Independentemente da opinião que possamos ter sobre o processo de construção da União Europeia (UE) e das medidas que, para esse fim, são tomadas no âmbito da Justiça pelos órgãos que a dirigem, parece fundamental, em todo o caso, saber, antecipadamente, as consequências que algumas delas comportam.
Nesta matéria o problema não se situa, todavia, na aprovação ou rejeição de algumas de tais medidas, depois de uma ampla análise e discussão política, por parte dos órgãos de governação dos países que integram a UE e dos responsáveis Europeus.
O problema é realmente outro: ele resulta, de facto, da perturbação da organização política e institucional que, a nível nacional, a aprovação de certas medidas organizativas e regulamentares das agências europeias e seus instrumentos de cooperação implica, sem que, quem as aprovou nos Estados Membros, tivesse tido, ou pudesse mesmo ter, consciência da relevância que elas comportam.
Na área da Justiça, por exemplo, por via de uma constante estruturação regulamentar, de natureza mais ou menos administrativa, do funcionamento e do exercício das competências dos órgãos e instrumentos legais da cooperação judiciária sucedem-se, na verdade, autênticas reformas de que, de imediato, ninguém, a nível dos Estados Membros, parece dar-se conta.
E, todavia, tais alterações «menores» – menores na sua aparência legal e nos aspetos substantivos que visam regular – parecem inserir-se, de facto, numa lógica mais estruturante e ambiciosa de reformas, mesmo que nunca claramente assumida e explicitada politicamente aos responsáveis dos Estados Membros.
Em muitos casos, a sua origem situa-se, não tanto no plano imediatamente político ou judicial dos competentes órgãos da UE, mas, mais banalmente, no quadro da intervenção e influência efetiva de funcionários médios e superiores da UE e no real poder que eles detêm na conformação do desenho e funcionamento das instituições europeias.
Tais acertos dão, contudo, corpo a uma política, nunca efetivamente adotada – nem a nível europeu nem a nível nacional – de progressiva «federalização» das funções de Justiça dos Estados Membros.
No mesmo sentido, poderemos, ainda, invocar aqui certas adaptações e «leituras autênticas» dos Regulamentos e Diretivas elaboradas por funcionários da UE, que, transcendendo a vontade política do legislador europeu, se sedimentam, apesar disso, no funcionamento diário das instituições e agências europeias.
A título de exemplo, podemos referir propostas de introdução de poderes de iniciativa e direção estratégica processual a atribuir a algumas estruturas organizativas – até agora com funções meramente gestionárias e burocráticas – em «casos operacionais» (processos de investigação judicial), permitindo-lhes, inclusive, à revelia do seu estatuto legal, o acesso a dados pessoais, como se de autoridades judiciais e judiciárias e dos seus diretos colaboradores se tratassem.
Tais «casos operacionais» foram, até agora, e sem interferências, conduzidos autonomamente, apenas, por magistrados nacionais nos seus países, de acordo com os Regulamentos europeus e leis nacionais e no cumprimento das prioridades determinadas pelos respetivos órgãos de soberania.
Só estes, com o apoio de outros magistrados que, como integrantes dos gabinetes nacionais, intervêm nas agências europeias em representação das autoridades competentes dos seus países para facilitar a cooperação judicial e judiciária, tinham poderes de orientação concreta das investigações e, em cada caso, decidiam da necessidade, ou não, de apoio pericial extraordinário.
Outras intrusões – tomadas já num plano político – podem, ainda, resultar, por exemplo, de sugestões de criação de normas extraordinárias, inseridas em propostas de novos Regulamentos europeus, que, em princípio, visam apenas aprofundar e tornar mais eficaz a digitalização da justiça a nível europeu e os seus mecanismos técnico-jurídicos da cooperação judicial.
Algumas de tais sugestões têm, porém, a virtualidade de alterar, tácita, ou mesmo explicitamente, normas processuais nacionais basilares – por exemplo, sobre a validade da prova – sem que, numa primeira leitura, os órgãos de soberania dos Estados Membros se tenham dado conta de tal pretensão e do seu real alcance.
Num plano já superior e distinto, recordo aqui, também, a importância de alguns acórdãos do TJUE, a propósito do Mandato de Detenção Europeu e as consequências que, dada a sua natural índole atomística, causaram em muitos países, no que se refere, por exemplo, ao estatuto dos respetivos Ministérios Públicos e a disposições estruturais dos diferentes Códigos de Processo Penal nacionais.
Por fim, numa outra perspetiva ainda – esta mais politicamente óbvia – há que tomar em consideração, no que à Justiça respeita, o uso cada vez mais frequente do Regulamento, instrumento legislativo europeu que se impõe diretamente no ordenamento jurídico nacional, mesmo em matérias para que o Tratado de Lisboa nem sempre sugere a sua utilização.
Que se aprovem novos instrumentos e metodologias de trabalho a nível europeu parece-me necessário, e em muitos casos, até muito desejável.
Deles e da sua coerência – e consonância – com os sistemas nacionais pode resultar, com efeito, uma muito maior eficácia para a Justiça de todos e de cada um dos Estados Membros.
Para que isso aconteça – e não o seu contrário – importa, porém, que as autoridades políticas e judiciárias de cada Estado estejam conscientes do que, nos mais pequenos detalhes, se aprova, de facto, a nível europeu e do que de tal aprovação pode resultar para aspetos significativos do seu sistema constitucional e legal.
Não está aqui em causa, portanto, uma crítica concreta à orientação de medidas tomadas no contexto do regular processo legislativo europeu.
Também as tenho e tenho-as expressado nos locais próprios.
Do que se trata, sim, é, em primeira mão, de uma preocupação com o facto de, por detrás de certas expeditas alterações ou inovações legislativas e regulamentares das leis e instituições europeias, se inscreverem, afinal, normas e modelos de funcionamento dos órgãos e agências de Justiça da UE que comportam impactos importantes, mas raramente óbvios, na autonomia e coerência dos sistemas constitucionais e legais nacionais.