Durante anos, na minha infância e juventude, tive um sonho recorrente em que as meias e as calças me caíam ao entrar na sala de aula. Acordava em pânico. Muita da minha roupa vinha das minhas irmãs mais velhas ou do meu pai, e os elásticos antigos e usados não eram dos melhores… Portanto, o pesadelo reproduzia mais ou menos a realidade. Essa realidade abrangia a falta de controlo sobre os acontecimentos, a ausência de percepção sobre uma ordem subjacente. Os elásticos acabaram por me trazer para a Física, quando me ensinaram no liceu a lei de Hooke: todas as molas e elásticos se comportam da mesma forma, previsível e universal, aqui e em qualquer ponto do universo, hoje e sempre. Podemos prever e perceber o comportamento das coisas à nossa volta. Acho este um facto extraordinário ainda hoje, especialmente hoje: vivemos num universo passível de ser descrito e quantificado. Não temos que nos sentir menores porque somos pobres ou diferentes: as calças caem porque o elástico tem um módulo de Young baixo, é apenas um facto. Somos pobres ou ricos porque temos pouco ou muito dinheiro, são factos, a partir dos quais podemos tentar, de forma controlada, mudar as coisas à nossa volta.
A Física é a maneira que temos de procurar as leis imutáveis do universo. Este é um esforço imenso, que exige uma luta contínua contra as nossas limitações intelectuais e com os dados que nos são facultados. A ciência é uma forma de perceber o que é misterioso, de o prever e quantificar. Ao percebermos que isto pode ser feito, de alguma forma, estamos a devolver o mistério, de que existe uma ordem subjacente a tudo. E quanto ao que não compreendemos, sabemos que pode ser compreendido ou sistematizado. O desconhecido não deve ser temido, deve ser desejado, deve estimular a vontade de perceber. Este é o poder do método científico, é o que torna as ciências fundamentais uma ferramenta vital para uma sociedade justa e equilibrada, e que lhe permite saber como procurar respostas. E nesse querer saber, caminhamos todos de mãos dadas rumo a alguma iluminação. Ao percebermos o funcionamento das coisas, conseguimos prever e construir. A tecnologia e as ciências aplicadas assentam na pura curiosidade, na ciência fundamental. Todo este processo implica transcender a ignorância, questionando sempre, tentando sempre. A ciência, a investigação, exigem, por natureza, que se questione, que se vá mais longe, que passemos das trevas à luz. A investigação deve por isso ser parte integrante da educação, de toda a educação: uma educação sem investigação é apenas um conjunto de dogmas. O verdadeiro conhecimento implica examinar e testar esses dogmas. E, por vezes, questioná-los. Porque os paradigmas são tão-só isso, as melhores construções do momento onde encaixam todos os dados até ao momento, e a sua utilidade apenas faz sentido se assente na experiência e na discussão. É assim que evoluímos enquanto comunidade. E é por isso que numa sociedade saudável, a investigação, básica e aplicada, é fundamental.
Para um professor, a investigação e a ciência devem também ser um guia no ensino. As mesmas causas produzem os mesmos efeitos nas mesmas circunstâncias. Se os nossos alunos não aprendem, então não estamos a ensinar. Tal como a ciência, a educação é um caminho em conjunto para o conhecimento abrangente, um “heterodidactismo” nas palavras de Agnes Callard. É saber contemplar as dúvidas dos outros, absorver outras formas de raciocinar, estar confortável com a incerteza temporária, e desconfortável com a ignorância prolongada.
É útil lembrarmos também que a ciência se constrói sobre esforços passados, completando o que outros começaram, reconhecendo o que foi bem feito e descartando o que claramente não resulta. Passada de geração em geração, exige sempre um diálogo sobre o conteúdo dessa transmissão. Eu aventuro-me a dizer que a cultura científica é o mais importante tesouro de uma sociedade desenvolvida. Tudo o que acabei de dizer é verdade também para uma instituição de referência como o Técnico, produto de todos os que vieram antes, e onde se trabalha com o intuito de melhorar a experiência de quem virá depois.
Mas a vida é muito complexa, e é bom lembrar que existem outras formas de tentar perceber o que nos rodeia, ou pelo menos de fazer pazes com o que nos rodeia. Como os artistas me estão constantemente a lembrar, a arte é uma dessas vias, e de vez em quando é bom apreciar a ambiguidade, quebrar as regras, deixar cair as meias e soltar o cabelo. E é importante haver espaço numa instituição de referência para outras formas de ver, de fazer, de ser. É a única forma de crescermos.
O Técnico celebra este ano os 112 anos de existência, com uma comunidade que respeita e acarinha a ciência, e que está à altura da ciência em toda a sua excelência. Que prazer que é saber isto!
Professor de Mérito do Instituto Superior Técnico; Villum Investigator e DNRF Chair do Instituto Niels Bohr