Na semana passada, abordei a questão da multiplicação de normas preocupadas em dar conteúdo ao mundo do «politicamente correto».
Não é, porém, rigoroso dizer que a atual proliferação legislativa – quase poderíamos chamar-lhe poluição legiferante – e, mormente, a que vai desbravando novos conceitos e preceitos sancionatórios, se reduz a esse interessante e imaginoso campo de interditos e correspondentes punições.
A propensão do legislador para ir acrescentando novos crimes aos que já se encontram descritos no Código Penal e restante legislação criminal especializada cresce – ou, pelo menos, assim parece – na proporção inversa da maior ou menor capacidade da sociedade para lidar com alguma normalidade com as realidades que emergem, novas, todos os dias.
Na verdade, mais fácil do que refletir e encarar soluções políticas para o admirável mundo novo que, quotidianamente, nos envolve e cerca cada vez mais, é, reconheçamos, reduzir tudo a soluções simples de permitido e proibido e, logo, do crime ou da contraordenação.
Por tal razão, quase todos os fenómenos e condutas sociais – das mais corriqueiras às mais extravagantes – podem, hoje, ser analisados a partir de uma perspetiva do Direito sancionatório público e, portanto, têm, naturalmente, também, de ser alvo da apreciação obrigatória do Ministério Público e dos tribunais.
Hoje, com a multiplicidade de interesses particulares – muitos deles contraditórios – que se pede ao Direito sancionatório público que tutele, dificilmente o sistema judicial poderá responder-lhes em tempo útil e com igual empenho.
Muitas de tais condutas e situações poderiam, com vantagem, ser reguladas por outras áreas do Direito, que não exigem a intervenção vinculada do Estado, resultante – e bem – do princípio constitucional da legalidade no exercício da ação penal.
A opção pela previsão privilegiada de tais situações pelo Direito sancionatório público – qualquer que seja a sua inspiração – resulta, na verdade, em grande parte, da incapacidade económica da maioria dos cidadãos para litigarem, por si mesmos, na defesa dos seus direitos e interesses mais privados em outras sedes jurídicas e judiciais.
Isto é, o Estado vê-se obrigado a tutelar, oficiosamente, tais direitos e interesses, por via do Direito sancionatório público, não por acreditar na sua maior eficiência e adequação, mas por saber da incapacidade económica da maioria dos cidadãos para o fazer através de outros instrumentos legais.
Estes, mesmo quando simples e rápidos, obrigam os cidadãos que a eles recorrem a pagar cara a reposta da Justiça a que aspiram.
Acontece, assim, que, por esta via de excesso do Direito sancionatório, se «encharca» a sociedade de crimes e outras infrações cuja investigação, julgamento e eventual punição são, muitas vezes, de difícil interpretação, apuramento e também de delicada gestão, por parte do sistema judicial.
Mas, mais: pelo mesmo motivo – e mesmo tendo em conta o já referido princípio constitucional da legalidade (obrigatoriedade) no exercício da ação penal – não podem deixar de crescer os espaços de arbítrio na perseguição de todo o tipo de delitos, pois sempre sobram autênticas ou forjadas razões práticas para os justificar.
Tenha-se, como exemplo de uma justificação plausível, a sempre existente e repetidamente invocada escassez de meios de investigação de todo o tipo: humanos e técnicos.
O recente episódio de buscas na sede de um partido político e na casa de um antigo líder seu, conduzidas – ao contrário do que quase sempre sucede – por um número muito significativo de agentes policiais, demonstra bem como se podem fazer opções e como elas podem ser determinadas por razões que, aparentemente, são de difícil compreensão pública.
Este problema, aliás, não é novo.
Recordo-me bem das querelas que, para proveito político do Ministro da Justiça de então, tal problema motivou entre um antigo e prestigiado Procurador-Geral da República e um conhecido, e não menos considerado, Diretor da Polícia Judiciária.
É verdade que, entretanto, foram introduzidos no sistema mecanismos legais elegendo prioridades de política criminal definidas pela Assembleia da República e que podem, agora, legitimar algum campo de manobra, mesmo que curto, nas opções transitórias que o MP é obrigado a fazer para cumprir o princípio da legalidade.
Convenhamos, porém, que esta magistratura – e resta saber se ainda se pode falar hoje do MP como um todo coerente – não tem, nem nunca teve, poder real para se impor, e fazer impor, as prioridades que definiu aos órgãos de polícia criminal que com ela é suposto cooperarem.
Tais órgãos de polícia devem-lhe obediência no processo e na execução concreta das diligências necessárias, mas, tal como o sistema está desenhado, a eles, e só a eles, cabe a competência para escolher os meios técnicos e os agentes que hão-de executá-las.
Em tal opção, e em quem a toma, reside, portanto, um poder prático e real de decisão sobre a concretização efetiva das diligências ordenadas pelo MP, mesmo que não previsto, ou pensado na lei, para esse efeito.
Em suma, se os códigos apontam num sentido, as normas estatutárias e orgânicas e as diferentes obediências das polícias impõem, porém, as soluções que só estas – ou quem efetiva e superiormente as dirige -, na realidade, elegem.
Para reconduzir o sistema ao caminho certo, o constitucional – e não tenho dúvidas do seu acerto – é, no mínimo, necessário começar a estudar soluções de descriminalização de muitas condutas, baixando, em simultâneo, os custos da Justiça não sancionatória, de modo a dar aos cidadãos a possibilidade de agirem, por si, na defesa dos seus direitos e interesses, designadamente quando estes não respeitem nem afetem, verdadeiramente, a sociedade como um todo.
Deste modo, se reduziria o espaço de discricionariedade que o sistema consente – por vezes provoca e impõe – permitindo que a sociedade volte a tomar a sério a Justiça penal e os órgãos judiciários e do poder judicial aos quais incumbe pô-la em prática.
Devia, com efeito, ser proibido proibir tantas vezes.