Suriname. No país das Laranjas Negras

Suriname. No país das Laranjas Negras


No mais pequeno de todos os países da América do Sul (165 km2) a seleção da Holanda tem encontrado muitos dos seus jogadores mais talentosos, tirando proveito ainda que tardio de uma velha colónia perdida no ano de 1975 e na qual ninguém esquece a terrível tragédia de 1989.


PARAMARIBO – Na véspera, à tarde, fez tanto calor em Georgetown que é de estranhar que a fachada da catedral de St. George não tenha rachado lá pelo rondar do meio-dia. Viajámos pela margem direita do Damerara durante hora e meia, observando as águas castanhas e calmas, parámos num tasco de zinco onde estavam dependurados cinco baldes cada um com uma galinha lá dentro. Como estavam enfiadas nos baldes de cabeça para baixo só era possível reparar no desespero com que esticavam as patas. Uma lousa dizia a giz: «Pork meat! Dog meat!». Não é só no Oriente que se come carne de cão. Já passei pela experiência, em Seul, por isso decidimos ir um pouco mais à frente e ficarmo-nos por um frango cozinhado ao modo hilal, estilo sobre o qual só no Corão estão estabelecidas regras em vinte e quatro versículos. Tivemos de levar a cerveja connosco. Guinness fabricada na Guiana, não tão espessa e muito mais ácida. Por detrás do manguezal, casas empoleiradas em estacas espreitam por entre a vegetação. Os rés-do-chão servem de simples arrumações. Quando as monções fazem subir as águas do rio não há andar de baixo que escape à fúria da água. Mulheres gordas de chapéus-de-chuva pretos transformados em chapéus-de-sol rebentam de todas as cores que encontram para fazer os seus vestidos leves, algumas muito gordas, mamas como odres, que se lhes rasgam pelas costuras. Miúdos nus mergulham no rio. A estrada enche-se de camiões e cada um se safa como pode, geralmente usando as bermas como se fossem faixas. Mulas, vacas e cabras também são meios de transporte. Há mesquitas pequenas, pintadas de azul ou verde, há templos hindus rosados, há igrejas brancas de todas as espécies, sobretudo sionistas, há a sensação de impotência de suportar sobre os ombros toda esta intensidade da selva, telúrica, irresistível. A Pearl Assembly of God Church fica mesmo ao lado do lugar que escolhi para dormir uma noite curta. Um sinal avisa: Land of Canaan. É também uma terra de fartura esta Canaan da Guiana. Uma banca vende toda a espécie de fruta, desde mangas a abacates e fruta-pão, e toda a espécie de legumes, desde beringelas a batata doce. Atravessamos_a cidade que se estende basicamente nas orlas costeiras do rio e do mar e tomamos o caminho do sul. Ramdas, o meu condutor, tem a tez de cor de nós moscada e uns olhos azuis tão claros que podiam muito bem ser cegos. Quase brancos. É rapaz para a minha idade mas eu não lhe daria mais do que 70 anos. Por todos os lugares em que viajo gosto de encontrar alguém que me leve por onde quero e preciso de ir mas que revele uma personalidade interativa. Antes de sairmos de Hauraruni, vindo de Bridgetown, fez questão de me apresentar a família. Fomos a sua casa para que eu cumprimentasse a sua mulher, Nancy, e as três filhas. A mais nova delas sofre de síndrome de Down mas é a mais calorosa de todas. O seu adeus roça a ternura.

De Georgetown a Paramaribo, capital do Suriname, são cerca de 450 quilómetros. Mas há quilómetros e quilómetros. Estes são quilómetros com escassez de asfalto e com excesso de problemas. Deixamos de ter o Damerara do lado esquerdo e passamos a ter um mar igualmente acastanhado e sem ondas. Em seguida as povoações multiplicam-se pegadas umas às outras: Lusignan, Enterprise, Belfield, Mahaicony, Belladrum, Number Forty, Waterloo, Goldspie, Dukestown, Springlands, Crabwood Creak, Molsen Creak… (Também encontrei um Portuguese Quarter). Os nomes revelam as colonizações sucessivas de que a Guiana foi vítima, holandesa, francesa, inglesa, de novo holandesa, de novo inglesa até à independência em 1966. A fronteira para o Suriname é o rio Berbice que se atravessa de ferry. Guiana é uma palavra indígena que significa Terra de Muitas Águas. O ferry lento é rei destas águas porque a seguir vem outra Guiana, a antiga Guiana Holandesa, agora chamada de Suriname. Esqueço o ferry. Ramdas leva-me a um pequeno porto de táxis fluviais. São de madeira dura como ferro, carregam meia dúzia de clientes e cada baque na água funciona como se tivéssemos a espinha a ser espancada por um taco de beisebol. É preciso colocar os pés em terra para prosseguir o trajeto que nos conduz pelo País das Laranjas Negras. Este caminho é mais distante mas evita o tempo perdido na alfândega a preencher papéis e largar uns milhares de dólares – ou da Guiana, a 0,0046E ou do Suriname a 0,024E). Nunca ninguém se lembrou, pelo menos por agora, de colocar aqui uma fronteira. Tive de deixar o meu driver do lado de lá e preciso de arranjar outro. Ou foi ele que me arranjou a mim já que saí do barco literalmente ao seu colo para que não molhasse os pés e a bainha das calças. O seu nome é Rashdie e faria inveja ao Santa Camarão. Não vi formas de recusar o seu serviço. Ramdas estará do lado de lá à minha espera daqui a dois dias.

 

As Laranjas Negras

Suriname ganhou o nome dos índios que aqui habitaram: surinen. As estradas desarrumadas da Guiana dão agora lugar a um asfalto bem cuidado e ao corte de toda a erva que pode invadi-lo de forma milimétrica. Menos gente, menos bichos, menos confusão. E diques. Dezenas de diques, à moda holandesa. Continuamos junto ao mar: Middenstandpolder, Totness, Jenny, Caledonia, Sidiredjo… Paramaribo é uma cidade bonita com o centro pejado de casas coloniais arrebicadas de madeira que lhe deram estatuto de Património Mundial. Foi daqui que muitos naturais do Suriname partiram para Amesterdão em busca de trabalho ao tempo da colonização. Vários encontraram o universo do futebol.

Em 1958, no Mundial da Suécia, Garrincha, naquele seu estilo meio infantil, perguntou a um jornalista: «Olha aí cara, só no Brasil é que há nêgo?». A realidade entrava pelos olhos dentro como os mosquitos me entram pela janela enquanto escrevo ao som teimoso da ventoinha do quarto de pensão que encontrei no bairro de Nieuw Amsterdam – o Brasil era a única seleção com jogadores negros. A teimosia das equipas nacionais europeias em abrir portas aos que vinham das colónias durou demasiado tempo. Houve Ben Barek, na França, Jorge Mendonça, que era moçambicano, na Espanha, e um tal de Humphrey Mijnals, nascido em Moengo, aqui mesmo, no Suriname, que entrou na seleção holandesa em 1960. Depois esqueceram-no. A ele e aos demais. Na primeira vez que se apresentou na fase final de um Campeonato do Mundo, em 1974, a Laranja Mecânica, com os seus rapazes de cabelos loiros e longos e barbas compridas, estava bem mais próxima do rock do que do reggae. No ano seguinte, o Suriname atingiu a independência. Acabaram por ser mais os surinameses de segunda e terceira gerações que marcaram as seleções laranjas que se seguiram.

Numa entrevista concedida a uma revista inglesa, Edgard Davids, nascido a 13 de Março de 1973, em Paramaribo, afirmou o seguinte: «Ao contrário do que sucedeu na vizinha Guiana, que adotou o críquete dos ingleses, os rapazes do Suriname da minha geração deixaram-se influenciar pelo vizinho Brasil. Muitos de nós quisemos até copiar o estilo. Mas acabou por nascer um futebol técnico mas também bastante musculado».

Se passarmos os olhos pela quantidade de jogadores que o Suriname ofereceu à sua antiga potência colonizadora não deixamos de nos impressionar com a qualidade que uma seleção deste pequenino país da América podia ter tido. Por exemplo:_Menzo, Reiziger, Davids, Seedorf, Rijkaard, Gullit e Kluivert serviriam certamente para reforçar um conjunto capaz de se bater com qualquer dos melhores do mundo. Aliás, fizeram-no. Mas com a camisola da Holanda vestida.

 

A tragédia de 1989

Em 1989, um ano após a Holanda ter conquistado o Campeonato da Europa, um grupo de jogadores surinameses que se auto-apelidou The Colerfull 11, decidiu mostrar ao mundo o que podia valer uma seleção de jogadores negros naturais do país. Juntaram-se para um jogo de exibição a ter lugar em Paramaribo. Todos eles jogavam em clubes holandeses e tinham como objetivo abrir definitivamente as portas da seleção laranja aos colored, coisa que já fora pelo menos meia-feita, ainda por cima com o primeiro golo da final do Europeu marcado à União Soviética a ter sido cabeceado por Ruud Gullit (que já nasceu em Amesterdão). Como sempre acontece em situações idênticas, os clubes resolveram enfiar as suas chinelinhas e trataram de proibir os seus profissionais de participarem na festa. Alguns estiveram-se nas tintas para as ordens do patrão, o que não foi o caso nem de Gullit nem de Rijkaard (outro dos também já nascidos em Amesterdão). Valeu-lhes a vida. Porque a festa das Laranjas Negras do Suriname transformou-se numa tragédia. O voo 764 da Surinam Airways que se ergueu de Schiphol, em Amesterdão, no dia 7 de junho de 1989 não chegou ao seu destino – o aeroporto de Paramaribo-Zanderij. O aparelho, um DC-8-62, despenhou-se na fase de aproximação ao solo morrendo 176 das 187 pessoas que iam a bordo.

 Kleurrijk Elftal – é assim que em holandês se intitulava a equipa formada por Sonny Hasnoe, um dos homens que mais fez pela integração da comunidade negra no tecido social de Amesterdão, sobretudo ao divulgar as dificuldades e mesmo miséria em que viviam os habitantes do bairro de Bijlmer, praticamente um gueto. Três anos antes, Sonny conseguira por a andar um jogo entre vários internacionais surinameses (tanto pela Holanda como pelo Suriname) e o clube mais titulado do Suriname, o Robinhood. Sucesso tremendo. E um dia de grande orgulho patriótico. Nesse Junho de 1989, Sonny ouviu a palavra NÃO dada por vários dos seus compatriotas – ou por vários filhos dos seus compatriotas: Ruud Gullit e Frank Rijkaard, como já referi, mas também Aron Winter, Bryan Roy, Stanley Menzo, Dean Gorre, Jos Luhukay e Regi Blinker.

O luto entrou pela casa de vários jogadores que participavam na I e II_Divisões do campeonato holandês: Ruud Degenaar (25 anos, Heracles Almelo); Lloyd Doesburg (29, Ajax); Steve van Dorpel (23, FC Volendam); Wendel Fräser (22, RBC Roosendaal); Frits Goodings (25, FC Wageningen); Jerry Haatrecht (28, Neerlandia), que viajou no lugar do irmão, Winston Haatrecht (que não quis contrariar a decisão do seu clube, o Heerenveen); Virgall Joemankhan (20, Cercle Brugge/Bélgica); Andro Knel (21, NAC Breda); Ruben Kogeldans (22, Willem II Tilburg); Ortwin Linger (21, HFC Haarlem, que acabou por morrer três dias após o acidente); Fred Patrick (23, PEC Zwolle); Andy Scharmin (21, FC Twente); Elfried Veldman_(23, De Graafschap); Florian Vijent (27, Telstar); e o treinador Nick Stienstra (34, RC Heemstede). Foi seguramente a maior tragédia aérea do Suriname e igualmente a maior tragédia desportiva do país.

As duas últimas décadas parecem ter posto fim a uma tão estúpida relação étnica. Na verdade, e tal como acontece com outros países colonialistas (Portugal e França na frente), os negros do Suriname preferem vestir a camisola laranja da Holanda por uma questão de prestígio. Talvez seja altura de retirar dos escaparates da memória a piada racista que tombou sobre três surinameses de cor que surgiram na equipa de Elinkwijk, de Utrecht, no final dos anos 50: «Como estes negros não tinham lugar nem no céu nem no inferno enfiaram-nos em Utrecht». Para passar uma esponja sobre todas as confusões e faltas de respeito sofridas pelas Laranjas Negras do Suriname, a Federação Holandesa condecorou Mijnals no Hall of Fame em 2019. E eu escrevo em frente ao lugar de onde ele partiu para uma aventura formidável. Espreito por entre as gelosias brancas a foz do rio Suriname que adentra o Atlântico. Paramaribo quer dizer, na língua tupi-guarani, habitantes do grande rio. A tarde vai caindo mas a humidade impõe-se sempre neste lugar que é a selva a bordejar o mar. O voo largo de um grifo leva-o numa elipse até à torre de uma pequena igreja de madeira branca e recortes azuis-marinhos. Vai chover daqui a pouco. Afinal estes são os países das águas. Por todo o lado há pontes. E rios e ribeiros e canais. Porque é domingo, o mercado fechou cedo. Terei de ir procurar fruta para jantar noutro lado qualquer. O grifo bateu as asas negras como baquelite. No país das Laranjas Negras as aves negras são as que têm asas maiores…