Da sua infância não há grandes registos – nasceu em Leça do Balio, Matosinhos, a 12 de dezembro de 1973 – sabendo-se que sempre foi um jovem escuteiro ativista pelas causas ambientais, o que o terá levado a ser candidato à Câmara de Matosinhos quando tinha 18 anos, acabando por ser eleito autarca quando já tinha completado os 19. «Ele abanou o poder e, se houve mudanças, muito se deve à luta que ele iniciou», disse esta semana à TSF o antigo líder da autarquia de Matosinhos, Narciso Miranda, lembrando a costela e determinação ambientalista do novo cardeal português.
Mas o atual homem forte da Jornada Mundial da Juventude ainda esteve indeciso entre a política e a Igreja, como contou numa extensa entrevista ao Nascer do SOL, publicada em duas edições: na última de 2022 e na primeira de 2023. «Vamos puxar a fita atrás. Andava na catequese. Andava nos escuteiros e o chefe de agrupamento, Zé Teixeira, a certa altura convidou-me para participar nos encontros do pré-seminário da Diocese do Porto, no Seminário de Ermesinde, no Bom Pastor. Achei aquilo um bocadinho… Primeiro foi uma surpresa para mim aquela conversa, principalmente com o meu cadastro, e depois fui».
Que cadastro era esse?
Isso de termos feito a vida negra ao nosso colega por ele andar no seminário. Depois vir-me propor a mim que eu fosse para o seminário era um bocadinho provocador. Bem, eu fui a esses encontros pré-seminário e depois saí desse encontro, concluí que não era esse o meu futuro, não era essa a minha vida. E tive uma experiência de vida que estou muito grato a Deus por me ter permitido, porque envolvi-me naquilo que foi uma experiência de vida autárquica, quer partidária, quer não partidária. Trabalhei com o professor Vieira de Carvalho na Câmara Municipal da Maia e trabalhei com Narciso Miranda na Câmara Municipal de Matosinhos». Como facilmente se percebe, e sem precisar de ir à máquina da verdade, Américo Aguiar teve duas experiências autárquicas: uma em Matosinhos, onde foi candidato pelo PS, e outra na Maia – pode ser que desta vez fique esclarecido o seu passado político…
A razão de Deus
E qual a razão para se ter desencantado com a política, ou melhor, o que o levou a entrar nos desígnios de Deus? Escutemos outra vez o que nos disse na referida entrevista ao SOL: «No verão de 95, pedi para falar com o reitor do seminário, o cónego Sousa Marques, infelizmente já falecido, um senhor veterano com idade avançada. Eu estava num serviço qualquer e passei no seminário. Fui lá, toquei à campainha, era agosto ou julho e pedi para falar com ele. Disse que queria falar com ele e ele disse que estava à minha espera. ‘Tu da outra vez foste embora porque estavas ligado a muitas coisas’, na política…»
Estava na política e no seminário ao mesmo tempo?
«Não. Entrei no pré-seminário, saí do pré-seminário e fui para a política. Agora é que regresso. E ele disse-me assim: ‘Olha, tu desde que aqui estiveste, eu sinalizei-te. E estava à espera que um dia voltasses. Olha, então é assim, podes voltar, mas no dia em que vieres tens que estar livre disso tudo’. Eu fiquei… e tive duas conversas muito importantes com o professor Vieira Carvalho e com Narciso Miranda. Passado uns dias, comecei a matutar e lá fui falar com ele. Disse: ‘Sou jovem, tenho um trabalho que gosto’. Eu trabalhava na educação ambiental. Fui o primeiro eco conselheiro do país. Agora existem muitos. Gostava muito de trabalhar nas escolas, ia às escolas. E partidariamente gostava muito da intervenção pública, cívica, gostei muito e aprendi muitíssimo. Aliás, tenho muitos amigos do CDS, da CDU… não tenho dos partidos novos porque não existiam. Fui falar com ele e o Vieira Carvalho disse-me: ‘Américo, fico muito feliz por essa notícia, apoio-te em tudo o que tu precisares’».
Seis anos depois era ordenado presbítero, ou seja, padre. Narciso Miranda explicou o que sentiu à TSF: «O Américo é um homem muito lúcido, solidário, generoso, inteligente, combativo, homem de consensos, de pontes e de diálogo. Gostava muito de Ambiente e Cultura. A política ficou a perder, a Igreja a ganhar».
Uma carreira meteórica
Depois do curso de Teologia e do mestrado em Ciências da Comunicação, o seu currículo, segundo a página do Patriarcado de Lisboa, onde é bispo auxiliar, é arrasador. ‘É Presidente da Fundação JMJ Lisboa 2023; diretor do Departamento da Comunicação do Patriarcado de Lisboa; presidente do Conselho de Gerência do Grupo Renascença Multimédia; capelão nacional da Liga dos Bombeiros Portugueses; foi presidente da Irmandade dos Clérigos entre 2011 e 2020’. E aqui começam as críticas daqueles que não simpatizam muito com o novo cardeal. «É mais um político do que um servidor de Deus. Adora movimentar-se nos meandros do poder e de estender as suas influências. E quem toca muitos tamborins, algum acaba por ficar por tocar», diz um clérigo ao Nascer do SOL. E vão ser muitos a irem na mesma direção, pois Américo Aguiar é apontado como um grande fazedor, mas pouco espiritual, na opinião de vários padres ouvidos pelo nosso jornal e que preferem o anonimato.
Tantas tarefas, pouco público
Mas voltemos ao currículo apresentado na página do Patriarcado para se perceber como Américo Aguiar fez a sua vida. ‘2001/2002 – Pároco de S. Pedro de Azevedo, Campanhã; 2001/2004 – Notário da Cúria Diocesana; 2002/2015 – Chefe Gabinete de Informação/Comunicação; 2002/2008 – Assistente Regional do Corpo Nacional de Escutas; 2004/2015 – Vigário Geral, Chefe de Gabinete dos Bispos do Porto (D. Armindo Lopes Coelho, D. Manuel Clemente e D. António Francisco dos Santos) e Capelão-Mor da Misericórdia do Porto; 2007/2015 – Vice-reitor do Santuário Diocesano de Santa Rita (Ermesinde); 2014/2015 – Pároco in solidum da Sé; Foi membro do Cabido Portucalense entre 2017 e fevereiro de 2019; Foi Diretor do Secretariado Nacional das Comunicações Sociais entre 7 de abril de 2016 e 1 de maio de 2019; Foi diretor do Jornal Diocesano Voz da Verdade; Foi nomeado Comendador da Ordem Equestre de S Gregório Magno pelo Papa Bento XVI, por ocasião da visita papal ao Porto; Recebeu as medalhas municipais do Porto, de Matosinhos e da Maia; Recebeu a Medalha de Ouro do Ministério da Saúde’. Não se pode dizer que não tinha tido uma vida preenchida.
E ainda falta acrescentar que foi ordenado Bispo titular de Dagno, no dia 31 de março de 2019, na Igreja da Trindade, no Porto; e nomeado, pelo Papa Francisco, Bispo Auxiliar de Lisboa no dia 1 de março de 2019.
Ligações ao poder
É um homem que tem linha aberta com o Presidente da República e com o primeiro-ministro, daí também haver críticas, havendo mesmo quem diga que tem excelentes relações com a maçonaria, algo que D. Américo Aguiar desmente categoricamente. «Não sei onde são nem o que são, não faço a menor ideia. O que é que tenho sentido na minha vida como realidade? Que sempre que nós fazemos alguma coisa e nos tornamos visíveis passamos a ser alvo de críticas ou de insinuações. Sempre».
Sendo um benfiquista convertido ao FC Porto, é Dragão de Ouro, comecemos pelos elogios dos seus pares. «Ele é um convertido ao FC Porto, se calhar foi a maior conversão da vida dele [risos]. Ele era do Benfica, mas quando começou a perceber o que era futebol e a abrir os olhinhos, mudou para o Porto», conta ao Nascer do SOL o padre Nuno, pároco da Igreja do Bonfim, Porto, e que conviveu com o novo cardeal português. Mais a sério, o padre Nuno acrescenta. «É um sacerdote, um ministro da Igreja, que é capaz de ser muito fiel e muito leal à Igreja. Muito fiel aos seus compromissos e às suas amizades». Destacando as suas capacidades agregadoras, recorda o seu papel na requalificação da Torre dos Clérigos. «Foi um excelente trabalho que ele, à semelhança daquilo que é capaz de fazer em tudo aquilo em que se mete, foi mobilizador e o grande catalisador de muitas sinergias que se juntaram para realizar uma obra tamanha que foi a dos Clérigos».
Já o padre Nuno Coelho, de Cascais, concorda com o responsável da igreja do Bonfim: «É uma pessoa próxima, simples, tímida, com bom espírito de humor e confiável». Quanto às críticas apontadas a D. Américo Aguiar, o pároco de Cascais explica algumas das razões. «Tem uma linguagem muito simples, muito básica, muito cara a cara, isso não me parece que seja uma má vida espiritual, antes pelo contrário [risos]. O facto de ser uma vida espiritual tão comum, tão simples, tão básica e fundamental, ajuda a que ele também tenha esse tipo de conversa. Das vezes que nós trabalhámos aqui nas jornadas, sempre rezámos, no inicio de cada reunião, ao meio dia, as missas que ele presidia. Se calhar não é tão litúrgico, não é tão piedoso, no sentido mais comum do termo, mas não sei avaliar o nível de piedade ou de espiritualidade das pessoas. Quem diz mal dele não o conhece».
Nuno Coelho vai longe. «Diria que tem um espírito de serviço e liberdade muito grande, se calhar desalinhado, ou não alinhado, naquilo que são as correntes mais religiosas. Não faz parte dos conservadores nem dos progressistas e nunca vai ser. Ele não deixa e é impossível que essas etiquetas se colem a ele. Talvez daí venham as críticas que se ouvem».
Falta de espiritualidade
Entremos agora nos críticos, que foram muitos os que falaram com o Nascer do SOL desde domingo, dia do anúncio de que será cardeal a partir de 30 de setembro. Qual a razão para tanta animosidade? «Acho que é um homem carreirista, não duvido que tenha um desejo genuíno de bem, mas é uma linguagem muito distante da que conheço da Igreja em vários setores, vários quadrantes. É uma postura tão contrária àquilo que é a maneira de ser e de falar que é difícil de pensar que se encontra ali muita pureza. A nota que o senhor patriarca publicou é muito reveladora disto. Dizer que é um homem muito eficiente, generoso, disponível, são três coisas ótimas para guardas florestais e para qualquer profissão que seja puramente de fazer coisas. Mas, agora, de facto, ninguém diz que ele é um homem de grande oração, que é um homem de uma grande erudição teológica ou filosófica ou literária. Ele é elogiado sempre é por ter feito a requalificação da Torre dos Clérigos, de ter reequilibrado as contas da Misericórdia no Porto, são tudo coisas muito empresariais, mas são elogios estranhos para fazer a um homem de Igreja, que não é só um administrador, é também um pastor. É um bocadinho intrigante os elogios serem todos sobre a sua vertente empresarial. É um bem falante que se relaciona muito bem com o poder, mas que não tem propriamente grande profundidade, grande conteúdo, nem grandes sentimentos dos que estão em contacto com ele no sentido pastoral. Quer seja o clero, quer seja o povo», segundo as palavras de um padre que tem um trabalho relevante em Lisboa.
Um estilo jocoso
Mas não é só a falta de espiritualidade que lhe é apontada como crítica. «Em parte tem a ver com aquele estilo dele jocoso e de dar muito nas vistas. Não é muito o estilo eclesial, o estilo eclesial é muito mais o de D. Manuel Clemente, género deixem-me estar em paz, não quero dar nas vistas. Há pessoas que dão nas vistas mas por obrigação, pela função. O facto de ele querer estar sempre a dar nas vistas irrita muito, e a outra coisa que escandaliza é a parte pouco profunda das coisas. Comunica bem, mas adapta muito a mensagem ao ouvinte. E também não investiu muito nas relações humanas. Mas atenção que há pessoas que gostam dele. Os políticos nunca se sabe se gostam, se não gostam, se gostam porque dá jeito ou se gostam porque gostam. Mas acho que ele não investiu muito nas relações aqui em Lisboa porque não faço ideia se fez amigos no Porto. Aqui em Lisboa, onde é bispo auxiliar, esteve sempre a preparar as Jornadas», desabafa outro padre lisboeta, como é fácil de perceber.
Voltemos então aos elogios, até por uma questão de justiça, não divina, mas jornalística. Pedro Gil, diretor do gabinete de Imprensa do Opus Dei, defende D. Américo Aguiar com unhas e dentes. «É assim, eu diria que todos nós evoluímos. Sei que há aspetos da presença dele, da atuação dele, que podem convidar a essas leituras, mas, por outro lado, nós também não sabemos bem o tipo de atuação interior que ele tem. Isto é, eu sei que é uma pessoa que reza, e ainda recentemente assisti a uma missa celebrada por ele há pouco tempo, e, por acaso, fiquei impressionado de o ver tão profundamente religioso nesses momentos, e a forma como rezou. Entre outras coisas, nesta experiência que ele está a ter, muito dura, da Jornada Mundial da Juventude, ele está a ser desafiado a confiar em forças que já não são as suas. Ele já disse, até publicamente, que agora que as coisas estão um pouco fora de controle, ele tem evidentemente que confiar na intervenção de Deus. Isto também são aprendizagens. Depois há outra coisa que eu gostava de chamar a atenção. Ele com 19 anos era autarca, não sei se era bem sucedido ou não como tal, mas estamos a falar de uma pessoa com essas possibilidades de vida, resolve deixar tudo para ir para o seminário, onde toda a gente tem a noção de que não é uma carreira apetecível. Hoje talvez ainda seja menos, mas na altura também não era. Portanto, não é possível conceber que este homem tivesse deixado todas as suas possibilidades da existência para abraçar uma carreira ou um caminho de vida que se sabe humanamente não é atraente e que está centrado na experiência religiosa. Também nisso. Há uma precipitação no juízo que se faz sobre ele. À parte disto, devo dizer que tenho estima pessoal por ele, sempre o apreciei imenso. Conheci-o em 2002 e ele tinha na altura 28 ou 29 anos. Ele, na altura, já era secretário do bispo e desde então nunca trabalhámos sistematicamente juntos, conversámos mais na altura da viagem do Papa Bento XVI, e sempre foi uma pessoa correta, bem disposta, animadora e que também o vejo a rezar. Acho-o uma pessoa normal, que tem uma característica que é uma pessoa muito terra a terra. Realista na apreciação das situações. E que é um pastor até bastante integrado na realidade, das coisas que acontecem na vida das pessoas, mas penso que isso para muita gente será uma coisa negativa. Eu penso que é um dado positivo. É realista. Ótimo. Não será uma pessoa perfeita, mas nenhum de nós é». Disso é que ninguém terá dúvidas, quer aqueles que acreditam em D. Américo como os que o criticam.