‘As séries dão-nos a possibilidade de ter empatia sobre o outro’

‘As séries dão-nos a possibilidade de ter empatia sobre o outro’


‘Emília’ e os ‘Capitães do Açúcar’ estrearam no princípio do mês de maio na RTP. Filipa Amaro, Beatriz Maia, Tiago Sarmento e Vicente Wallenstein são alguns dos rostos por trás das duas séries, que se propõem revolucionar o audiovisual em Portugal.


Fazem parte da geração millennials e tem sido sobre ela que têm debruçado os seus olhares e criado os seus projetos. Consideram que deve existir espaço para todos e que está na altura de arriscar nos estilos, nas linguagens e nas escolhas de elenco. Sem medo de espelhar a realidade, ‘Emília’ e os ‘Capitães do Açúcar’, estrearam no princípio do mês de maio na RTP. Filipa Amaro, Beatriz Maia, Tiago Sarmento e Vicente Wallenstein são alguns dos rostos por trás das duas séries, que se propõem revolucionar o audiovisual em Portugal.

«A última coisa que queremos é uma galeria de arte patrocinada por esta ou aquela empresa. A arte deve ser subversiva», escreveu Ken Loach em ‘Diálogos sobre Arte e Política’, na edição Orfeu Negro. Sabemos que a arte nos alimenta, que é através dela que sentimos, refletimos, conhecemos e que podemos transformar o espaço e as mentalidades. Sabemos também, por isso, que esta é indispensável para uma vida com mais cor, às vezes, quase como um refúgio à própria realidade que, muitas vezes, nos assombra. Quando assistimos a um filme, uma série, uma curta-metragem, a maior parte das vezes, para os seus criadores, o objetivo é que o mundo pare e que, durante o tempo de duração da obra, nos consigamos abstrair daquilo que nos atormenta. No entanto, por outro lado, atualmente, em Portugal, vemos nascer uma nova geração de artistas – argumentistas, realizadores e atores – que propõem o exercício inverso, fazendo nascer novas linguagens que, ao invés de nos quererem afastar dos dramas que vivemos no século XXI, dão-nos a conhecê-los, espelhando-os de uma maneira transparente, às vezes dura, mas não por isso menos fascinante. Mas de que espaço falamos? Será que ele realmente existe? Quem são estas caras que, de uma forma corajosa, criam histórias reais, com personagens reais? Que não têm receio de falar de si de forma a que muitos outros se sintam representados?

As novas séries da RTP, ‘Emília’ e ‘Capitães do Açúcar’, que estrearam no dia 1 de maio, são duas histórias bem distintas, mas com essa coragem em comum. Em ‘Emília’, Filipa Amaro, argumentista e realizadora, conta-nos a história da protagonista, que dá nome à série e a quem a atriz Beatriz Maia dá vida. «Emília sonha ser a melhor bailarina do mundo, mas nunca fez efetivamente nada para o concretizar. Hoje faz 25 anos, começa a trabalhar na bomba de gasolina local, o que a leva a questionar-se sobre a sua vida só ser uma versão inferior ao que sempre sonhou. Nesse dia entra na bomba de gasolina Rosa, uma rapariga com quem Emília compara a sua vida nas redes sociais, o que lhe permite descobrir que há uma audição na companhia de dança contemporânea onde trabalha Rosa. A partir daí debate-se entre ir à audição, onde possivelmente pode ser rejeitada, e a possibilidade de, finalmente, mudar a sua vida e encontrar na dança o significado que tanto procura», lê-se na sinopse do projeto.

Em ‘Capitães do Açúcar’, série realizada por Ricardo Leite, que desenvolveu o argumento com Tiago Sarmento e Tiago Correia, ficamos a conhecer uma aventura focada num grupo de amigos, estudantes de belas artes, que cozinham uma nova e misteriosa substância psicotrópica, em busca da liberdade. «Bernardo, um jovem estudante de ciências farmacêuticas, vive sozinho com a sua irmã mais nova e sem apoio familiar. Dividindo os seus dias entre os estudos e um part time numa hamburgueria, vê uma oportunidade de mudar a sua situação financeira precária ao receber um convite inesperado de Neves, Antunes e Cruz – um grupo de jovens artistas que, paralelamente, se envolvem num esquema de produção e distribuição de uma substância psicotrópica chamada Açúcar. Os Capitães do Açúcar, como se autodenominam, perderam o seu elemento principal – o ‘cozinheiro’ do grupo – e colocam em Bernardo as suas esperanças. «Pressionados e ameaçados por Raposo, um criminoso sem escrúpulos, e nas malhas de uma perseguição policial, um conjunto de acidentes e insucessos na produção da droga vai colocar as suas vidas em risco e potenciar a revelação dos segredos por detrás da descoberta desta misteriosa substância», conta-nos o argumento. 

Millennials, a geração desiludida

«Sou uma pessoa muito curiosa e interessa-me mesmo as pessoas e as contradições que elas carregam», começa por explicar Filipa Amaro. «A ideia do que queremos ser e a ideia daquilo que somos», acrescenta. A argumentista gosta principalmente de escrever sobre a sua geração – os millennials -, em que «nos disseram que podíamos ser tudo, mas que não conseguimos ser nem metade e isso veio prejudicar a nossa self image». «Toda uma geração vive desiludida com o que não atingiu», reforçou. Por outro lado, para si, essa ideia também é «super universal». «Porque, às vezes, quanto mais particular és na escrita, mais universal te tornas. É muito estranho. Eu escrevo coisas muito específicas, mas acredito que mais vale ser tudo para um grupo pequeno de pessoas, do que seres nada para imensa gente. Eu confio que essas ideias, por mais pequeninas que sejam, são suficientes. Não precisas de um grande alarido para contar uma história às pessoas. Acho também que são muito interessantes estas ideias de identidade, de relação», afirmou. 

Por isso, considera a sua escrita «um bocado diferente do que até agora se fez por cá». «Cheguei a essa conclusão depois de perceber que as críticas ao meu trabalho são sempre parecidas: ‘Não está nada a acontecer!’, ‘Dizem que é uma comédia, mas é super triste!’. As pessoas estão habituadas a ler guiões de certa forma. É urgente contar estas histórias», garantiu a também realizadora que admite que no cinema, é sempre «rejeitada». «Os meus guiões são super incompreendidos, mesmo nas séries. Como raramente são baseados em contos ou em eventos históricos, é muito complicado passar naquele ponto da ‘relevância cultural’. É um bocado subjetivo, mas depois vai-se vendo quem ganha e é um bocado concreto», lamenta Filipa Amaro. 

‘Urgente apostar na nova geração’

Da mesma forma, interrogado se no país existem falta de argumentistas ou uma certa resistência em compreender estas novas linguagem, Tiago Sarmento acredita que primeiro «existe uma resistência em poder dar a oportunidade»: «Acho mesmo que há uma falta de confiança em apostar em novos criadores. E é fascinante podermos ter um retrato desta nova geração», revela uma das cabeças por trás dos ‘Capitães do Açúcar’. Segundo o também ator, há muita gente a escrever e a maior parte das pessoas «vão encontrar-se no universo das curtas metragens e web séries». «Muita gente passa para o universo do teatro, talvez por ser mais fácil escrever um guião e criar um espetáculo, por questões orçamentais, do que escrever um filme, ou mesmo criar uma série», admite, comparando a situação nacional com o mercado internacional. «Nós vamos demorar muitos anos até conseguirmos finalmente assumir uma posição em que podemos fazer uma longa metragem. Isto de fazer um filme com 25 ou 30 anos é completamente utópico», explica. «Se olharmos, por exemplo, lá para fora, temos realizadores com 18 ou 19 anos, a apresentarem os seus trabalhos no Festival de Cannes. Para nós, é completamente impossível nesta fase», garante.  

«Acho que é urgente que olhem para nós! E as pessoas já têm um poder de escolha. Podem escolher aquilo que querem ver em inúmeras plataformas. Esta possibilidade de escolhermos aquilo que queremos ver também faz crescer aqui  uma responsabilidade nos criadores nacionais de também poderem escrever estas séries ou projetos com que as pessoas se identifiquem, de podermos realmente retratar aquilo que está a acontecer agora», continuou. Para quê? «Para haver um poder de identificação e para as coisas serem questionadas… Para darmos todos um salto  coletivo, porque de repente está a acontecer a questão da crise imobiliária… É um assunto que toca a toda a gente… Tal como os recibos verdes e a dificuldade que é, hoje em dia, principalmente para a nossa geração, termos uma vida digna, ou seja, temos o ordenado e termos sanidade mental para conseguirmos viver», acrescentou. Para si, é fascinante podermos representar isso em ficção, «com um poder de identificação com o público e com a possibilidade de sonharmos como é que conseguimos romper este sistema político e social», lamenta. «O cinema, este tipo de séries, dão-nos a possibilidade de ter empatia sobre o outro», acrescenta.

«Acho que deve ser assustador investir numa coisa que nunca se fez e deve sempre parecer muito arriscado», admite Filipa Amaro. No entanto, a realizadora acredita que «devia existir espaço para tudo». «O espaço existe, devia-se é fazer com que ele fosse dividido. Até porque existe público para os dois. Precisamos de histórias mais originais. Sinto que estas duas séries, provaram isso. Há uma certa universalidade nas coisas particulares, no íntimo. Ou seja, não somos todos unidos por eventos históricos, somos também pelas nossas histórias, ansiedades, tristezas», explica. «Coisas que no guião, compreendo que possam parecer uma coisa sem muita relevância, mas que, na verdade, às vezes, acaba por ter mais impacto nas pessoas», acrescenta. 

Castings, seguidores e filtros

Por sua vez, Beatriz Maia, que dá vida a Emília, acredita que é possível que haja um equívoco em relação ao que achamos que as pessoas gostam de ver. «Não sei se será realmente o público português que oferece resistência ou se são as próprias estações televisivas que na altura de financiarem algo que sai um pouco daquilo que é habitual, ficam com receio que ninguém veja e que portanto seja um investimento em vão», interroga a jovem atriz que pensa que «se apostarmos em projetos novos e se os divulgarmos a sério, as pessoas vão pelo menos dar uma oportunidade». «O mesmo se aplica ao leque de atores e atrizes escolhidas. Não quero acreditar que as pessoas só veem este ou aquele projeto porque tem aquela pessoa. Uma telenovela vai ser sempre vista, seja com que pessoa for», frisa.

Porém, infelizmente, considera que a formação «nunca foi um fator de escolha, pelo menos para projetos do audiovisual». Não é, portanto, uma coisa do agora. «No entanto, parece-me que estamos provavelmente a ir por caminhos um pouco mais complicados porque já não se trata de ter uma cara bonita, mas também a atenção que damos aos nossos perfis numa plataforma social. Contra isso é-me muito complicado lutar. Compreendo que cada projeto seja um investimento e que de alguma forma deva ter lucro, mas apostar em atores e atrizes pensando neles como um produto que ‘vai lucrar’ não acho muito correto. Nem para o ator ou atriz contratado, porque há demasiada pressão para manter esse ‘estatuto’, nem para os outros que se formaram, que têm capacidades para trabalhar mas nem chegam a ser uma opção porque o número de seguidores não é sequer comparável com outros», explica ainda a atriz.

Tanto para o ‘Frágil’ – primeiro projeto de Filipa Amaro, disponível na RTP Play -, como para a ‘Emília’, a realizadora fez o casting aberto, «o que é uma coisa muito rara cá»: «Eu acredito mesmo que a razão pela qual alguém vê uma série, é porque foi recomendada por outra pessoa. Não é por ter x ou y no cartaz. É irrelevante os atores serem conhecidos ou não, terem determinado número de seguidores», revela. «Eu fiz um casting com 1700 atrizes, diria que 800 eram atrizes, o resto pessoas que gostavam de ‘entrar numa novela’, tal como disseram. Muitas delas disseram-me o número de seguidores. Para quê? Fiquei chocada. Isso é absurdo. É uma coisa muito estranha de se dizer num casting. Eu quero uma proposta boa. Bons atores», lamentou. 

Segundo Filipa Amaro, uma coisa «ainda mais triste», foi que, durante o casting, na introdução, muitas raparigas não conseguiam olhar para a sua cara e «enviaram o self tape com filtros do Instagram». «É mesmo muito chocante e é uma coisa que tem de ser falada», reforçou.  

Apesar de concordar com Beatriz Maia, Vicente Wallenstein, ator que dá vida a Antunes, em ‘Capitães do Açúcar’, acredita que continua a haver muita gente que «não liga a esse assunto dos números das redes sociais». «Eu sei que, muitas vezes, por trás, estão produtores que foram pressionar quem dirige os projetos para escolher os nomes. Isso vai acontecendo, sempre aconteceu. Não é só em Portugal. Mas acontece mais num tipo de projetos do que noutros. E, portanto, de certa forma, acho que é um bocado inevitável. Nós sabemos que a coisa funciona dessa forma, principalmente se estivermos à procura de pessoas para televisão, mas em cinema e teatro nem tanto», admite. «Às vezes há tantas hipóteses que os produtores nem sequer estão a ver, porque não conhecem nem se dão ao trabalho de conhecer. Não vão procurar, não vão às escolas ver quem são os nossos jovens atores. Temos muita gente muito talentosa que seria capaz de desempenhar um papel de uma forma incrível», garante. «Mas esta lógica comercial de escolha de elencos é muito frustrante», acrescenta. 

Apesar disso, segundo o ator, felizmente, tem havido um aumento constante do número de produções que estão a ser feitas, do número de projetos com financiamentos consistentes, «alguns maiores do que outros». «Estes dois projetos que saíram agora, são projetos que se calhar há uns anos poderiam ter tido hipótese na RTP Play, mas que hoje foram para a RTP, em horário nobre. Acho que isso é muito positivo, porque há de facto um aumento de projetos que beneficiam todo o setor, tendo em conta o número de trabalhadores que se vêm envolvidos», acrescenta Vicente Wallenstein. 

A identidade audiovisual

Para Filipa Amaro, existe ainda, em Portugal, ao contrário de Itália ou França, uma falta de identidade audiovisual: «Tu nunca estiveste no Texas, mas consegues imaginar como é que é uma bomba de gasolina lá. Já viste tantas séries e tantos filmes… Não sei como é que as outras pessoas veem Portugal. Não sei como é que nós próprios vemos Portugal… Espero que não venha um americano criar isso por nós. É o nosso trabalho enquanto argumentistas fazê-lo. Têm de nos dar oportunidades para isso», sugere. 

Além disso, existe também, para Tiago Sarmento, uma urgência em descentralizar as produções nacionais. «A série ‘Capitães do Açúcar’, foi filmada no Porto. Em primeiro lugar, é importante dizer que é muito fácil vivendo na invicta, imaginar uma série ou filme todo filmado na cidade. Porque em todos os cantos, em todas as paisagens, para quem a conhece muito bem, é possível escrever cenas intermináveis», acredita. «Quando nós queremos escrever uma história, em geral, queremos que seja pessoal, íntima, porque se não, vai ser volátil, muito aérea… É também necessário e urgente em Portugal filmarmos sem ser em Lisboa. Descentralizarmos e filmarmos em todas as cidades. Portugal é tantas coisas», frisa o argumentista. 

Futuro incerto e precariedade

Interrogada sobre a maneira como os artistas conseguem manter uma vida digna, mesmo com todas as dificuldades que enfrentam no setor, Beatriz Maia, faz questão de afirmar que não se sente num lugar justo para falar dessa questão, porque desde que terminou a escola que tem vindo a conseguir viver inteiramente da profissão. «E mais do que viver do cinema, da televisão, tenho conseguido viver do teatro que é uma raridade ainda maior», revela. «Contudo, sei que por cada ordenado que recebo, metade é posto de parte porque em momentos que não esteja a trabalhar há contas para serem pagas e uma cadela para alimentar. Na nossa profissão é raro vivermos o presente sem estarmos já a ansiar o futuro. Há fases em que temos muito trabalho, outras em que não temos nenhum e ou vivemos em constante poupança para esses meses de ausência de trabalho poderem ser cobertos sem que voltemos para trás de um balcão ou estamos sempre com um pé fora e outro dentro daquilo que queremos fazer», explica a atriz.

«É uma descoberta diária, semanal, mensal, anual. É uma luta constante para perceber que há que fazer cedências daquilo que são as nossas ideias preconcebidas, de como é que eu estou neste sector. É preciso perceber que se calhar não posso fazer só teatro, só televisão ou só cinema. Ou não posso viver só da arte e tenho de ter outro trabalho em paralelo. Eu, por exemplo, também tenho que dar aulas de teatro de manhã. Acabamos por perceber que temos que começar de algum lado, de alguma forma. A precariedade existe na nossa profissão… Há muitos que tentam e não conseguem. É uma luta muito grande», remata Vicente Wallenstein.