“O que me preocupa é a ausência total de uma visão reformista”

“O que me preocupa é a ausência total de uma visão reformista”


Eduardo Catroga defende que fazer ‘crescer a riqueza nacional deve ser o nosso  grande desafio’ e diz que ‘os partidos quando estão muito tempo no poder tendem a ser conservadores e hoje o PS é um partido conservador’.


Os dados económicos da economia têm sido animadores, mas por outro lado, temos os países do Leste a ultrapassarem-nos… 

Os dados do primeiro trimestre de 2023 foram altamente positivos, o que levou as instituições internacionais, desde o FMI à Comissão Europeia, à OCDE a reverem as suas projeções para o crescimento do PIB [Produto Interno Bruto] para a totalidade deste ano para valores de 2,5%/2,6% e tudo indica que até poderá ser ligeiramente superior. No comportamento de curto prazo temos esta boa notícia, a par da inflação que também está com uma tendência de queda e com o emprego a atingir máximos históricos. Depois temos uma outra estimativa para 2024 que aponta já para um decréscimo no crescimento para 1,5%. Mas devíamos apostar em fatores que permitissem um impulso no crescimento económico para a casa dos 3%/4% de uma forma continuada para contrariarmos a tendência dos últimos anos de estarmos a caminhar para a cauda da Europa, em termos de PIB per capita em paridades de poder de compra. Por outro lado, há sinais positivos que vêm do lado das empresas, como é o caso do aumento das exportações, esperando que, em 2023, muitos setores possam atingir valores históricos, não só pelo turismo.

As exportações têm estado muito assentes no turismo… 

Sim, mas este aumento deve-se não só ao turismo e às exportações de serviços como também às exportações em vários setores da economia, desde o agroalimentar, a produtos de saúde e à indústria metalúrgica e metalomecânica que é o setor mais exportador da economia portuguesa com vários subsegmentos. É o caso, por exemplo, dos componentes automóveis que têm tido um bom dinamismo. Há setores que estão com uma dinâmica positiva no crescimento das exportações, mas nem sempre com um impacto diferencial em termos de valor acrescentado nacional e, por isso, temos um desafio que é aumentar o valor acrescentado nacional das exportações nacionais. É certo que, nos últimos 15 anos, aumentámos em 20 pontos percentuais o peso das exportações no PIB, mas se fizermos uma análise mais fina concluímos que apenas cerca de 40% deste aumento está relacionado com as exportações com algum valor acrescentado. Isto deriva da especialização industrial que está muito assente na produção de bens intermédios e Portugal nas suas cadeias de valor ainda não está a capturar o valor acrescentado que deveria. Isto mostra que temos sinais positivos para 2023, mas também temos sinais de abrandamento para 2024. Os sinais positivos vêm do lado da estrutura produtiva, embora também estejamos com um problema que é o desequilíbrio entre o peso relativo do setor dos serviços e o peso relativo dos outros setores da economia, nomeadamente da indústria. O turismo está a representar uma fatia crescente na formação do PIB e do emprego, o que, por um lado é positivo, mas por outro lado, indicia que não estamos a apostar devidamente nos setores de maior valor acrescentado e de maior capacidade de criação de emprego qualificado. Por exemplo, um sinal negativo nos últimos tempos tem sido a quebra continuada da produção industrial que caiu 7% em relação a abril do ano passado, quer no setor dos produtos de grande consumo, quer no setor de produtos intermédios, quer mesmo na produção de bens energéticos. A grande questão é o que temos ou não feito, em termos estruturais, para aumentar o crescimento potencial da economia a prazo para de uma forma continuada, não de uma forma pontual, atingirmos 3% ou atingirmos um ritmo de crescimento duradouro de 3% ou 4% durante dez ou 15 anos. A SEDES, por exemplo, propõe que se executem políticas que dupliquem o nosso PIB a cada 20 anos. Crescer a riqueza nacional deve ser o nosso grande desafio, a grande ambição. E o que é que temos feito para que isso venha a acontecer? Infelizmente, chegamos à conclusão que no campo das políticas públicas não temos contribuído, nem para a melhoria da produtividade do setor público administrativo, nem do setor público empresarial, o que deveria ser uma das grandes responsabilidades de qualquer Governo. Também não temos feito grande coisa no sentido de melhorar o ambiente competitivo das empresas e de criar um sistema de incentivos mais adequado ao crescimento. A economia portuguesa está hoje numa encruzilhada e precisa de dar um salto estrutural, mas para dar esse salto necessita de uma nova ambição e de políticas não conservadoras, mas progressistas. Aí não vejo uma grande vontade reformadora, vejo uma vontade de manter o statu quo sem alterações estruturais, seja no pilar político institucional ou no pilar da produtividade, por exemplo. É isso que me preocupa essencialmente, a ausência total de uma visão reformista.

Andamos sempre neste rame rame… 

Os partidos quando estão muito tempo no poder tendem a ser conservadores e hoje o Partido Socialista é um partido conservador, no sentido que se preocupa essencialmente com a sua manutenção no poder. É um partido retrógrado como a velha direita conservadora. Não é um partido que queira desenvolver ações estruturais para melhorar a produtividade do setor público administrativo ou do setor público empresarial, onde tem responsabilidades diretas para definir uma política de incentivos mais virada para o crescimento das empresas. As empresas que crescem são penalizadas, começam por ser penalizadas pelas taxas progressivas de IRC, pelos impostos extraordinários e pelos alegados lucros excessivos. O Partido Socialista é conservador como os partidos da esquerda radical que só falam em micro e pequenas empresas, é claro que precisamos dessas, mas também precisamos que as pequenas e médias cresçam para aumentar a produtividade do setor empresarial e logo a produtividade global do país. O sistema de incentivos virado para as empresas deveria ser reestruturado, reformado, tendo em conta que as empresas são o motor da economia e não o Estado. Isto também radica na visão conservadora do Partido Socialista que vê o Estado como um fim em si mesmo, em que gere os recursos e as suas opções em função do seu eleitorado que está dependente do Estado. 

No anterior Governo, o PS estava dependente dos partidos de esquerda, mas agora com uma maioria não teria todas as condições para fazer estas tais reformas? 

Para isso teria de ter uma visão estratégica no quadro de uma economia de mercado, no quadro de uma economia que se pretende competitiva e vencedora na economia global. Não basta ter uma maioria absoluta é preciso saber utilizar essa maioria para fazer várias alterações. Uma maioria absoluta permite ao chefe do Governo escolher os seus membros fora das restrições partidárias e ir buscar pessoas à sociedade civil de alta competência em todas as esferas. Ora, isso não aconteceu. Verificou-se um fechamento sobre a ‘tribo’, em que o aparelho partidário maioritário passou a dominar totalmente o Governo, sem abertura à sociedade civil. Uma maioria absoluta também serve para fazer reformas estruturais, quer no plano político, quer no plano económico, mas dentro de uma determinada visão. Qual é a visão estratégica que interessa para o país? Deve partir de um pressuposto: estamos na economia europeia, estamos na União Europeia, estamos na zona euro e, portanto, estamos em concorrência no espaço europeu e em concorrência no espaço global. Temos de ter um modelo político, económico, de economia de mercado e isso deve eliminar pulsões estatizantes que estão muito presentes na esquerda socialista. O que é que assistimos? Por um lado, a uma preocupação conservadora de manter o poder e de agradar ao eleitorado no curto prazo, que é um eleitorado muito dependente do Orçamento do Estado, em boa parte. E, por outro lado, a uma falta de visão reformista para o país, no sentido de o tornar mais produtivo, de criar mais riqueza para depois saber distribuí-la melhor. 

Até para haver melhores salários… 

Não podemos ter melhores salários de uma forma sustentada sem ter maior valor acrescentado nacional. Este devia ser o grande desígnio nacional. O Presidente da República, agora na intervenção de 10 de Junho, disse que não podemos desistir de criar mais riqueza. O discurso político nos últimos sete anos tem sido pouco orientado para esta criação de riqueza e para a necessidade de melhorar a qualidade da alocação de recursos na economia. Não é só investir em quantidade. É investir bem. Deve-se dar prioridade ao setor dos bens transacionáveis que são determinantes para a nossa competitividade externa. Deve-se melhorar a qualidade do capital físico, melhorar a qualidade do capital humano e melhorar a produtividade, que são as três variáveis chave para fazer crescer potencialmente o país. No caso do capital físico, o Partido Socialista fez cair o investimento público para metade face há dez anos, quer em percentagem do PIB, quer no seu peso relativo no investimento total e não soube atrair investimento privado nacional e estrangeiro em quantidade. Temos um gap importante no stock de capital na economia que é uma das causas da baixa produtividade. Temos tido um gap de quatro a cinco pontos percentuais do PIB na formação bruta de capital fixo nos últimos 10 a 15 anos. Investimos menos do que aquilo que devíamos e nem sempre investimos bem. Já em relação ao capital humano dizemos que temos a geração mais bem formada de sempre, o que digo é que cada geração tem de estar formada em função das necessidades de cada época. Até podemos ter a geração com maior grau de escolarização de sempre, mas nem sempre temos a geração capaz com as qualificações gerais e técnicas adequadas aos novos tempos. Também o sistema de ensino não tem privilegiado a qualidade e a exigência, nem tem privilegiado o desenvolvimento do ensino técnico profissional. As chamadas escolas profissionais são um parente pobre do sistema de ensino, quando deviam ser um elemento determinante da formação técnica e profissional dos portugueses. Por exemplo, em relação ao sistema de saúde temos posto dinheiro em cima dos problemas, mas não o temos reestruturado. Porquê? Porque o Partido Socialista é um partido conservador e não quer mexer nos interesses instalados, como é típico dos conservadores. Nos últimos sete, oito anos por critérios ideológicos acabou com as parcerias público privadas, não desenvolveu novas, reduziu o horário de trabalho dos funcionários, o que se traduziu em quebras de produtividade e implicou um aumento do número de funcionários.

Lançando o caos…

Atualmente vejo muita desorganização e uma confusão de estruturas entre as funções de ministro, de direção executiva, das direções gerais e das direções regionais. Vejo uma grande indisciplina na organização do sistema de saúde. Como também vejo a chamada escola pública tomada por interesses corporativos que não estão ao serviço dos portugueses, não desempenhando uma das funções críticas que devia ter que era de ser um instrumento de ascensão social. Também vejo o sistema de Justiça sem grandes progressos em relação ao que é apontado por todos os investidores e que diz respeito à morosidade dos tribunais administrativos e fiscais. Já não estou a falar na má qualidade das decisões do poder judicial, mas na morosidade, porque para atacar este problema é preciso fazer reformas estruturais e o Partido Socialista, como todos os partidos conservadores, tem medo de as fazer. Criou-se um Estado administrativo gordo com macro e microestruturas empoladas em quase todos os ministérios, uma máquina pesada que impunha reestruturações e reformas no sentido de uma transformação digital ativa, otimizando processos, estruturas e efetivos. Em vez disso, põem-se mais pessoas, mais meios em cima dos problemas. As grandes privatizações foram feitas, mas começaram a proliferar empresas públicas ligadas à administração central, regional e local. Existem centenas de organizações, em que muitas delas nem merecem a designação de empresas e funcionam como instrumentos ao serviço do partido político que está momentaneamente no poder. Quais são as empresas públicas que devem ser eliminadas? Quais são as empresas públicas que devem ser privatizadas? Quais são as empresas públicas que podem ser objeto de contratos de concessão de exploração? Vejo um caos no setor dos transportes e fazer reformas nos caminhos-de-ferro não é só fazer investimentos de modernização que são necessários deve-se, por exemplo, em certas linhas ter concorrência. Foi por isso que se criou a Refer, onde podiam passar várias linhas de exploração em concorrência umas com as outras, como acontece nos países mais desenvolvidos e como já acontece em Espanha. Em Portugal mantemos um monopólio que representa sempre uma fonte de ineficiência. Por outro lado, olho com alguma pena para aquilo que os espanhóis estão a fazer e comparo com o que os portugueses estão a fazer, por exemplo, no setor da indústria automóvel. Este setor está em transformação profunda, no sentido da sua eletrificação. Os espanhóis utilizaram massivamente o seu PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] para convencer a Volkswagen a eletrificar duas das suas fábricas, o que irá permitir um investimento em baterias de 10 mil milhões, em Valência. Ora, as baterias são a componente de maior valor acrescentado no novo modelo de produção automóvel, após o fim dos motores de combustão. Não vejo que Portugal tenha feito um esforço, no sentido de conseguir a eletrificação da Autoeuropa, em Setúbal. Conseguiu agora um híbrido e a garantia de produção até 2035, mas depois é uma incógnita. A eletrificação devia ser uma prioridade. Outra seria as baterias, já perdemos oportunidades para Espanha em relação à Volkswagen, à Tesla e à Nissan. Vejo uma réstia de esperança com o grupo francês que tem a fábrica em Mangualde, mas é pequena e não tem o impacto da Autoeuropa, ainda assim, caminha para a eletrificação e vai buscar as suas baterias, numa primeira fase, à China. Não vejo os nossos responsáveis políticos a pensarem nisso. Se estivesse no Governo andava todos os dias a bater à porta dos grandes investidores da indústria que pudessem ajudar no processo de aumentar o valor acrescentado da indústria transformadora nacional. Não vejo essas preocupações no Governo.

Nem o PRR ser canalizado para esse objetivo…

Houve agora um aspeto positivo que foi a reprogramação do PRR, no sentido de utilizar a componente de empréstimos para reforçar as chamadas agendas mobilizadoras. Vamos ver em como é que isso se transforma em projetos de inovação empresarial.

Com os problemas que está a identificar e aliado à falta de ambição sente que estamos a hipotecar o futuro?

O problema é que não há uma boa economia sem haver uma boa política e em regime democrático tudo depende da visão estratégica de quem tem a maioria no Parlamento. É bom que assim seja, porque estamos em democracia. Os portugueses em geral são uma população envelhecida e bastantes jovens com potencial estão a escolher o caminho da emigração, em boa percentagem. Por outro lado, estamos a importar mão-de-obra pouca qualificada, sobretudo para o setor do turismo e agricultura, o que não é um bom mix numa perspetiva de crescimento e de desenvolvimento económico e social. Os políticos têm aqui uma grande responsabilidade, têm de fazer pedagogia junto da população, no sentido de uma maior ambição para criar mais oportunidades de emprego qualificado para os filhos e netos. E não pensar apenas em distribuir mais salários para a função pública ou em passar mais uns cheques e chequinhos. 

Entramos num ciclo vicioso…

Corremos o risco da chamada mexicanização. O partido radical mexicano, à semelhança do nosso Partido Socialista, esteve muitos anos no poder e não trouxe grandes progressos. Sou contra a manutenção no poder de qualquer partido político durante muitos anos, mas estamos em democracia e o povo é quem mais ordena.

O ideal seria mudar em cada legislatura por uma cor política diferente?

Os portugueses até deram ao partido, como deram a Cavaco Silva, toda a legitimidade política para fazer as reformas políticas, económicas e sociais que o país impunha. O país nunca deu um salto tão grande em termos de convergência real como deu no tempo de Cavaco Silva. Se medirmos a convergência real em relação aos países mais desenvolvidos – a União Europeia a 15 – passámos de 55,6% em 1985 de média do PIB per capita e paridade de poder de compra para 68,2%, em 1995, quando saí do Governo. Atualmente devemos estar nos 72/ 73%. Nos últimos 25 anos pouco progredimos e até aqueles países que pertenceram ao leste europeu têm vindo a crescer mais do que nós e têm vindo a melhorar o seu PIB per capita em paridade de poder de compra. Portugal corre o risco de caminhar para a cauda da Europa, de onde saímos no início dos anos 90, de acordo com a definição do Banco Mundial. As pessoas não discutem isto e existem trabalhos da sociedade civil a fazer recomendações de políticas para se alterar este estado de coisas. Não é por falta de diagnóstico dos problemas e de propostas de ação, o que existe é falta de ambição. Portugal foi politicamente tomado por forças conservadoras.

O Governo tem vindo a dar apoios a algumas famílias devido ao aumento do custo de vida. A ideia de contas certas não permite ir mais além? 

Vamos por partes. O que são contas certas? É a criação de condições para de uma forma duradoura termos sustentabilidade tanto da dívida pública como externa. Portugal na sua história democrática teve de chamar três vezes a ajuda externa devido à insustentabilidade das contas externas e essa sustentabilidade depende a prazo de se exportar mais do que importar. Isso depende da competitividade externa das empresas, depende dos governos nas suas políticas económicas e de interiorizar que as empresas são o motor da economia e que a competitividade e a produtividade são a grande meta. Não se pode sustentar o Estado social a prazo sem criação de riqueza e falta esta interiorização. Ainda estamos longe de termos contas certas sustentáveis, temos a terceira dívida mais elevada e não temos uma capacidade duradoura nem para garantir a sustentabilidade das contas públicas, nem para garantir a sustentabilidade das contas externas. Por outro lado, a inflação teve uma componente importada significativa, Portugal foi prejudicado nas suas relações de troca, isto é, pagámos mais caro determinado tipo de bens, sobretudo numa determinada fase, como os bens energéticos e não só. Saíram rendimentos do país, portanto, Portugal ficou mais pobre. A inflação como a que vivemos com fatores estruturais externos à nossa economia e aliado a fatores internos por falta de produtividade tinha necessariamente de ter implicações ao nível dos rendimentos. É demagogia pensar que isso podia ser feito sem sacrifícios. E, como economista, o que defendo é que se deva apoiar os segmentos da população mais desfavorecidos e os mais vulneráveis. É preciso ter apoios mais direcionados, mais focalizados e não apoios gerais. Em determinada altura, o Governo apostou nos apoios gerais, passou cheques a quase toda a gente a pensar em termos eleitorais e não em termos de focalização nos mais necessitados. O Estado não pode aumentar muito os salários da função pública quando estes acabam, ao fim e ao cabo, a ser pagos pelos contribuintes portugueses que já são objeto de uma grande asfixia fiscal, quer sobre os indivíduos, quer sobre as empresas. Nos últimos sete anos, o IRS subiu a um ritmo anual de três mil milhões por ano. Portugal precisa de uma grande reforma fiscal, mas não a pode fazer sem reformar simultaneamente a despesa pública.

Na última entrevista até disse que era uma verdadeira manta de retalhos… 

Claro e, por isso, precisa de uma grande reforma fiscal. Ainda no outro dia, um responsável de uma associação empresarial chamava a atenção para o facto de Portugal ter 4.300 impostos e taxas e taxinhas. Não há racionalidade nem no IRS, nem no IRC, nem nas contribuições extraordinárias. O sistema fiscal transformou-se numa via em captar receitas para manter os níveis elevados de despesa pública, sem procurar reestruturar a despesa pública e melhorar a sua qualidade, sacrificando até o investimento público. Ainda no outro dia li que o Governo está a fazer a reforma das ordens profissionais e da lei do tabaco. São reformas que não têm a ver com o crescimento do PIB potencial e aplica as suas energias em reformas menores. Os portugueses não aguentam mais impostos e o Governo ainda tem alguma margem de manobra devido à taluda da inflação que, ainda assim, se está a esgotar, mas tem tanta gente a comer à mesa do Orçamento que às tantas tem dificuldade em distribuir o bolo. 

Por outro lado, está a gastar muita energia, usando a sua expressão, na TAP, que tem sido alvo de escândalos atrás de escândalos…

Tenho dito sempre que a TAP é um caso de estudo negativo do processo de decisão política e de eficiência empresarial em Portugal. Como o Governo socialista não tem uma visão estratégica coerente para o país tanto privatiza como nacionaliza. Isto é falta de uma linha de coerência. É preciso definir se o nosso caminho é nacionalizar ou se é privatizar, mas com coerência e com fundamentos de eficiência económica e financeira. Aparecem responsáveis a dizer que a TAP devia ser privatizada, outros dizem que o Estado devia manter o controlo, sem prejuízo da abertura a acionistas privados, outros dizem que a TAP devia ser estatizada. Estas trapalhadas na TAP devem-se ao facto de o Estado não saber, nem ter vocação de empresário gestor. O Estado devia concentrar as suas energias no core das funções nucleares do Estado e abandonar de vez a esfera produtiva da produção direta de bens e serviços quando estes podem ser facultados no mercado. Não há uma visão estratégica coerente e a TAP é fruto disso. Estas trapalhadas que vieram à baila com a Comissão Parlamentar de Inquérito vieram só alicerçar a opinião daqueles como eu que pensam que o Estado não sabe gerir empresas e que as empresas estatais estão entregues aos aparelhos partidários, em que hoje pode ser um e amanhã pode ser outro. Quanto mais depressa estas empresas deixarem de estar sob a tutela exclusiva do Estado melhor para o bolso dos contribuintes e melhor para a eficiência global da economia. Vamos lá ver o desenvolvimento dos próximos capítulos. 

Que desfecho está è espera da Comissão Parlamentar de Inquérito? Geralmente a culpa morre solteira… 

As Comissões Parlamentares de Inquérito são sempre relatórios políticos, em que os partidos políticos tendem a puxar a brasa à sua sardinha, utilizando os argumentos de que o outro partido político é que foi responsável por isto ou por aquilo. Esta Comissão Parlamentar de Inquérito começa com um problema menor, com uma minudência, para não dizer que é outra coisa.

É o caso da indemnização de Alexandra Reis? 

A indemnização acaba por se transformar num processo de autópsia da própria TAP nos últimos anos: se a privatização de 2015 foi bem ou mal feita, se o Estado fez bem ou não em nacionalizar, o despejar de 3,2 mil milhões de dinheiro dos contribuintes com reflexos na dívida pública e cada partido vai puxar a brasa à sua sardinha para tentar justificar que a culpa é de 2015 e não de 2017, quando decidiu voltar ao controlo aparente – já que ficou com os direitos económicos mínimos na TAP, quando chegou o primeiro Governo de António Costa – até mais recentemente, em que cria condições objetivas para a expulsão dos acionistas privados. E agora aparece um ministro a vangloriar-se de ter tido lucro na TAP, esquecendo-se de dizer que ninguém introduziu tanto dinheiro e apoio público como ele e que foi graças a esse apoio público e também à recuperação do mercado internacional, tal como aconteceu em todas as companhias aéreas, que a TAP fechou 2022 com resultado positivo e ainda bem. Como também se vangloria com o resultado positivo da CP quando a empresa não funciona. Como é que uma empresa que não funciona pode dar lucro? Só dá lucro se as indemnizações compensatórias do Estado compensarem a ineficiência da CP. Há realmente aqui falta de bom senso político, de experiência e falta do mundo empresarial e quanto mais depressa este assunto estiver esclarecido melhor. Mas os relatórios não vão ser conclusivos, as comissões Parlamentares de Inquérito são úteis para esclarecer alguns factos, mas depois os relatórios finais são instrumentos da luta política.

Mas defende a privatização da TAP? 

O processo de privatização depende da vontade de quem vende, das vontades de quem compra e das alternativas que existem para a compra, definindo um quadro de referência desejável em termos de compromissos estratégicos futuros com o país. Às vezes, confunde-se serviço público e empresa pública, um serviço público pode ser prestado por uma empresa privada que é contratualizada para prestar um serviço público. Acontece, por exemplo, com as concessões de exploração no setor dos transportes ou com uma parceria público privada num hospital, etc. A TAP deve ser privatizada, mas depende de um processo negocial que deve ser bem estruturado. Se fosse Governo entregava isso a uma equipa profissional que, após ter feito um caderno de encargos e de ter um quadro de referência consensualizado procurava ver qual era a melhor alternativa em termos de país, tendo presente até os objetivos da velhinha Lei-Quadro das Privatizações, que tem alguns dos objetivos corretos, no sentido de contribuir para a melhoria da eficiência económica do país. No fundo, é uma questão de timing, de negociação e de vontade. Estou um bocado cético, porque a determinado momento, a fação anti-privatização do Partido Socialista pode pôr paus nas rodas e que este processo seja mais uma vez adiado. 

Como ex-ministro como vê estes casos e casinhos do Governo e a manutenção do ministro das Infraestruturas? Estava à espera desta instabilidade governamental? 

A instabilidade governamental já existe há um ano e meio, isto é, desde que António Costa apresentou o seu primeiro Governo, já com maioria absoluta. Quantas alterações governativas a nível de ministros e secretários de Estado já não aconteceram no último ano e meio? Estas peripécias no Ministério das Infraestruturas são apenas um reflexo de António Costa ter feito um fechamento do seu campo de recrutamento. Não soube escolher entre os melhores do país, fechou-se dentro da sua tribo e dentro da sua tribo no círculo mais íntimo e o que vejo é uma falta de ética republicana, uma falta de grande sentido de Estado, de sentido de responsabilidade e, em muitas áreas, falta de competência. Em muitas áreas, não em todas. Felizmente, há exceções e chegados a esta fase do campeonato não quero que o Presidente da República se transforme no líder da oposição, porque já passei por isso, quando Mário Soares se transformou em líder da oposição no segundo Governo de maioria absoluta de Cavaco Silva. Não é essa a sua função. Marcelo não vai fazer isso e o Parlamento não deve ser dissolvido, a menos que seja por iniciativa do próprio primeiro-ministro, o que não é previsível. António Costa está agarrado ao poder, gosta do poder e a sua visão estratégica é a manutenção do poder. Vê os interesses do país como os interesses do PS e os interesses do PS são os dele para se manter no poder, vai utilizar a margem de manobra orçamental aparente para contentar os funcionários públicos, pensionistas, passar mais um cheque e chequinhos para ganhar as próximas eleições. 

Acredita que vai ganhar? 

Pode ganhar as próximas eleições porque o eleitorado, infelizmente, também é conservador. 

Mesmo com sinais de desgaste… 
Já no tempo do Salazar, o regime estava gasto e as pessoas, numa primeira fase, nos anos 60 – vivi isso e já tinha consciência política – diziam que o homem era bom, mas os que o rodeavam é que eram maus. Os portugueses têm tendência em considerar o bode expiatório os outros. Ainda agora, no 10 de Junho, assobiaram o ministro das Infraestruturas, tinham slogans ‘vai-te embora’ e aplaudiram quem o mantém no poder. 

O que é incoerente…

Há uma incoerência. Só em momentos muito graves e estes têm a ver com a rutura de caixa do Tesouro é que os portugueses estão voltados para uma mudança política significativa. Foi assim quando surgiu Cavaco Silva. Estavam cansados da instabilidade do PREC, estavam cansados do FMI que veio pela segunda vez em 83/ 84. Foi assim quando tivemos de chamar a troika em 2011 e criaram-se condições para que a componente conservadora do eleitorado não apoiasse quem já estava no Governo. A componente conservadora do eleitorado, enquanto pensa que há margem orçamental apoia quem está no Governo, sem prejuízo de haver algum desgaste.

Agora até se fala no regresso de Pedro Passos Coelho…

O tempo não volta para trás e não acredito que seja uma realidade. Isso é uma hipótese aventada por quem quer denegrir o atual líder do PSD. Faz parte da propaganda de quem está no poder denegrir o adversário, criando artificialmente alternativas. E não é por acaso que o partido que está no poder tem um batalhão de membros a produzir notícias para as redes sociais. Nunca houve uma central de comunicação tão organizada do lado governamental como há atualmente. O Partido Socialista é um partido profissional, quer manter-se no poder e sabe as políticas de comunicação para o conseguir. O líder da oposição só passa a ser bom quando ganha o poder. Isto é o que mostra a história portuguesa. 

Acha que Montenegro já tem condições para tomar conta do país? 

Nunca me inscrevi no PSD, nunca fiz parte dos aparelhos, sempre fui independente e não conheço a máquina. Agora, como observador, vejo que tem apresentado as suas equipas e conta com alguns jovens de valor, como Joaquim Miranda Sarmento, Miguel Pinto Luz, António Leitão Amaro e outros. Até tem apresentado boas propostas, como a política de habitação, por exemplo. E qual foi a publicidade dada às propostas alternativas do PSD contra a política de habitação? Quase zero pela própria comunicação social. As técnicas de comunicação levam a criar espuma mediática e quem está no poder cria essa espuma mediática para que não sejam discutidas as grandes questões estruturais que ele não quer atacar. 

Mas deveria ser mais transparente em termos de futuras coligações, nomeadamente com o Chega?

As coligações não se anunciam, fazem-se ou não à posteriori. Qual é o peso relativo do Chega? O Chega ainda se pode esvaziar totalmente até às próximas eleições, em 2026. É um partido tanto quanto vejo de um só homem, como foi o PRD. O PRD surgiu com Hermínio Martinho criado por estímulo de Ramalho Eanes, as pessoas esquecem-se disso, mas isso esvaziou boa parte do Partido Socialista da época. Posso anunciar intenções à posteriori com gente séria, com sentido de Estado, agora estar a fazer propaganda de um partido que é conjuntural que pode desaparecer a prazo não faz sentido. Os partidos do arco do poder deveriam ter respostas para algumas das aspirações e questões que o Chega levanta e algumas são pertinentes, mas o Partido Socialista neste momento está mais interessado em empolar o Chega, como também está interessado em empolar as alternativas a Montenegro para criar a imagem nas pessoas de que não existe alternativa e que ele é a alternativa. 

Para acabar contribuiu para o livro do ISEG ‘111 Anos: Por Onde Andou e para Onde Vai a Economia Portuguesa?’ …

Como sabe sempre estive muito ligado à minha escola. 

Já tem um átrio com o seu nome… 
O átrio Eduardo Catroga já foi inaugurado e é onde vai ser desenvolvido o espaço memória de algumas etapas fundamentais no desenvolvimento desta escola, que nasceu em 1911. Na altura, pediram-me para presidir à comissão das comemorações dos 111 anos da escola, criámos um grupo de trabalho e fizemos uma vintena de eventos ao longo de um ano, entre março, abril de 2022 e maio 2023 e vai contar com o lançamento de três livros. No livro que referiu pediu-se a um conjunto de antigos alunos, antigos professores e atuais professores que quisessem colaborar com temas ligados ao título. Temos textos bastante interessantes que cobrem temas significativos da economia portuguesa nas esferas económicas, políticas e social. Eu, por exemplo, escrevi sobre a evolução histórica da convergência real, das várias fases da política económica e sobre os desafios futuros. 

E chegaram a alguma conclusão?

Temos o sonho histórico de nos aproximar do nível de vida dos países mais desenvolvidos, não é da média da União Europeia, até porque a média europeia tem caído com a integração de outros mais pobres. Este era o sonho português, desde as Conferências do Casino, na segunda metade do século XIX, e os países mais ricos que grosso modo correspondem hoje ao conjunto da União Europeia a 15. De acordo com os melhores estudos históricos, em 1910, devíamos estar à volta de 40% em relação ao nível de vida médio desses países. Quando veio a ditadura, em 1926, deveríamos estar com 30 e poucos por cento, quando veio o 25 de Abril estávamos com 59,4%, depois em 1985 estávamos com 55,6%. No tempo de Cavaco Silva, passámos de 55,6 para 68,2% e agora devemos estar à volta de 72%. Em cem anos progredimos 30 e pouco pontos percentuais, o que dá um ritmo médio anual de 0,3%. Como ainda nos falta mais 30 pontos para passarmos da casa dos 70 para a casa dos 100% significa que a este ritmo demoraríamos quase cem. O grande desafio é como podemos fazer isto em duas décadas e isso só é possível com mais crescimento económico, com políticas orientadas para a melhoria da produtividade, com mais investimento, com melhoria da qualidade do capital humano, com grandes transformações. O país quer isto ou não quer? Os desafios são conhecidos, as linhas de rumo estão apontadas. O que falta é ambição e uma visão estratégica coerente. E assumir que a produtividade é via para a convergência real e que o progresso do país exige empresas competitivas. As empresas são a célula base da atividade económica e a competitividade do país depende, em última análise, da competitividade das suas empresas. Esta reforma das mentalidades e esta necessidade de criar uma nova ambição, de ter este ímpeto reformista é o grande desafio português. O nosso Presidente da República diz que não podemos mudar o povo. Mas podemos liderar o povo no bom sentido. O que falta é liderança a vários níveis e a interiorização do desígnio nacional.