EUA: Acordo provável, mas não garantido

EUA: Acordo provável, mas não garantido


Esperar até ao último minuto para suspender ou aumentar o limite da dívida pode causar graves prejuízos’, avisou a secretária do Tesouro. Biden tem até dia 5 para assinar o acordo.


O prazo ‘rígido’ estabelecido pela secretária do Tesouro norte-americano para republicanos e democratas chegarem a um acordo com vista ao aumento do teto da dívida é 5 de junho. Quando já se notavam sinais de quebra da confiança dos investidores, Janet Yellen enviou uma carta aos líderes no Congresso deixando um aviso: «Esperar até ao último minuto para suspender ou aumentar o limite da dívida pode causar graves prejuízos à confiança das empresas e dos consumidores, aumentar os custos dos empréstimos para os contribuintes, e impactar de forma negativa o rating de crédito dos Estados Unidos». Aviso a que se juntaram o FMI e a Fitch, que classificou o crédito americano em observação negativa. 

Embora o problema seja de liquidez e não de solvência, os mercados também se determinam por perceções e um cenário de bloqueio ou incumprimento poderia ter consequências muito negativas. Por isso, apesar das divergências de fundo e de forma, o acordo era o cenário mais provável.

No fim de semana chegaram os primeiros sinais. O Presidente Joe Biden falou num compromisso bom para o país porque evitava «o que poderia ter sido um incumprimento catastrófico que teria levado a uma recessão económica, devastação das pensões e milhões de postos de trabalho perdidos». O presidente da Casa dos Representantes, Kevin McCarthy, anunciou «reduções históricas na despesa» e «reformas consequentes que vão retirar pessoas da pobreza e pô-las no mercado de trabalho».

Os próximos dias serão marcados pelo tema: uma vez passado na Câmara dos Representantes, o acordo terá de ser submetido e aprovado no Senado, para depois ser assinado pelo Presidente até ao dia 5. 

Riscos

O Tesouro Americano é garante e guardião do sistema financeiro internacional. Por isso, um cenário de incumprimento, em que os Estados Unidos falhariam o pagamento dos juros da dívida, poderia desencadear uma dinâmica de contágio.

O Japão e a China são os dois principais credores dos Estados Unidos, e juntos detêm mais de um quarto da dívida pública americana. Desde 2000, quando iniciou o seu processo de integração na economia global, a China vinha a acumular títulos do tesouro norte-americano, vistos como o investimento mais seguro. Mas nos últimos anos Pequim tem vindo a reduzir a sua exposição à dívida americana e, em 2019, o Japão tornou-se o maior credor. A posição de dependência da China também explica porque é que, apesar dos sinais dos últimos tempos, Pequim não tem interesse em que se precipite o fim da hegemonia do dólar na economia global. 

Internamente, um cenário de bloqueio também teria consequências. Mas um bloqueio temporário não seria inédito. Na prática, impediria provisoriamente o Governo de pagar despesas com fornecedores, salários e transferências de programas sociais. No entanto, se prolongado, e considerando que 60 por cento das famílias não têm poupanças suficientes para cobrir mais de três meses de despesas, poderia levar a um aumento do endividamento e possível aumento das taxas de juro.

A Oeste nada de novo

É uma lei quase física: quando a despesa excede a receita, é preciso recorrer ao endividamento. Em 1917, o Congresso, com o Second Liberty Bond Act, introduziu o teto da dívida como mecanismo para limitar esse endividamento. Desde então, estabeleceu-se um limite máximo ao endividamento do governo federal contraído com vista a cumprir as suas obrigações legais, i.e., pagar despesas já realizadas. Mas se desde 1917 nunca houve uma redução do teto da dívida, não há nada de inédito no seu aumento: aconteceu 90 vezes no século XX. Já no século XXI, em 2011, 2013 e 2017 houve impasses semelhantes ao atual, e o mesmo receio de uma situação de incumprimento e dos seus efeitos de contágio. A 5 de agosto de 2011, a S&P cortou, pela primeira vez, o rating da dívida americana. 

A dívida americana tem aumentado desde a administração Hoover (1929-33). Em termos percentuais, os presidentes que mais dívida deixaram foram Franklin Roosevelt e Woodrow Wilson. Mas o aumento tem acontecido a um ritmo mais acelerado nas últimas duas décadas. Durante a administração Obama, a dívida cresceu 8.34 triliões de dólares e o teto foi aumentado cinco vezes. Mas o crescimento recorde vai para a administração Trump: 8.2 triliões em quatro anos. A redução da atividade económica e diminuição da receita fiscal combinada com o aumento da despesa durante a pandemia provocou um défice recorde de 3.1 triliões de dólares em 2020, e colocou o teto da dívida nos 26.9 triliões de dólares.

Neste momento, o teto da dívida estava fixado em 31.4 triliões de dólares. Com vista a cumprir as suas obrigações, a administração precisaria de cerca de 200 mil milhões de dólares adicionais até ao fim do ano. 

Excesso de otimismo

Para cumprir as suas promessas, a Administração Biden precisava aumentar significativamente a despesa. Na fundamentação das suas políticas, a Administração assumiu que a recuperação levaria a um aumento da receita que permitiria acomodar, pelo menos em parte, o aumento de gastos. No entanto, refletindo os efeitos da inflação e das taxas de juro, o crescimento desacelerou no primeiro trimestre de 2023, situando-se em 1.3 por cento, e a Reserva Federal prevê que a economia entre em recessão no final do ano; a performance do mercado financeiro americano também tem ficado aquém das expectativas. 

A economia não tem acompanhado o aumento da despesa federal, exigido por uma agenda ambiciosa que incluiu um pacote de estímulos no valor de 1.9 triliões de dólares para fazer face às consequências da pandemia (aprovado pelo Congresso apenas com os votos dos democratas em 2021), a expansão do Obamacare, o perdão da dívida a estudantes universitários (sobre cuja legalidade o Supremo Tribunal se irá pronunciar em breve), a (bipartidária) Lei das infraestruturas e o apoio (militar e não militar) à Ucrânia, que atingiu um valor de 75 mil milhões de dólares.

Dimensão política

A secção 4 da 14.ª emenda (1868), a segunda das Emendas da Reconstrução, estabelece que o Governo deve cumprir as suas obrigações de dívida, e que o Tesouro americano deve dar prioridade ao serviço da dívida pública sobre o financiamento de qualquer outra despesa. 

Num contexto em que os republicanos recuperaram o controlo da Casa dos Representantes e os democratas têm uma maioria estreita no Senado, o aumento do teto da dívida obriga a negociações. Em janeiro, a secretária do Tesouro, Janet Yellen, informou o Congresso que o Governo dos EUA tinha atingido o limite de 31,4 mil milhões de dólares, equivalendo a cerca de 123,6% do PIB, e que o teto teria de ser aumentado. 

Na Casa dos Representantes, os republicanos aprovaram o Limit, Save, Grow Act. Estabelecendo as condições para a aprovação do aumento ou suspensão do teto da vida, tem como objetivo «conter as despesas desnecessárias do Presidente Biden, que alimentaram uma crise da inflação e desencadearam a mais rápida subida das taxas de juro em décadas». O plano previa, como contrapartida a um acordo, uma redução da despesa federal para o ano fiscal de 2024, que começa em outubro. 

Sendo certo que estes são tempos de pouca convergência entre republicanos e democratas, o que torna mais difícil chegar a soluções bipartidárias, o que separa uns e outros – em teoria, pelo menos – não é novo. O conservadorismo fiscal, i.e., menos impostos, menos regulamentação e menos despesa, é uma das bandeiras do Partido Republicano. 

Responsabilidade fiscal 

As negociações evidenciaram divergências de substância e de forma entre os dois partidos, que também devem ser lidas à luz do calendário eleitoral. Em matéria de redução do défice, os republicanos focaram-se no corte de gastos discricionários, opondo-se a qualquer subida de impostos. 

O acordo estabelecido suspende o limite do teto da dívida até 2025 (uma vitória para a Casa Branca), não prevê subidas de impostos, estabelece um regresso aos níveis de despesa de 2022 (excluindo defesa) no próximo ano fiscal, e impõe o limite de 1 por cento ao crescimento da despesa a partir de 2025, por um prazo de seis anos. 

Os republicanos conseguiram introduzir a devolução dos fundos covid que não foram utilizados e a agilização dos processos de certificação ambiental para projetos no setor energético. Os democratas conseguiram manter inalteradas as condições de acesso ao Medicaid e ao programa de transferências temporárias a famílias carenciadas, mas, numa vitória parcial para os republicanos, são introduzidas exigências de trabalho aos beneficiários de ajuda alimentar com idade até aos 54 anos.

Com eleições presidenciais em 2024, assegurar a suspensão do teto da dívida para um período de dois anos foi a vitória mais importante para Biden, permitindo-lhe evitar novas negociações, e possíveis bloqueios, até ao fim do mandato.

No Wall Street Journal, McCarthy apresentou o acordo como uma vitória para os republicanos, permitindo «cortar despesa, poupar dinheiro dos contribuintes e restaurar o crescimento da economia». Na prática, o acordo limita gastos, mas não corta despesa. E para uma ala do GOP trata-se de uma cedência aos democratas, que terá um impacto económico negativo. Posição secundada por dois candidatos à nomeação presidencial, Nikki Haley e Ron de Santis. Em declarações à Fox News, de Santis afirmou: «Antes deste acordo, o nosso país estava a avançar em direção à falência e, depois deste acordo, o nosso país vai continuar a avançar em direção à falência…dizer que se pode aumentar em 4 triliões a despesa no próximo ano…quero dizer…isso é uma quantidade maciça de despesa».

Convergência 

Apesar do muito que separava a posição negocial de republicanos e democratas, ambos convergiam no mais importante: uma situação de incumprimento deveria ser evitada.

A opinião pública também favorecia um cenário de entendimento, mas aproximando-se mais da posição dos republicanos. Numa sondagem da CNN, 84 por cento dos inquiridos estavam a favor do aumento do teto da dívida, e apenas 15 por cento entendiam que isso não deveria ser feito em qualquer circunstância. Mas dos 84 por cento que defendiam o aumento, 60 por cento entendiam que deveria ser acompanhado de cortes na despesa. Considerando o posicionamento político dos inquiridos, o corte da despesa é defendido por 79 por cento dos republicanos, 58 por cento dos independentes e 45 por cento dos democratas.

Estes fatores terão contribuído para afastar, na primeira fase das negociações, as posições mais radicalizadas nos dois partidos. Durante o processo, Biden manteve que «a única forma de avançar é com um acordo bipartidário», resistindo à ação unilateral que seria vista como uma forma de usurpação dos poderes do Congresso (segundo uma interpretação possível da 14.ª emenda, o Presidente poderia ignorar o teto da dívida e aumentar os impostos). E, desta vez, evitou-se o pior. Ganha-se tempo, mas é provável que os protagonistas da negociação, de um lado e doutro, percam algum capital político.