Centenas de andorinhas…


Um bloqueio total caiu sobre a democracia portuguesa, que nos impede com uma fatalidade quase islâmica de fazer o que deve ser feito.


Sinceramente já nem sei há quanto tempo andamos nisto. Ao longo de cerca de 10 anos foram vários artigos por semana, neste e noutros jornais, semana após semana, centenas e centenas de artigos, sobre um tema: a qualidade da nossa democracia e a forma de a melhorar.

Não é que haja uma única ideia, claro, nem as que temos são garantidamente as melhores, mas em suma, defendemos, para começar, a instituição de círculos uninominais para as eleições legislativas, com um círculo nacional de compensação. Este círculo nacional e vários outros aprimoramentos permitem manter o princípio da proporcionalidade ínsito na nossa Constituição.

A possibilidade já existe na Constituição, é só pô-la em prática. Nada de mais. Chama-se reforma do sistema eleitoral, já foi muito amplamente discutida e pode sê-lo muito mais. Até já foi objeto de uma frustrada discussão na Assembleia da República, sem quaisquer resultados, mas… água mole em pedra dura tanto bate até que fura.

Numa recente sondagem, a propósito do 10 de Junho e do profundo desencanto dos portugueses com o país, 76% dos inquiridos mostraram-se favoráveis a esta possibilidade, dos quais 32% muito fortemente favoráveis.

O sistema de círculos uninominais é um sistema que existe em vários países europeus, uns mais atreitos às maiorias, outros à salvaguarda da proporcionalidade. Porque não cá? O sistema tem muitas vantagens, a primeira das quais é aproximar os eleitores dos eleitos, ao dar aos cidadãos maior peso na escolha de quem escolhem.

Tem-se argumentado que este sistema favorece os grandes partidos e desfavorece os mais pequenos. Nem é verdade, mas se fosse, porque é que os grandes partidos não o querem?

A razão é muito simples: os círculos uninominais favorecem o escrutínio dos eleitores sobre quem são os candidatos, ao tornar aparente aos olhos de todos quem é que os diretórios partidários lhes propõem e dão muito mais força às organizações locais na escolha dos seus candidatos. Isso, os diretórios dos grandes partidos e, diga-se em abono da verdade, também dos pequenos, não querem.

As chefias partidárias querem preservar o seu poder interno, antes de mais o de nomear quem querem para as listas de candidatos. Não querem ser privadas desse poder, tantas e tantas vezes em prejuízo de excelentes candidatos desalinhados com as chefias.

Bem sabemos ao que isso conduziu: em Portugal, para se chegar ao poder nacional, é necessário tomar o poder num dos dois grandes partidos do sistema e manejar esse poder patrocinando os candidatos da chefia. Mais importante do que ganhar as eleições nacionais começa por ser ganhá-las dentro de cada partido, assegurando a vitória interna com promessas de nomeações para as listas eleitorais seguintes. É assim.

O foco não está em mudar o país; pelo contrário, a forte impressão que dá é que os dois grandes partidos pretendem mudá-lo o menos possível, para não abanar excessivamente o barco… O foco está em assegurar o poder partidário de forma a que chegadas as eleições todos os que podem estar em posição de decidir decidam apoiar o chefe que os escolheu.

Os resultados desta forma de fazer política estão à nossa frente: de cada vez que o bando partidário que perde as eleições é substituído pelo bando do partido que as ganha, o que sucede ciclicamente, a sua primeira preocupação é a de proceder às nomeações, tão prometidas, dos fiéis e à satisfação dos interesses particulares das suas clientelas partidárias. O resto, logo se vê…

A partir daí são quatro anos a governar para ganhar as eleições seguintes, sem qualquer preocupação com o país para além desse efémero horizonte. Um bloqueio total caiu sobre a democracia portuguesa, que nos impede com uma fatalidade quase islâmica de fazer o que deve ser feito.

Não vale a pena procurar muito para dar exemplos: o que se passa com o supostamente irreformável sistema nacional de saúde, um desastre, com a educação, uma hecatombe de toda uma geração mal ensinada e sem alternativas, com o sistema de justiça, que parece arrastar atrás um gigantesco pedregulho que lhe atrapalha cada passo que tenta dar, seria suficiente para ilustrar o meu ponto.

Mas há muito mais: como é que é possível que quase cinquenta anos depois do fim das guerras de África que depauperavam os cofres públicos e com a cornucópia de fundos europeus que se despejou em Portugal desde há 40 anos, o nosso sistema de transportes coletivos continue tão arcaico como era há 50 anos e nalguns casos, há um século, ou pior?

Como é que é possível que na terceira década do século XXI continuemos a falar na “bitola ibérica” a propósito de ferrovia, quando nos queremos ligar à Europa em alta velocidade? Isto não parece televisão a preto e branco no tempo da internet a 5G, não, parece que estamos a defender o telégrafo…

Os problemas mantêm-se, sem nunca ser resolvidos, coisa de que é exemplo anedótico o célebre novo aeroporto de Lisboa. As mesmas velhas e revelhas questões e guerras e tabus mantêm-se tão atuais como sempre. Quem tenha dúvidas que leia o Camilo Castelo Branco, romancista de há quase dois séculos, e depois de ler, digam o que mudou.

Há muito para mudar em Portugal e é urgente mudá-lo se queremos ter uma chance neste século XXI. Há muitos que pensam que para mudar, a primeira coisa a mudar é a forma de decidir quem manda e pelos vistos, 76% dos portugueses também assim pensa.

Uma andorinha não faz a primavera, mas centenas de andorinhas?… Se a nossa classe política quer ter uma chance de sobreviver à década que vivemos no meio dos imensos desafios que o mundo nos coloca, era bom que se despachasse a pensar como a maioria. Como diz o outro, o povo tem sempre razão.

 

Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça, subscritor do Manifesto por uma Democracia de Qualidade

Centenas de andorinhas…


Um bloqueio total caiu sobre a democracia portuguesa, que nos impede com uma fatalidade quase islâmica de fazer o que deve ser feito.


Sinceramente já nem sei há quanto tempo andamos nisto. Ao longo de cerca de 10 anos foram vários artigos por semana, neste e noutros jornais, semana após semana, centenas e centenas de artigos, sobre um tema: a qualidade da nossa democracia e a forma de a melhorar.

Não é que haja uma única ideia, claro, nem as que temos são garantidamente as melhores, mas em suma, defendemos, para começar, a instituição de círculos uninominais para as eleições legislativas, com um círculo nacional de compensação. Este círculo nacional e vários outros aprimoramentos permitem manter o princípio da proporcionalidade ínsito na nossa Constituição.

A possibilidade já existe na Constituição, é só pô-la em prática. Nada de mais. Chama-se reforma do sistema eleitoral, já foi muito amplamente discutida e pode sê-lo muito mais. Até já foi objeto de uma frustrada discussão na Assembleia da República, sem quaisquer resultados, mas… água mole em pedra dura tanto bate até que fura.

Numa recente sondagem, a propósito do 10 de Junho e do profundo desencanto dos portugueses com o país, 76% dos inquiridos mostraram-se favoráveis a esta possibilidade, dos quais 32% muito fortemente favoráveis.

O sistema de círculos uninominais é um sistema que existe em vários países europeus, uns mais atreitos às maiorias, outros à salvaguarda da proporcionalidade. Porque não cá? O sistema tem muitas vantagens, a primeira das quais é aproximar os eleitores dos eleitos, ao dar aos cidadãos maior peso na escolha de quem escolhem.

Tem-se argumentado que este sistema favorece os grandes partidos e desfavorece os mais pequenos. Nem é verdade, mas se fosse, porque é que os grandes partidos não o querem?

A razão é muito simples: os círculos uninominais favorecem o escrutínio dos eleitores sobre quem são os candidatos, ao tornar aparente aos olhos de todos quem é que os diretórios partidários lhes propõem e dão muito mais força às organizações locais na escolha dos seus candidatos. Isso, os diretórios dos grandes partidos e, diga-se em abono da verdade, também dos pequenos, não querem.

As chefias partidárias querem preservar o seu poder interno, antes de mais o de nomear quem querem para as listas de candidatos. Não querem ser privadas desse poder, tantas e tantas vezes em prejuízo de excelentes candidatos desalinhados com as chefias.

Bem sabemos ao que isso conduziu: em Portugal, para se chegar ao poder nacional, é necessário tomar o poder num dos dois grandes partidos do sistema e manejar esse poder patrocinando os candidatos da chefia. Mais importante do que ganhar as eleições nacionais começa por ser ganhá-las dentro de cada partido, assegurando a vitória interna com promessas de nomeações para as listas eleitorais seguintes. É assim.

O foco não está em mudar o país; pelo contrário, a forte impressão que dá é que os dois grandes partidos pretendem mudá-lo o menos possível, para não abanar excessivamente o barco… O foco está em assegurar o poder partidário de forma a que chegadas as eleições todos os que podem estar em posição de decidir decidam apoiar o chefe que os escolheu.

Os resultados desta forma de fazer política estão à nossa frente: de cada vez que o bando partidário que perde as eleições é substituído pelo bando do partido que as ganha, o que sucede ciclicamente, a sua primeira preocupação é a de proceder às nomeações, tão prometidas, dos fiéis e à satisfação dos interesses particulares das suas clientelas partidárias. O resto, logo se vê…

A partir daí são quatro anos a governar para ganhar as eleições seguintes, sem qualquer preocupação com o país para além desse efémero horizonte. Um bloqueio total caiu sobre a democracia portuguesa, que nos impede com uma fatalidade quase islâmica de fazer o que deve ser feito.

Não vale a pena procurar muito para dar exemplos: o que se passa com o supostamente irreformável sistema nacional de saúde, um desastre, com a educação, uma hecatombe de toda uma geração mal ensinada e sem alternativas, com o sistema de justiça, que parece arrastar atrás um gigantesco pedregulho que lhe atrapalha cada passo que tenta dar, seria suficiente para ilustrar o meu ponto.

Mas há muito mais: como é que é possível que quase cinquenta anos depois do fim das guerras de África que depauperavam os cofres públicos e com a cornucópia de fundos europeus que se despejou em Portugal desde há 40 anos, o nosso sistema de transportes coletivos continue tão arcaico como era há 50 anos e nalguns casos, há um século, ou pior?

Como é que é possível que na terceira década do século XXI continuemos a falar na “bitola ibérica” a propósito de ferrovia, quando nos queremos ligar à Europa em alta velocidade? Isto não parece televisão a preto e branco no tempo da internet a 5G, não, parece que estamos a defender o telégrafo…

Os problemas mantêm-se, sem nunca ser resolvidos, coisa de que é exemplo anedótico o célebre novo aeroporto de Lisboa. As mesmas velhas e revelhas questões e guerras e tabus mantêm-se tão atuais como sempre. Quem tenha dúvidas que leia o Camilo Castelo Branco, romancista de há quase dois séculos, e depois de ler, digam o que mudou.

Há muito para mudar em Portugal e é urgente mudá-lo se queremos ter uma chance neste século XXI. Há muitos que pensam que para mudar, a primeira coisa a mudar é a forma de decidir quem manda e pelos vistos, 76% dos portugueses também assim pensa.

Uma andorinha não faz a primavera, mas centenas de andorinhas?… Se a nossa classe política quer ter uma chance de sobreviver à década que vivemos no meio dos imensos desafios que o mundo nos coloca, era bom que se despachasse a pensar como a maioria. Como diz o outro, o povo tem sempre razão.

 

Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça, subscritor do Manifesto por uma Democracia de Qualidade