A recente lei das associações públicas profissionais (Lei n.º 12/2023), veio alterar o modelo de autorregulação profissional que vigora há várias décadas em Portugal. O modelo agora aprovado pela maioria na Assembleia da República prevê a intervenção de elementos externos na definição da estratégia e atuação de cada uma das Ordens profissionais, o que se traduz numa clara ingerência externa e governamentalização nas atividades de regulação.
Todo o processo que resulta na situação que hoje as Ordens e as respetivas profissões enfrentam foi sempre pouco transparente, sem o adequado espaço de debate, evitando uma discussão aprofundada e partilhada com as Ordens, e sem permitir um debate alargado entre os órgãos das Ordens e os seus profissionais. De facto, em 2016 foi publicado um relatório da Autoridade da Concorrência que apontava para a necessidade de serem revistos os atos exclusivos de determinadas profissões e para a eliminação de barreiras desnecessárias no acesso às profissões, como estágios e exames de acesso. Nenhuma destas barreiras se aplicasse aplicava na altura ou se aplica hoje aos farmacêuticos. Tem também sido invocada, de forma falaciosa, a posição da Comissão Europeia. Os promotores desta alteração legislativa, a coberto desta posição e da implicação para a próxima tranche do PPR, aproveitaram os reparos europeus, que fazem sentido e são bem-vindos, para ir muito além da Comissão Europeia.
As Ordens estão agora na fase da alteração dos respetivos Estatutos, como determina a nova lei. Com perplexidade, foram-nos concedidos apenas dois dias úteis para análise de uma proposta legislativa estruturante para a profissão farmacêutica, com enormes incongruências em relação à versão que vinha sendo consensualizada entre a Ordem dos Farmacêuticos e o Ministério da Saúde, em particular sobre o exercício da atividade farmacêutica. A proposta entregue pelo Governo na Assembleia da República desvaloriza o ato farmacêutico, consagrado no nosso Estatuto há mais de 20 anos, e nem sequer tem em conta as recomendações do referido relatório da Autoridade da Concorrência. Não podemos aceitar que atividades desde sempre praticadas por farmacêuticos deixem de ser considerados atos farmacêuticos, enquanto se propõe que atos farmacêuticos possam ser praticados por qualquer pessoa, independentemente das suas qualificações. São exemplos disso a administração de medicamentos (incluindo vacinas e medicamentos injetáveis), prestação aconselhamento sobre a utilização de medicamentos e outros produtos de saúde, ou ainda realizar, interpretar e validar análises clínicas (e de outras tipologias) e testes genéticos.
A partilha de responsabilidades com outras profissões é natural para muitos atos farmacêuticos, mas o que é proposto é que qualquer pessoa o possa pratica, o que é inaceitável. Não por ser contra os interesses dos farmacêuticos, mas porque comporta, obviamente, sérios riscos para a saúde pública, ao legitimar a prestação de atividades de cuidados de saúde, altamente diferenciadas, por parte de qualquer pessoa. Espero que seja apenas uma redação infeliz e que haja a capacidade de reconhecer o risco desta redação.
Bastonário da Ordem dos Farmacêuticos