‘Guerra’ nos resíduos perigosos

‘Guerra’ nos resíduos perigosos


O tratamento dos resíduos perigosos está atualmente nas mãos de duas empresas na Chamusca. O contrato de concessão termina em novembro e o Governo pretende mudar o licenciamento e abrir portas a mais operadores. A Zero questiona a medida e diz que poderá ser ‘desastroso do ponto de vista ambiental’ se não forem respeitadas as…


O Ministério do Ambiente e da Ação Climática tem a «intenção de mudar o modelo de licenciamento do tratamento de resíduos perigosos». A garantia foi dada ao Nascer do SOL pelo gabinete de Duarte Cordeiro e explica que a ideia é entrarem novos operadores neste mercado. Uma alteração que está a deixar a associação ambientalista Zero apreensiva e que a levou a pedir a uma reunião ao Governo para alertar para os riscos dessa decisão – após ter enviado uma carta a apontar para o perigo de não prorrogar as licenças dos CIRVER (Centros Integrados de Recuperação, Valorização e Eliminação de Resíduos), as duas unidades que existem atualmente na Chamusca.

«Até aqui esse tratamento estava confinado, porque os CIRVER estavam sujeitos a um acompanhamento por parte de um observatório que conta com a colaboração de várias entidades envolvidas. Uma das questões que se coloca com a abertura do mercado é a proliferação dos pontos de descarga de receção de resíduos perigosos, o que pode ser problemático, porque sabemos que a fiscalização é sempre muito limitada», diz ao nosso jornal o ambientalista Rui Berkemeier.

O caso remonta a 2008, altura em que o Governo lançou um concurso público para licenças para este tipo de tratamento de resíduos, a vigorar durante 10 anos – até aqui eram exportados – e apesar de a ideia passar por ter dois espaços um mais para norte e outro mais para sul do país, apenas a câmara da Chamusca mostrou-se disponível para receber os CIRVER. «Essa foi uma das vantagens do concurso. Portugal praticamente quase deixou de exportar resíduos perigosos. Ficámos um país bastante evoluído. Isso foi uma vitória ambiental e que começou a funcionar em 2008», salienta o responsável. 

A primeira prorrogação destes centros foi feita em 2018, mantendo os mesmos termos de exclusividade, no entanto, o contrato termina em novembro deste ano. Mas ao contrário do que aconteceu na primeira prorrogação há agora operadores privados disponíveis para fazer esse tipo de tratamento, daí o Governo estar a pensar em abrir a  porta para acabar com a atual exclusividade.

Perante este cenário, Rui Berkemeier diz apenas que há duas soluções: «Ou o Governo faz a prorrogação dos atuais centros ou terá de exigir as mesmas condições destes centros aos novos operadores», caso contrário, «poderemos estar perante a colocação de resíduos perigosos em aterros de resíduos não perigosos, o que do ponto de visa ambiental seria desastroso».

Mas esse cenário é afastado pelo Governo, que garante que vão ser mantidas «todas as exigências de segurança e proteção do ambiente e da saúde humana», referindo ainda que «a mudança de paradigma implica a não prorrogação das licenças atuais dos dois CIRVER existentes, dentro dos poderes de prossecução do interesse público do Ministério». «No entanto, é intenção do Ministério que os atuais CIRVER possam manter a sua atividade, à luz do regime legal que será aprovado em breve. O novo regime legal determinará que qualquer novo operador CIRVER cumpra os mesmos requisitos de segurança e exigência de atuação dos atuais, sendo também necessário obtenham autorização municipal, caso pretendam adaptar instalações existentes a CIRVER», acrescenta o Ministério de Duarte Cordeiro.

Argumento que não convence o responsável da Zero, que recorre ao parecer da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) que «conclui que, se os CIRVER ficarem sem a exclusividade, várias das unidades de tratamento que os constituem poderão deixar de funcionar, uma vez que esse funcionamento só decorria da obrigação que constava das atuais licenças dos CIRVER». E acrescenta: «Com a não prorrogação dessas licenças, os CIRVER deixam, assim, de ser obrigados a tratar os resíduos que são economicamente menos interessantes, o que, segundo a APA, corresponde a cerca de 20% dos resíduos perigosos que são tratados nestas unidades». Para concluir: «A confirmar-se a intenção do Governo de não prorrogar estas licenças, Portugal corre o sério risco de ter de voltar à exportação de resíduos perigosos, situação que praticamente tinha desaparecido com a entrada em funcionamento destas unidades».

Aliás, no encontro com o Governo a Zero questionou a necessidade de estar a ‘mexer’ em algo que funciona para abrir portas a algo incerto. «Neste momento, esta atividade está controlada, não temos registo de problemas. Claro que o tratamento de resíduos nunca é perfeito, há sempre uma ou outra coisa que pode melhorar, sem dúvida, mas no essencial, tem funcionado bem. Estamos receosos e alertámos o secretário de Estado para o problema de estar a mexer numa coisa que está a funcionar, quando há tanta coisa nos resíduos que não está a funcionar. E pergunto para quê?», questionou o ambientalista.

Fiscalização é calcanhar de Aquiles

Para Rui Berkemeier, o facto de as duas unidades de tratamento da grande maioria dos resíduos perigosos em Portugal estarem concentrados na Chamusca veio facilitar o trabalho de fiscalização que deve ser feito pelas autoridades ambientais. No entanto, acredita que com a abertura a novas operações esse trabalho poderá ser dificultado. «Com a possível proliferação de várias unidades de tratamento de resíduos perigosos pelo país, decorrente da alteração proposta pelo Governo, vão aumentar significativamente as dificuldades das autoridades ambientais na fiscalização deste setor».

Outra dúvida, de acordo com a Zero, é não se saber como é que os CIRVER vão trabalhar depois dessa data – 8 de novembro – no caso de não serem prorrogadas as licenças. «As atuais licenças estão enquadradas na legislação que criou a própria figura dos CIRVER, pelo que a não prorrogação dessas licenças pode vir a criar um vazio legal sobre o licenciamento destas unidades, uma vez que, ao perderem as atuais licenças, poderão ficar sem base legal para poderem continuar a trabalhar depois de 8 de novembro», defendendo que, uma alternativa seria pedirem novas licenças fora o âmbito deste regime. 

Mas a associação ambientalista deixa um alerta: «Isso levaria muito tempo e seguramente essa situação não estaria resolvida antes da data de caducidade das atuais licenças, levantando-se legitimamente a dúvida sobre a possibilidade de Portugal, a partir de 8 de novembro, poder vir a ficar sem tratamento para a esmagadora maioria dos seus resíduos perigosos».

Deficiente avaliação das questões económicas

A Zero dá ainda cartão vermelho a um dos argumentos utilizado pelo Governo para justificar esta medida, acenando com questões económicas, nomeadamente a redução dos custos de tratamento, o que no seu entender, não corresponde à verdade. «Basta ver que o tratamento de resíduos perigosos em aterros de resíduos não perigosos necessita da aplicação de cerca do triplo da quantidade de reagentes do que quando se utiliza um aterro construído especificamente para resíduos perigosos. Por outro lado, mesmo em termos de custos de transporte, é importante não esquecer que os reagentes também têm de ser transportados – e em grandes quantidades – para os aterros de resíduos não perigosos, pelo que nem sequer na questão dos custos de transporte é líquido que haja ganhos económicos com a não prorrogação das licenças».

E lembra que a legislação dos CIRVER já permitia à APA a fixação de preços máximos para o tratamento dos resíduos perigosos, «ferramenta a que aquela entidade nunca recorreu, o que prova que o custo do tratamento é uma falsa questão». 

Outro argumento do Executivo, segundo a associação, é que a não prorrogação das licenças vai abrir espaço à inovação tecnológica, «mas, na proposta de despacho, o Governo só dá como exemplo a colocação de resíduos perigosos em aterros de resíduos não perigosos, o que não é propriamente uma grande inovação tecnológica», referindo também que «a legislação atual permite à APA obrigar os CIRVER a inovações tecnológicas, pelo que o atual sistema já dá uma resposta a essa questão, não sendo essa uma razão suficiente para a sua alteração».