Cascatas e montanhas sagradas. Paisagens naturais e vistas de cidades. Retratos de guerreiros e de viajantes. Mulheres trajadas com vestidos sumptuosos. Cerejeiras em flor. E até insetos representados ao mais ínfimo detalhe. Com as suas linhas elegantes e colorido delicado, as estampas japonesas do período Edo (1603-1868) dão-nos acesso a um mundo estranho e poético, um mundo de lendas, xoguns e belas cortesãs que esteve interditado aos olhos do Ocidente durante mais de dois séculos e meio. Esse mundo pode agora ser descoberto na Gulbenkian, numa exposição que traz a Lisboa o sabor e o exotismo de uma civilização distante.
«Começamos com um núcleo muito forte, sobretudo estas estampas de Hokusai, que são carregadas de força vital», diz-nos Jorge Rodrigues, um dos curadores de Mundo flutuante: estampas japonesas ‘ukiyo-e’. «Para os japoneses, a natureza é, essencialmente, força vital. Têm um pouco este conceito quase animista da natureza como algo divinizado. E dentro da natureza nada como o Monte Fuji», acrescenta o comissário, apontando para dois exemplares da célebre série 36 Vistas do Monte Fuji do mestre Katsushika Hokusai.
A exposição recentemente inaugurada no Museu Calouste Gulbenkian reúne cerca de 90 estampas e mais uns quantos objetos de laca da coleção do magnata arménio.
«A coleção do Sr. Gulbenkian correspondia àquilo a que, na altura, qualquer bom coleccionador de posses e de gosto deveria ter – um bocadinho disto, um bocadinho daquilo, um bocadinho daqueloutro, continua Jorge Rodrigues. «As estampas japoneses são um desses casos. E como acontecia com outras coisas que não eram as que mais o apaixonavam, ele comprava com critério, mas seguindo um modelo que era praticamente sempre o mesmo. Comprava sobretudo coleções que iam à praça pública nas grandes leiloeiras internacionais».
Um surto a quem Van Gogh e Picasso não resistiram
O interesse de Gulbenkian correspondia a uma voga que se iniciara na segunda metade do século XIX, quando estes objetos vindos do Extremo Oriente começaram, aos poucos, a chegar à Europa e a seduzir os colecionadores e amantes de arte do Velho Continente. «Estes objetos artesanais na verdade cumpriam uma função. Mas os hábitos mudam e estas coisas acabam por cair um bocadinho em desuso. As pessoas têm-nas em casa e de repente percebem que podem fazer muito dinheiro com elas. E começam a circular, sobretudo para Paris, mas também para Londres e Berlim. Começam a entrar e a inundar os mercados europeus, um bocadinho ávidos deste exotismo e, ao mesmo tempo, desta qualidade e beleza. Até porque a nossa sociedade ocidental, desde o século XVIII, é uma sociedade industrializada, e, portanto, o ‘feito à mão’ é muito valorizado», explica o comissário. Esta ‘migração’ para a Europa só foi possível por causa do «desdém com que as estampas populares eram encaradas pelas classes superiores» nipónicas, referem Robert Treat Pain e Alexander Soper em The Art and Architecture of Japan.
A abertura do Japão ao Ocidente iniciara-se em 1853 com a chegada de uma frota americana àquele território, a que se seguiu a assinatura de vários acordos comerciais. «Esta abertura gerou um inédito movimento comercial de objectos artísticos de origem japonesa nas grandes capitais europeias, em particular na cidade de Paris onde, sobretudo no último quartel do século XIX, as lacas – caixas, inros, estojos –, os netsukes ou as estampas invadiam as lojas dos marchands d’art e dos antiquários, num surto de japonismo a que nem os artistas – de Van Gogh e Matisse a Picasso – nem os coleccionadores ficariam indiferentes», escreve Jorge Rodrigues no catálogo da exposição.
No caso de Calouste Gulbenkian, a paixão – se é que chegou a tanto – foi fugaz, e acabaria por não ter grande sequência. A esmagadora maioria das obras foi comprada entre 1911 e 1916, tendo sido pouquíssimas as que se juntaram à coleção depois disso.
«Digamos que aquela ‘caixinha’ estava preenchida, ele já tinha o que precisava», refere o comissário. «E, de facto, colecionou bem. Comprou menos de 250 estampas, mas o que comprou é de boa qualidade e cobre, digamos assim, todos os grandes criadores. Utamaro, Hokkei, Hiroshige, Hokusai, Eizan, Toyoharu, Toyokuni – todos eles estão representados na nossa coleção, em estampas muito bem escolhidas. Algumas delas de alguma raridade».
Uma pequena lição de história
Essa coleção «preciosa» passou no entanto estes últimos mais de 20 anos ‘escondida numa gaveta’ – que é como quem diz, nas reservas do museu –, só tendo agora sido devidamente estudada e classificada.
As obras escolhidas para a presente mostra foram organizadas em torno de cinco núcleos, como nos explica o curador: «Dividimos a exposição em cinco núcleos diferentes e a cada um atribuímos um ícone. O primeiro é constituído pelas diferentes visões da natureza e da paisagem. O segundo é sobre a maneira como a perspectiva linear ocidental do Renascimento passa para o Japão. A terceira tem mais a ver com as cortesãs, com as mulheres e com o bairro da prostituição em Tóquio. A quarta é onde entram os temas mais complexos e literários. Finalmente, há um pequeno núcleo sobre os danos provocados pelas cheias de 1967 [que atingiram e danificaram vários objetos da coleção que estavam no Palácio Pombal, em Oeiras]. São só três estampas, mas não podemos ocultar esta realidade».
Às cascatas e montanhas do início segue-se, pois, o núcleo dedicado à perspetiva linear. «A perspectiva linear introduz uma visão tridimensional do espaço num suporte bidimensional, mas não deixa de ter um caráter um bocadinho artificioso», comenta Rodrigues. «É representar isto como se fosse um palco. Em muitas destas estampas vemos que há esse conhecimento da perspetiva linear tal como era feita no Ocidente». Noutras, pelo contrário, nota-se um afastamento, por vezes deliberado, desses princípios.
O comissário chama-nos a atenção para uma estampa que se distingue das demais: «Aqui temos uma cena particularmente interessante, porque é a única em toda a nossa colecção onde se mostram os estrangeiros, neste caso os holandeses». E, tendo ele próprio uma longa experiência como professor e académico, aproveita a deixa para nos dar uma pequena lição de História: «Os portugueses foram os primeiros ocidentais a estabelecer contacto com os japoneses, sendo intermediários no comércio que se fazia entre os dois grandes impérios do Oriente, a China e o Japão. Mas acabaram por ser banidos nos anos 30 do século XVII, devido à união ibérica e à insistência dos espanhóis na evangelização. Obviamente que isto depois tinha jogos políticos por trás; e os japoneses acabaram por cortar a cabeça a 39 sacerdotes. Disseram uma vez ‘não queremos’, disseram segunda vez ‘não queremos’, à terceira cortaram-lhes a cabeça. Quem nos substitui, aliás utilizando o porto de Nagasáqui, que foi o nosso porto de entrada no Japão, foram os holandeses. E os holandeses ficaram lá muito mais tempo que nós, porque eram protestantes – calvinistas, ainda por cima – e para eles era mais importante o negócio que a religião».
O universo dos sentidos
Chegamos agora ao ‘âmago’ da exposição: ukiyo significa nada menos que ‘mundo flutuante’, uma referência ao universo dos sentidos e dos prazeres fugidios por eles proporcionados.
«Este grupo de estampas liga-se sobretudo às bijin», anuncia o curador. As bijin, uma palavra que tem sido traduzida por ‘mulheres bonitas’ ou ‘mulheres para diversão’, correspondem, grosso modo, àquilo que no Ocidente entendemos por ‘cortesãs’. «As cortesãs no Japão faziam parte de um grupo social, que incluía também os actores kabuki, cujos membros eram de tal maneira baixos que os consideravam praticamente não gente. O único exemplo oriental de que eu me lembro seriam os intocáveis da Índia».
Só que estas mulheres eram tocáveis. Aliás, era precisamente essa a função que cumpriam na sociedade: existiam para serem tocadas. «As cortesãs e os actores de Kabuki eram considerados praticamente destituídos de direitos civis. E faziam-se valer da sua popularidade para conseguir ultrapassar esta situação. Enquanto essa popularidade se mantivesse, eles estavam mais ou menos a salvo, mantinham-se dentro dos favores da sociedade influente, política, erudita, etc. Mas a partir do momento em que, por alguma razão, caíssem em desgraça, tudo aquilo que tinham conseguido era como se nunca tivesse existido», refere Jorge Rodrigues. «Estamos a falar de uma sociedade em que tudo é muito codificado. Tudo é cheio de significado. No caso das cortesãs isso também acontecia. Enquanto no Ocidente, os clientes, muitas vezes de forma algo brutal, se dirigiam às prostitutas, pagavam e tinham o seu serviço, aqui não era assim. Sobretudo para as prostitutas mais requisitadas. É preciso fazer uma corte, é preciso escrever-lhes uma carta… Muitas vezes elas deixavam-nos à espera. Quando eles não lhes davam uma prenda que elas queriam, por exemplo, eram castigados. Às vezes elas humilhavam-nos, mesmo. Claro que era preciso que fossem muito belas e fossem muito populares para conseguirem fazer isto». E_prossegue: «A outra contradição no meio disto tudo é que embora fossem do mais baixo estrato, estavam entre as mulheres mais cultas da sociedade, porque tinham que saber ler e saber escrever para se corresponder com os seus clientes e com os seus amantes, coisa que a maior parte das mulheres ‘honestas’ não precisavam de fazer».
Quanto ao propósito destas estampas, era justamente publicitar os serviços destas casas de prazer, que ficavam confinadas num bairro à parte, cercado por muros – Yoshiwara, uma espécie de red light district da antiga Tóquio. «Serviam para publicitar a sua casa e para dar uma visão glamorosa», complementa Jorge Rodrigues. «Infelizmente a vida destas mulheres não era assim tão glamorosa. Ou melhor:_poderia ser glamorosa, mas só durante um período relativamente limitado, porque aos 27 anos elas já não poderiam continuar. Eram consideradas velhas».
Como é evidente, esse aspeto mais sombrio da sociedade japonesa é deixado de fora – ficando apenas plasmado nas estampas o lado mais sedutor e luminoso.
Sátiras e insetos
O curador detém-se, em seguida, frente a uma sequência de gravuras que formam uma imagem única. Mostram um grupo de mulheres a atravessar uma ponte. «Este políptico nunca tinha sido visto, e é absolutamente extraordinário. E é curiosamente um mitate-e. O que é um mitate-e? É uma espécie de uma representação satírico-caricatural, neste caso de um ato do período xogunal em que os sacerdotes faziam uma espécie de procissão para um determinado templo. Essa procissão passava por esta ponte, que é construída em 1774». Só que esta representação tem uma reviravolta surpreendente, ao colocar mulheres no lugar dos sacerdotes. «O mitate-e brinca com esta procissão, subvertendo o sentido original».
Painéis que sugerem biombos vão conduzindo o visitante através da exposição, transportando-o também para um universo de referências orientais. Os de fundo vermelho chamam a atenção para algumas das peças mais importantes. «Como esta ou como esta de uma mulher a fumegar um inseto, um mosquito», indica Jorge Rodrigues. «Tudo isto tem, obviamente, histórias muito elaboradas».
Chegámos ao núcleo dos surimono. Parecem estampas como as outras – pelo menos aos olhos não treinados do leigo –, mas têm uma particularidade distintiva. «Os surimono são geralmente das estampas mais sumptuosas. São edições privadas de clubes, em tiragens limitadas, e, ao contrário das outras, não são postas à venda ao público». Constituem, nas palavras do anfitrião, «um testemunho de qualidade, mas também de exclusividade, porque era um grupo que se via como um grupo esclarecido da sociedade japonesa».
Entre estes há um objeto que se destaca, o Livro dos Insetos Selecionados, de Kitagawa Utamaro, uma das «raridades» em exposição. «Vê-se na espiga de milho o martelado que lhe dá textura e relevo, e nas asas do inseto as aplicações metálicas que brilham com a luz». É um verdadeiro prodígio de requinte e de miinúcia.
O mesmo sentido de humor que surge nos mitate-e emerge nas representações dos sete deuses da sorte ou dos Rokkasen, os seis poetas imortais. «São seis figuras maiores da cultura japonesa. No entanto, aparecem representados como crianças traquinas», comenta Jorge Rodrigues, que chama a atenção para a correspondência entre a estampa e um objeto de laca. «Temos também uma extraordinária coleção de lacas, diga-se. Há uns dois ou três anos, tivemos cá um mestre lacrador da Universidade de Quioto que é considerado um tesouro nacional do Japão. Esteve a ver a nossa coleção e que ficou rendido. ‘Vocês têm uma coleção que não é muito grande, mas todas as peças são de enormíssima qualidade’». E essas não se encontram nas reservas.