterior».
Abascal acusou Feijóo de desmobilizar o «eleitorado da alternativa», contribuindo para a «demonização» do VOX, e criticou a lógica bipartidarista e o apelo ao voto útil, afirmando que lesaram a soma do bloco alternativo. No fim, apresentou-se pronto para os dois cenários possíveis: continuar na oposição, ou uma repetição eleitoral. 

Sumar perde, mas mantém-se chave

O Sumar foi outra força que, perdendo, ganhou. O resultado eleitoral da coligação de Iolanda Díaz foi pior do que o do Podemos em 2019. Além disso, perdeu para o VOX a terceira posição. 
Mas na noite eleitoral, numa sede em festa, Yolanda Díaz declarou: «Hoje acredito que as pessoas vão dormir mais tranquilas». E prometeu: «A partir de amanhã, começarei a dialogar com todas as forças progressistas do nosso país para garantir o governo de Espanha». 
Mas também ali havia estados de ânimo divergentes. O semblante de Ione Belarra, a secretária-geral do UnidasPodemos, antecipava as críticas dirigidas a Iolanda Díaz no dia seguinte: «A estratégia de renunciar ao feminismo e inviabilizar o Podemos não funcionou eleitoralmente». Belarra lembrou a «generosidade» do seu partido ao assinar um «acordo inaceitável», e que o resultado da coligação tinha ficado «700.000 votos e muitos eleitos aquém do pior resultado do UnidasPodemos». 

O que se segue?
Neste momento os dois principais cenários são o de uma reedição dos pactos do sanchismo, ou o da repetição de eleições.
O Congresso dos Deputados deverá tomar posse a 17 de agosto. Depois, o Rei deverá consultar os vários partidos. O expectável seria que fosse Feijóo a ser chamado a tentar formar governo, mas isso não está determinado na Constituição. Para ter sucesso, o líder do PP precisaria de garantir uma maioria absoluta na primeira votação (176 votos), ou uma maioria relativa numa segunda tentativa, a ser feita dois dias depois. Tentativas que parecem destinadas a falhar, depois de Andoni Ortuzar, líder do Partido Nacionalista Basco, ter fechado a porta a qualquer diálogo. 
É assim possível que o Rei chame Pedro Sánchez a tentar formar governo. O que, sendo difícil, não é impossível.
Em caso de bloqueio, i.e., caso nem Feijóo nem Sánchez conseguissem os votos necessários para a investidura, as cortes seriam dissolvidas dois meses depois da primeira votação, e as eleições agendadas para 47 dias depois da dissolução. 

Amnistia e autodeterminação – o preço da investidura 

À esquerda, a hipótese de reedição de um ‘Governo Frankenstein’ não é totalmente unânime, mas tem apoios de peso. Segundo José Luis Rodriguez Zapatero, «é necessário fazê-lo, a política é isso», mas o chefe do Governo também lembrou que a discussão sobre um referendo de autodeterminação é «estéril» porque tal não é permitido pela Constituição. Por seu lado, a coligação Sumar já designou responsáveis pelas negociações com os partidos secessionistas.
A Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) e o Bildu partem para as negociações com a exigência de um referendo vinculativo. Mas a chave para a reedição está nas mãos de outro ator, o JuntXCat de Carles Puigdemont, ex-presidente da Catalunha e um dos responsáveis pelo referendo de 2017. O Tribunal Europeu de Justiça decidiu retirar a imunidade parlamentar a Puigdemont, que é deputado europeu e foragido da justiça espanhola.
Na noite de domingo, a porta-voz do JuntXCat, Míriam Noguera, foi taxativa: «Não faremos Sánchez presidente a troco de nada». Mas é possível que o façam, mediante cedências às duas grandes exigências das forças independentistas, até agora tidas como ‘linhas vermelhas’ para os socialistas: amnistia (desde logo a Puigdemont) e autodeterminação.
A ala clássica do PSOE já fez saber que rejeita esta hipótese, criticando que se faça de «árbitro da política nacional» uma pessoa que convocou um referendo ilegal.
A incerteza política que caracterizará os próximos meses é mais um fator de risco, num contexto de desaceleração da economia e regresso dos planos de ajuste do deficit e da dívida. Como Sánchez previa, e também por isso adiantou as eleições, o segundo semestre de 2023 não será fácil para Espanha.

Texto editado por 
José Cabrita Saraiva