Democracia bichosa


A democracia bichosa está neste modo furtivo de introdução e regulamentação. É mais uma manifestação de um mal contemporâneo, mal frequente, que chamo “consumadocracia”: o império do facto consumado.


A introdução de insectos e larvas na alimentação humana tem tudo, dir-se-ia, para merecer abordagem democrática, em que, com antecedência, fossemos devidamente informados das vantagens, ausência de inconvenientes e processos de produção e comércio. Mas tudo se passa na metodologia muito em voga, com fonte nas instituições europeias, da obscuridade transparente ou transparência obscura: não se pode dizer que esteja escondido, mas também não se pode dizer que esteja à vista.

Tudo se faz ao abrigo do Regulamento (UE) 2015/2283 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, que trata de “novos alimentos”, alterando outro Regulamento, de 2011, e revogando outros dois, de 1997 e 2001 – qual deles o mais denso e hermético. No novo regulamento, só há menção a insectos, como hipótese, no considerando (8), nenhuma no articulado; sobre larvas, nem sombra. Na passagem pelo Parlamento Europeu, o relatório parlamentar propôs seis alterações, querendo explicitar noutros considerandos e no articulado as condições de uso de insectos ou partes destes; mas tudo sumiu em acordo com o Conselho, sem estar claro porquê. E é ao abrigo da etiqueta geral “novos alimentos”, um vasto cobertor, que insectos, larvas e similares são introduzidos na alimentação, através de “regulamentos de execução” da Comissão Europeia e actos administrativos da Direcção-Geral da Alimentação e Veterinária (DGAV), uns e outros fora do escrutínio directo do Parlamento Europeu e da Assembleia da República, respectivamente. Desde 2015, nem sombra de democracia.

Entre os mais recentes estão o Regulamento de Execução (UE) 2023/5 da Comissão, de 3 de Janeiro de 2023, e o Regulamento de Execução (UE) 2023/58 da Comissão, de 5 de Janeiro de 2023. O primeiro introduz o Acheta domesticus como novo alimento. O que é o Acheta? É, isso mesmo, o “grilo-doméstico”, como logo indica. O segundo autoriza o Alphitobius diaperinus para nos ser também servido. Quem é o Alphitobius? Nada mais, nada menos do que o “tenebrião-pequeno”, informa. Ficamos na mesma. Mas, usando motor de busca, verificamos ser a larva-da-farinha; e ficamos também a saber que, “como todos os insectos holometabólicos, atravessa quatro estágios na vida: ovo, larva, pupa (crisálida), e adulto” – assim, é no estado de larva que a caçamos, talvez por atingir aí o pico do valor nutritivo.

Estes novos pitéus não nos são servidos no estado natural. Em regime alimentar de obscuridade, como mioleira para bebés de tenra idade, o modo comum é triturar e usar em pasta e em pó. O primeiro regulamento informa ter sido pedido que o grilo em pó (o Acheta) fosse “utilizado em pães e pãezinhos multicereais, bolachas de água-e-sal e gressinos, barras de cereais, pré-misturas secas para produtos de panificação e pastelaria, bolachas e biscoitos, produtos secos à base de massas alimentícias recheados e não recheados, molhos, produtos transformados à base de batata” etc. – a lista é longa. No segundo regulamento, lemos que, quanto ao Alphitobius, isto é, o tenebrião, “o requerente solicitou que as larvas nas formas congelada, em pasta (moídas), desidratada e em pó (moídas) fossem utilizadas como ingrediente alimentar numa série de produtos alimentares para a população em geral e na forma em pó em suplementos alimentares”. Depois de cientificamente verificado, tudo foi superiormente autorizado com a chancela da Comissão Europeia. A assinatura da sua Presidente, Ursula von der Leyen, confirma para a posteridade a consolidação do grilo-doméstico e da larva-da-farinha na nossa dieta alimentar pós-moderna. Se calhar, já os encontraram em gressinos, snacks ou suplementos.

A larva-da-farinha já tinha sido objecto de um regulamento europeu de 2021; e, no mesmo ano, em Portugal, ao abrigo do regulamento de 2015, a DGAV autorizara também para alimentação humana o grilo-doméstico, a larva de búfalo, a larva da abelha-europeia, o grilo-raiado, o gafanhoto-do-deserto, o gafanhoto-migrador. Um menu tentador.

A DGAV alertou para o facto de alguns insectos poderem causar alergias (não se riam) “especialmente para quem sofre de alergia a marisco”. A Comissão é mais incisiva, ao prevenir que o pó de larvas pode causar reacções “em pessoas alérgicas a crustáceos e a ácaros”. (Ácaros, por sinal, não me lembro se alguma vez comi.) E adverte que o “pó de larvas não deve ser consumido por pessoas com menos de 18 anos de idade”. Coisa de adultos, portanto.

Não se pense que, lá por serem larvas ou insectos, os novos alimentos são produzidos de qualquer maneira. Nada disso! Um regulamento europeu não é para brincadeiras. Para obter o pó dos grilos, comina “uma série de etapas que envolvem um período de 24 horas de jejum dos insectos, a fim de lhes permitir eliminar o conteúdo intestinal, a occisão dos insetos por congelação, a lavagem, o processamento térmico, a secagem, a extração de óleo (extrusão mecânica) e a trituração.” Não tarda veremos rótulos indicando “grilo 24 horas”, “grilo 36 horas”, “grilo 48 horas”, consoante o jejum a que tenha sido sujeito antes de morrer por congelamento.

Houve algumas notícias destas novidades, até com algum pormenor, como no Observador, sobretudo em 2021, um ano marcante. Mas nunca suscitaram interesse político, fosse dos partidos, fosse de deputados ou do governo. A nível nacional, desde 2015, não me recordo de qualquer debate em plenário ou comissão da Assembleia da República, nem de pergunta ou interpelação de algum deputado. E, no Parlamento Europeu, de 2015 para cá, não houve, aqui, qualquer acto legislativo que passasse pelo Parlamento Europeu (a técnica seguida, como referi, passa ao lado do escrutínio parlamentar directo) e só houve uma pergunta de um deputado, Francisco Guerreiro (Verts/ALE, ex-PAN), mas preocupado com insectos na alimentação animal, não para alimentação humana.

A democracia bichosa está neste modo furtivo de introdução e regulamentação. É mais uma manifestação de um mal contemporâneo, mal frequente, que chamo “consumadocracia”: o império do facto consumado. Entre nós, o pior exemplo está na revisão constitucional promovida em evidente ilegitimidade democrática: ninguém nas eleições anunciou que a iria fazer, nem apresentou qualquer ideia ou proposta. Um escândalo gordo: primeiro, por ser feita pela Assembleia da República; segundo, por ter por objecto a Constituição, a lei das leis.

O “bicho”, quando entra na democracia, desprestigia a condução política e vai causando corrosão. Parece que se quis esconder; e não se compreende por que se quis esconder. Neste tema dos “novos alimentos”, até poderia haver consentimento. E, tratando-se de matéria de consumo, a democracia fundamental é o mercado. Já há produtos comercializados directa e frontalmente, além dos apenas perceptíveis, nos rótulos traseiros, pelas letras pequenas da composição dos produtos: se virem Acheta, Alphitobius, ou tenebrião, já sabem o que é. Leremos o público. E foi anunciado o recente investimento em Santarém, para desenvolvimento de alimentos à base de insectos, com financiamento pelo PRR em 29 milhões de euros.

Mas convém estar atento à acção do PAN, quanto ao grilo e outros insectos. Há investigação interessada em provar que os insectos são seres sencientes. Poderemos ter o PAN a marrar com o processamento insectívoro, do mesmo modo que com os touros. Até lá, quem gostar, pode deliciar-se (se o verbo se aplica…) com “tenebrio molitor” em snacks com sal marinho ou pimenta cayenne, ou em barras com manteiga de amendoim e mel, chocolate e amêndoa, figo e laranja, ou maçã e canela. Em breve, por certo snacks à Bulhão Pato e barritas com frutos vermelhos. Mas diga sempre tenebrio molitor. Esqueça que é larva não-sei-quê.

Já a revisão ilegítima da Constituição é que é impossível esquecer. Tem bicho de grosso calibre.

 

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

Democracia bichosa


A democracia bichosa está neste modo furtivo de introdução e regulamentação. É mais uma manifestação de um mal contemporâneo, mal frequente, que chamo “consumadocracia”: o império do facto consumado.


A introdução de insectos e larvas na alimentação humana tem tudo, dir-se-ia, para merecer abordagem democrática, em que, com antecedência, fossemos devidamente informados das vantagens, ausência de inconvenientes e processos de produção e comércio. Mas tudo se passa na metodologia muito em voga, com fonte nas instituições europeias, da obscuridade transparente ou transparência obscura: não se pode dizer que esteja escondido, mas também não se pode dizer que esteja à vista.

Tudo se faz ao abrigo do Regulamento (UE) 2015/2283 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, que trata de “novos alimentos”, alterando outro Regulamento, de 2011, e revogando outros dois, de 1997 e 2001 – qual deles o mais denso e hermético. No novo regulamento, só há menção a insectos, como hipótese, no considerando (8), nenhuma no articulado; sobre larvas, nem sombra. Na passagem pelo Parlamento Europeu, o relatório parlamentar propôs seis alterações, querendo explicitar noutros considerandos e no articulado as condições de uso de insectos ou partes destes; mas tudo sumiu em acordo com o Conselho, sem estar claro porquê. E é ao abrigo da etiqueta geral “novos alimentos”, um vasto cobertor, que insectos, larvas e similares são introduzidos na alimentação, através de “regulamentos de execução” da Comissão Europeia e actos administrativos da Direcção-Geral da Alimentação e Veterinária (DGAV), uns e outros fora do escrutínio directo do Parlamento Europeu e da Assembleia da República, respectivamente. Desde 2015, nem sombra de democracia.

Entre os mais recentes estão o Regulamento de Execução (UE) 2023/5 da Comissão, de 3 de Janeiro de 2023, e o Regulamento de Execução (UE) 2023/58 da Comissão, de 5 de Janeiro de 2023. O primeiro introduz o Acheta domesticus como novo alimento. O que é o Acheta? É, isso mesmo, o “grilo-doméstico”, como logo indica. O segundo autoriza o Alphitobius diaperinus para nos ser também servido. Quem é o Alphitobius? Nada mais, nada menos do que o “tenebrião-pequeno”, informa. Ficamos na mesma. Mas, usando motor de busca, verificamos ser a larva-da-farinha; e ficamos também a saber que, “como todos os insectos holometabólicos, atravessa quatro estágios na vida: ovo, larva, pupa (crisálida), e adulto” – assim, é no estado de larva que a caçamos, talvez por atingir aí o pico do valor nutritivo.

Estes novos pitéus não nos são servidos no estado natural. Em regime alimentar de obscuridade, como mioleira para bebés de tenra idade, o modo comum é triturar e usar em pasta e em pó. O primeiro regulamento informa ter sido pedido que o grilo em pó (o Acheta) fosse “utilizado em pães e pãezinhos multicereais, bolachas de água-e-sal e gressinos, barras de cereais, pré-misturas secas para produtos de panificação e pastelaria, bolachas e biscoitos, produtos secos à base de massas alimentícias recheados e não recheados, molhos, produtos transformados à base de batata” etc. – a lista é longa. No segundo regulamento, lemos que, quanto ao Alphitobius, isto é, o tenebrião, “o requerente solicitou que as larvas nas formas congelada, em pasta (moídas), desidratada e em pó (moídas) fossem utilizadas como ingrediente alimentar numa série de produtos alimentares para a população em geral e na forma em pó em suplementos alimentares”. Depois de cientificamente verificado, tudo foi superiormente autorizado com a chancela da Comissão Europeia. A assinatura da sua Presidente, Ursula von der Leyen, confirma para a posteridade a consolidação do grilo-doméstico e da larva-da-farinha na nossa dieta alimentar pós-moderna. Se calhar, já os encontraram em gressinos, snacks ou suplementos.

A larva-da-farinha já tinha sido objecto de um regulamento europeu de 2021; e, no mesmo ano, em Portugal, ao abrigo do regulamento de 2015, a DGAV autorizara também para alimentação humana o grilo-doméstico, a larva de búfalo, a larva da abelha-europeia, o grilo-raiado, o gafanhoto-do-deserto, o gafanhoto-migrador. Um menu tentador.

A DGAV alertou para o facto de alguns insectos poderem causar alergias (não se riam) “especialmente para quem sofre de alergia a marisco”. A Comissão é mais incisiva, ao prevenir que o pó de larvas pode causar reacções “em pessoas alérgicas a crustáceos e a ácaros”. (Ácaros, por sinal, não me lembro se alguma vez comi.) E adverte que o “pó de larvas não deve ser consumido por pessoas com menos de 18 anos de idade”. Coisa de adultos, portanto.

Não se pense que, lá por serem larvas ou insectos, os novos alimentos são produzidos de qualquer maneira. Nada disso! Um regulamento europeu não é para brincadeiras. Para obter o pó dos grilos, comina “uma série de etapas que envolvem um período de 24 horas de jejum dos insectos, a fim de lhes permitir eliminar o conteúdo intestinal, a occisão dos insetos por congelação, a lavagem, o processamento térmico, a secagem, a extração de óleo (extrusão mecânica) e a trituração.” Não tarda veremos rótulos indicando “grilo 24 horas”, “grilo 36 horas”, “grilo 48 horas”, consoante o jejum a que tenha sido sujeito antes de morrer por congelamento.

Houve algumas notícias destas novidades, até com algum pormenor, como no Observador, sobretudo em 2021, um ano marcante. Mas nunca suscitaram interesse político, fosse dos partidos, fosse de deputados ou do governo. A nível nacional, desde 2015, não me recordo de qualquer debate em plenário ou comissão da Assembleia da República, nem de pergunta ou interpelação de algum deputado. E, no Parlamento Europeu, de 2015 para cá, não houve, aqui, qualquer acto legislativo que passasse pelo Parlamento Europeu (a técnica seguida, como referi, passa ao lado do escrutínio parlamentar directo) e só houve uma pergunta de um deputado, Francisco Guerreiro (Verts/ALE, ex-PAN), mas preocupado com insectos na alimentação animal, não para alimentação humana.

A democracia bichosa está neste modo furtivo de introdução e regulamentação. É mais uma manifestação de um mal contemporâneo, mal frequente, que chamo “consumadocracia”: o império do facto consumado. Entre nós, o pior exemplo está na revisão constitucional promovida em evidente ilegitimidade democrática: ninguém nas eleições anunciou que a iria fazer, nem apresentou qualquer ideia ou proposta. Um escândalo gordo: primeiro, por ser feita pela Assembleia da República; segundo, por ter por objecto a Constituição, a lei das leis.

O “bicho”, quando entra na democracia, desprestigia a condução política e vai causando corrosão. Parece que se quis esconder; e não se compreende por que se quis esconder. Neste tema dos “novos alimentos”, até poderia haver consentimento. E, tratando-se de matéria de consumo, a democracia fundamental é o mercado. Já há produtos comercializados directa e frontalmente, além dos apenas perceptíveis, nos rótulos traseiros, pelas letras pequenas da composição dos produtos: se virem Acheta, Alphitobius, ou tenebrião, já sabem o que é. Leremos o público. E foi anunciado o recente investimento em Santarém, para desenvolvimento de alimentos à base de insectos, com financiamento pelo PRR em 29 milhões de euros.

Mas convém estar atento à acção do PAN, quanto ao grilo e outros insectos. Há investigação interessada em provar que os insectos são seres sencientes. Poderemos ter o PAN a marrar com o processamento insectívoro, do mesmo modo que com os touros. Até lá, quem gostar, pode deliciar-se (se o verbo se aplica…) com “tenebrio molitor” em snacks com sal marinho ou pimenta cayenne, ou em barras com manteiga de amendoim e mel, chocolate e amêndoa, figo e laranja, ou maçã e canela. Em breve, por certo snacks à Bulhão Pato e barritas com frutos vermelhos. Mas diga sempre tenebrio molitor. Esqueça que é larva não-sei-quê.

Já a revisão ilegítima da Constituição é que é impossível esquecer. Tem bicho de grosso calibre.

 

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990