Santo António. Um casamento feliz entre o sagrado e o profano

Santo António. Um casamento feliz entre o sagrado e o profano


As origens destas festas remontam aos rituais pagãos que se assinalavam no solstício de verão. Depois das asperezas do inverno, era tempo de dar azo à alegria com danças, fogueiras e vinho.


Assadores a carvão ao ar livre que espalham pelas ruas dos bairros históricos o perfume agradavelmente gorduroso de febras e sardinhas. Manjericos, bailaricos e namoricos. Tudo regado por quantidades prodigiosas de vinho, cerveja e outras bebidas alcoólicas. A noite de Santo António, celebrada de 12 para 13 de junho em Lisboa, é a noite de todos os prazeres, de todos os excessos e de todos os encontros. E ainda de proverbiais apertos: descobrir uma casa de banho disponível ou um meio de transporte para casa pode revelar-se um quebra-cabeças intransponível. Afinal, o que tem tudo isto que ver com santidade? Não haverá algo de paradoxo no facto de esta celebração profana ser apadrinhada por um santo, ainda por cima franciscano?

 

Festa pagã

Na realidade, a influência cristã é apenas uma das muitas que confluem nesta data. Celebrações populares deste tipo já se registavam antes de o santo alfacinha ter sequer nascido em agosto de 1195, poucas décadas depois de os homens de D. Afonso Henriques conquistarem Lisboa aos mouros (1147).

As origens destas festas remontam, julga-se, aos rituais pagãos que coincidiam com o solstício estival – 21 de junho, o primeiro do verão, é o dia mais longo do ano.

Depois das asperezas do inverno, dava-se azo à alegria, com danças, fogueiras e vinho. Ao mesmo tempo, pedia-se o favor da natureza para as colheitas vindouras.

Tratava-se, pois, de festas associadas à fertilidade e aos ritmos da terra. Com o cristianismo, não perderam esse cunho, e ainda hoje Santo António é conhecido como o santo casamenteiro.

 

Pobreza com alegria

Claro que nem todos viram sempre com bons olhos esta miscigenação, muito comum no mundo cristão, entre o sagrado e o profano. S. João Crisóstomo, arcebispo de Constantinopla no século IV, defendia: “Deus não nos deu os pés para dançarmos mas para caminhar moderadamente”. Também Francesco Petrarca, o famoso poeta do humanismo italiano, condenou a dança, chamando-lhe “um espetáculo infame e inútil”. E Jean-Baptiste Thiers, um teólogo e moralista francês do século XVII, apontava aos católicos “uma maneira mole e efeminada […] que acende os fogos do amor impuro e é acompanhada de apalpadelas e beijos desonestos”.

Desde o pecado original de Adão e Eva no Jardim do Éden que os homens da Igreja encaram com desconfiança o corpo e o prazer. Mas os franciscanos não tanto. O lema de S. Francisco de Assis, o fundador da ordem, era paupertas cum laetitia, pobreza com alegria. E alguns frades levavam isso à letra. “Em Oxford”, conta Jacques Le Goff na biografia do santo, “os jovens irmãos ganham de tal modo o hábito de ser entre eles iocundi et laeti [brincalhões e alegres] que ao olharem-se mutuamente logo desatam a rir”.

A boa disposição tornou-se também uma marca desta época: “No dia de Santo António

Todos riem sem razão.

Em São João e São Pedro

Como é que todos rirão?”, escreveu Fernando Pessoa.

 

De Lisboa a Pádua

Nascido em Lisboa no local onde hoje se encontra a igreja de Santo António, Fernando de Bulhões seguiu os estudos eclesiásticos, primeiro na igreja de Santa Maria Maior (hoje Sé), depois no Mosteiro de São Vicente de Fora. Já ansioso por evitar as distrações do mundo, pediu transferência para o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Foi aí, sob a forte influência dos frades cristãos martirizados em Marrocos, que decidiu um dia juntar-se a outros franciscanos nos Olivais, mudando o nome para António – uma homenagem a Santo Antão, o eremita do deserto – e renunciando à riqueza da família.

Tentou evangelizar os mouros do Norte de África, mas sem sucesso. Gravemente doente, teve de regressar à Europa mas o barco onde seguia foi empurrado por uma tempestade para a costa da Sicília.

Já restabelecido, viajou para Norte, para participar no capítulo da ordem de 1221. Em Assis, conheceu Francisco – um e outro haveriam de tornar-se conhecidos pelos seus milagres. Após a morte do fundador, foi designado para apresentar ao Papa Gregório IX a Regra da Ordem. E nesse mesmo ano de 1227 fundou um convento em Pádua, cidade onde viria a morrer.

É precisamente na data da sua morte, 13 de junho, que se celebra o feriado municipal de Lisboa. Que ganhou um novo fôlego em 1932, quando o regime de Salazar instituiu o primeiro concurso de marchas, numa manobra para alegrar o povo e recuperar as tradições do folclore regional. Participaram três bairros: Alto do Pina, Bairro Alto e Campo de Ourique.

Em 1958 realizavam-se pela primeira vez os casamentos de Santo António, na tal igreja fundada no local de nascimento do santo. Em 1974, com a mudança de regime, não houve marchas nem casamentos de Santo António. A proibição foi, ainda assim, de pouca dura. O povo é quem mais ordena e o povo não dispensa uma boa farra. Em especial se juntar este cocktail profano de bailes ao ar livre, bebidas a rodos, noites quentes e sardinha assada a pingar no pão.