Conhecer e viver a vida toda, sobretudo a que não nos deixam mais viver


A vida atual caminha assente num percurso solitário ou, no máximo, numa visão meramente familiar ou grupal que a todos enreda e impede de visitar outros horizontes e ideias.


Tal como acontecia com o meu pai, gosto de ir às compras.

Gosto, sobretudo, de comprar comida: desde petiscos a alimentos essenciais.

Gosto, especialmente, da conversa que as compras proporcionam com os vendedores e os outros clientes.

Nisso, os orientais e os norte-africanos, por exemplo, são exímios: negócio implica conversa.

De maneira aparentemente contraditória, com a pandemia esse meu gosto intensificou-se.

Nos longos tempos que fiquei sozinho, em Haia, em período de recolher obrigatório, ir ao supermercado era, com efeito, a única oportunidade que me restava para ver e falar com alguém, ainda que, na generalidade dos casos, fosse só com as meninas da caixa.

Digo meninas, porque eram quase todas do sexo feminino e muito jovens; a maioria com o véu islâmico reforçado com as máscaras e falando um inglês fluente, o que me permitia comunicar com elas.

Elas, também, as heroínas da pandemia.

De resto, até prefiro abastecer-me no pequeno comércio que, contudo, estava encerrado, as mais das vezes, nesses dias da pandemia.

Nada mais divertido, na verdade, do que inquirir um vendedor da qualidade dos produtos que desejamos comprar e ouvi-lo, sempre, a atestar a sua excelência, mesmo quando estamos mesmo a ver que, claramente, não é como ele diz e garante.

Por isso, para poder falar com alguém, cheguei a inventar um truque: não comprar tudo de uma vez no supermercado para, pelo menos, poder ir lá de manhã e ao fim da tarde.

 As conversas eram curtas, é certo, mas, enfim, eram de vozes humanas reais e que eu identificava com caras já conhecidas, mesmo que, parcialmente, escondidas pelas máscaras.

Nada, portanto, da sensação de irrealidade que se sofre com as telechamadas ou com enfadonhas videoconferências.

Devido a esse meu gosto pelo contacto direto com as pessoas – nunca tendo atingido, porém, a facilidade de comunicação, com conhecidos e desconhecidos, do meu pai –, sempre preferi, igualmente, viajar de transportes públicos.

Ora, também os transportes públicos, durante a pandemia, se tornaram em lugares silenciosos e sombrios devido ao uso obrigatório de máscaras e às distâncias que todos guardavam.

Nada, pois, de interessante aí, para, nesse período, ultrapassar o isolamento.

 A exposição destas minhas congeminações resultou do facto de ter entrado num destes dias na sede da Eurojust, em Haia – onde trabalho, por enquanto – e ter-se dado o caso de quase não ter encontrado pessoas conhecidas a quem, como na canção do José Cid, cumprimentar e despedir-me na língua própria.

Não era dia feriado ou fim-de-semana, mas, devido às novas regras do teletrabalho, aconteceu, coincidentemente, que a maioria dos membros dos gabinetes nacionais situados perto do português e dos seus membros de apoio não havia, nesse dia, comparecido na sede.

Estavam em teletrabalho.

Fiquei, por isso, sozinho no gabinete, meditando sobre este novo mundo que a reorganização das regras do trabalho vai, paulatinamente, impondo.

Refiro-me, claro, ao isolamento e ensimesmamento que, ao menos para mim, tal reorganização provoca, mas não só.

Hoje, quando saio, vejo imensas pessoas trabalhando em co-work centres e outras nos cafés e esplanadas, agarradas aos computadores, com auriculares firmados nas orelhas, obstruindo, desse modo, a possível comunicação com o próximo mais próximo.

Naturalmente que as novas e mais elásticas fórmulas laborais ajudam consideravelmente as relações familiares, aliviam o stress do tempo gasto nas viagens dos superlotados transportes públicos, a necessidade de correr para chegar a horas à escola dos filhos, a obrigação de fazer o abastecimento nos supermercados em horários mais frequentados.

Tais fórmulas híbridas de trabalho, mais ou menos extensas e maleáveis, possibilitam mesmo, de alguma maneira, alguns espaços de tempo extra para a convivência social com amigos e parentes.

Todavia, pergunto-me se, assim, não se encerram também as pessoas em círculos cada vez mais pequenos, impedindo-as de terem uma perceção mais abrangente da vida própria e da dos outros.

Pergunto-me, ainda, se esta prática não exacerba o individualismo ou o tribalismo, com tudo o que isso comporta de uma nova atitude perante a vida social, política, religiosa, cultural, etc.

Durante muitos anos, em Portugal, foi a Igreja que manteve uma férrea defesa dos dias de descanso semanais e dos feriados, opondo-se a que eles fossem usados para fins de atividade económica e laboral.

Tinha esta sua posição em vista preservar, precisamente, a possibilidade dos crentes se dedicarem à meditação, à oração e à família.

Nesses tempos, a reunião dos fiéis, antes, durante e depois da missa semanal, propiciava, igualmente, tempo de convívio e de discussão social sobre os assuntos mais candentes da vida.

Depois, foram os sindicatos que fizeram de tal defesa uma bandeira; mas, reconheçamos, com a deserção da Igreja, com menos sucesso.

Hoje – posso estar desatento – mas nem sequer a Igreja, mesmo que sem os rigores de alguns ultraortodoxos grupos judaicos, se opõe ao trabalho nos fim-de-semana e feriados santos.

A vida dos homens caminha, assim, atualmente, assente num percurso solitário ou, no máximo, numa visão meramente familiar ou grupal que a todos enreda e impede de visitar outros horizontes e ideias mais largas.

Deste modo, na busca de alguma identidade e pertença – de que os homens carecem – a vida pode mesmo vir a radicalizar-se em torno de novas e incógnitas tribos digitais.

Com efeito, alguns dos seus seguidores nem sequer conhecem, realmente, os outros membros do grupo, as suas ideias e os seus desígnios, apenas se aproximando deles pela internet e através das suas pouco transparentes redes sociais.

As repercussões que esta mudança no estilo de vida trará são ainda pouco óbvias.

Vivo, por ora, num país onde tais experiências de regimes laborais se vão alargando e algumas delas consolidando com efetivo êxito.

Neste país, porém, apesar de a convivência social se fazer, quase sempre, fora de casa – isto é, não há, em regra, convites não programados para visitas domésticas – pode assistir-se, de facto, agora, a uma ainda maior e alegre convivência pós-laboral nos cafés, bares e esplanadas.

Nisso, talvez a mudança climática tenha ajudado também: 32º graus em Haia, no mês de junho, é novidade de monta.

Em todo o caso, pergunto-me: propiciará tal tipo de convívio o sentimento coletivo de pertença, solidariedade e de identidade política, religiosa, social, cultural e laboral capazes de fazer mover a sociedade, quando esta se confronta com as cíclicas crises que as indisfarçáveis contradições existentes provocam?

A única coisa que posso testemunhar é que o isolamento que a pandemia criou tem tido alguma influência na atitude, agora menos participativa, de quase todos os que trabalham na mesma organização que eu.

As discussões que hoje nela se travam em torno dos objetivos, métodos e necessidades de trabalho revelam-se, nitidamente, menos entusiásticas e, sobretudo, menos profundas.

Na falta de uma discussão aprofundada, verdadeira e antecipadamente informada sobre os fins das mudanças – isso caiu em desuso com a pandemia – difundiu-se a ideia, certa ou errada, de que não vale a pena intervir senão na superfície das coisas.

No mais – acredita-se – tudo já se encontra previamente decidido e o diálogo e as aparentes controvérsias servem apenas para, como dizem os franceses, «épater le bourgeois».

 O isolamento imposto pela pandemia alterou, também, assim, a participação democrática e a cultura da gestão: esta concentrou-se, no essencial, nos mais pequenos, acomodatícios, acríticos e muito mais seguidistas órgãos executivos.

Quanto aos outros cidadãos, acreditando estar agora desonerados de muitas das suas anteriores e pesadas responsabilidades de intervenção social, resta-lhes, portanto, aproveitar a vida: até quando?

Conhecer e viver a vida toda, sobretudo a que não nos deixam mais viver


A vida atual caminha assente num percurso solitário ou, no máximo, numa visão meramente familiar ou grupal que a todos enreda e impede de visitar outros horizontes e ideias.


Tal como acontecia com o meu pai, gosto de ir às compras.

Gosto, sobretudo, de comprar comida: desde petiscos a alimentos essenciais.

Gosto, especialmente, da conversa que as compras proporcionam com os vendedores e os outros clientes.

Nisso, os orientais e os norte-africanos, por exemplo, são exímios: negócio implica conversa.

De maneira aparentemente contraditória, com a pandemia esse meu gosto intensificou-se.

Nos longos tempos que fiquei sozinho, em Haia, em período de recolher obrigatório, ir ao supermercado era, com efeito, a única oportunidade que me restava para ver e falar com alguém, ainda que, na generalidade dos casos, fosse só com as meninas da caixa.

Digo meninas, porque eram quase todas do sexo feminino e muito jovens; a maioria com o véu islâmico reforçado com as máscaras e falando um inglês fluente, o que me permitia comunicar com elas.

Elas, também, as heroínas da pandemia.

De resto, até prefiro abastecer-me no pequeno comércio que, contudo, estava encerrado, as mais das vezes, nesses dias da pandemia.

Nada mais divertido, na verdade, do que inquirir um vendedor da qualidade dos produtos que desejamos comprar e ouvi-lo, sempre, a atestar a sua excelência, mesmo quando estamos mesmo a ver que, claramente, não é como ele diz e garante.

Por isso, para poder falar com alguém, cheguei a inventar um truque: não comprar tudo de uma vez no supermercado para, pelo menos, poder ir lá de manhã e ao fim da tarde.

 As conversas eram curtas, é certo, mas, enfim, eram de vozes humanas reais e que eu identificava com caras já conhecidas, mesmo que, parcialmente, escondidas pelas máscaras.

Nada, portanto, da sensação de irrealidade que se sofre com as telechamadas ou com enfadonhas videoconferências.

Devido a esse meu gosto pelo contacto direto com as pessoas – nunca tendo atingido, porém, a facilidade de comunicação, com conhecidos e desconhecidos, do meu pai –, sempre preferi, igualmente, viajar de transportes públicos.

Ora, também os transportes públicos, durante a pandemia, se tornaram em lugares silenciosos e sombrios devido ao uso obrigatório de máscaras e às distâncias que todos guardavam.

Nada, pois, de interessante aí, para, nesse período, ultrapassar o isolamento.

 A exposição destas minhas congeminações resultou do facto de ter entrado num destes dias na sede da Eurojust, em Haia – onde trabalho, por enquanto – e ter-se dado o caso de quase não ter encontrado pessoas conhecidas a quem, como na canção do José Cid, cumprimentar e despedir-me na língua própria.

Não era dia feriado ou fim-de-semana, mas, devido às novas regras do teletrabalho, aconteceu, coincidentemente, que a maioria dos membros dos gabinetes nacionais situados perto do português e dos seus membros de apoio não havia, nesse dia, comparecido na sede.

Estavam em teletrabalho.

Fiquei, por isso, sozinho no gabinete, meditando sobre este novo mundo que a reorganização das regras do trabalho vai, paulatinamente, impondo.

Refiro-me, claro, ao isolamento e ensimesmamento que, ao menos para mim, tal reorganização provoca, mas não só.

Hoje, quando saio, vejo imensas pessoas trabalhando em co-work centres e outras nos cafés e esplanadas, agarradas aos computadores, com auriculares firmados nas orelhas, obstruindo, desse modo, a possível comunicação com o próximo mais próximo.

Naturalmente que as novas e mais elásticas fórmulas laborais ajudam consideravelmente as relações familiares, aliviam o stress do tempo gasto nas viagens dos superlotados transportes públicos, a necessidade de correr para chegar a horas à escola dos filhos, a obrigação de fazer o abastecimento nos supermercados em horários mais frequentados.

Tais fórmulas híbridas de trabalho, mais ou menos extensas e maleáveis, possibilitam mesmo, de alguma maneira, alguns espaços de tempo extra para a convivência social com amigos e parentes.

Todavia, pergunto-me se, assim, não se encerram também as pessoas em círculos cada vez mais pequenos, impedindo-as de terem uma perceção mais abrangente da vida própria e da dos outros.

Pergunto-me, ainda, se esta prática não exacerba o individualismo ou o tribalismo, com tudo o que isso comporta de uma nova atitude perante a vida social, política, religiosa, cultural, etc.

Durante muitos anos, em Portugal, foi a Igreja que manteve uma férrea defesa dos dias de descanso semanais e dos feriados, opondo-se a que eles fossem usados para fins de atividade económica e laboral.

Tinha esta sua posição em vista preservar, precisamente, a possibilidade dos crentes se dedicarem à meditação, à oração e à família.

Nesses tempos, a reunião dos fiéis, antes, durante e depois da missa semanal, propiciava, igualmente, tempo de convívio e de discussão social sobre os assuntos mais candentes da vida.

Depois, foram os sindicatos que fizeram de tal defesa uma bandeira; mas, reconheçamos, com a deserção da Igreja, com menos sucesso.

Hoje – posso estar desatento – mas nem sequer a Igreja, mesmo que sem os rigores de alguns ultraortodoxos grupos judaicos, se opõe ao trabalho nos fim-de-semana e feriados santos.

A vida dos homens caminha, assim, atualmente, assente num percurso solitário ou, no máximo, numa visão meramente familiar ou grupal que a todos enreda e impede de visitar outros horizontes e ideias mais largas.

Deste modo, na busca de alguma identidade e pertença – de que os homens carecem – a vida pode mesmo vir a radicalizar-se em torno de novas e incógnitas tribos digitais.

Com efeito, alguns dos seus seguidores nem sequer conhecem, realmente, os outros membros do grupo, as suas ideias e os seus desígnios, apenas se aproximando deles pela internet e através das suas pouco transparentes redes sociais.

As repercussões que esta mudança no estilo de vida trará são ainda pouco óbvias.

Vivo, por ora, num país onde tais experiências de regimes laborais se vão alargando e algumas delas consolidando com efetivo êxito.

Neste país, porém, apesar de a convivência social se fazer, quase sempre, fora de casa – isto é, não há, em regra, convites não programados para visitas domésticas – pode assistir-se, de facto, agora, a uma ainda maior e alegre convivência pós-laboral nos cafés, bares e esplanadas.

Nisso, talvez a mudança climática tenha ajudado também: 32º graus em Haia, no mês de junho, é novidade de monta.

Em todo o caso, pergunto-me: propiciará tal tipo de convívio o sentimento coletivo de pertença, solidariedade e de identidade política, religiosa, social, cultural e laboral capazes de fazer mover a sociedade, quando esta se confronta com as cíclicas crises que as indisfarçáveis contradições existentes provocam?

A única coisa que posso testemunhar é que o isolamento que a pandemia criou tem tido alguma influência na atitude, agora menos participativa, de quase todos os que trabalham na mesma organização que eu.

As discussões que hoje nela se travam em torno dos objetivos, métodos e necessidades de trabalho revelam-se, nitidamente, menos entusiásticas e, sobretudo, menos profundas.

Na falta de uma discussão aprofundada, verdadeira e antecipadamente informada sobre os fins das mudanças – isso caiu em desuso com a pandemia – difundiu-se a ideia, certa ou errada, de que não vale a pena intervir senão na superfície das coisas.

No mais – acredita-se – tudo já se encontra previamente decidido e o diálogo e as aparentes controvérsias servem apenas para, como dizem os franceses, «épater le bourgeois».

 O isolamento imposto pela pandemia alterou, também, assim, a participação democrática e a cultura da gestão: esta concentrou-se, no essencial, nos mais pequenos, acomodatícios, acríticos e muito mais seguidistas órgãos executivos.

Quanto aos outros cidadãos, acreditando estar agora desonerados de muitas das suas anteriores e pesadas responsabilidades de intervenção social, resta-lhes, portanto, aproveitar a vida: até quando?