No escurinho do cinema


O fim da pandemia trouxe de volta o prazer do cinema em sala, permitindo, na luta de classes (e de gerações), o triunfo dos adeptos do grande ecrã sobre os corcundas do telemóvel e os conformados do formato televisivo.


Melhor só o cinema ao ar livre numa noite de Verão, longe da poluição luminosa e sonora das cidades. Regressar às salas de cinema é também lembrar todas as que já fecharam, desde os cinemas de bairro, reconvertidos em discotecas e depois em supermercados, até às primeiras gerações de multiplex. Regressamos, pela memória, aos sítios em que fomos felizes.

O Quarteto nasceu com o arejamento pós-revolucionário, em 1975, quase dentro da cidade Universitária, com uma programação eclética onde se incluíam todas as geografias, não excluindo Hollywood, e soube criar e educar um público fiel. Piores eram as poupanças no estender da vida das lâmpadas de projecção e que tendiam a amarelecer o canto dos ecrãs Perlux. Na data do aniversário da inauguração – 21 de Novembro – a festa do cinema durava 24 horas, com os bilhetes a preços de 1975, alargando o já longo período normal de funcionamento, das 13.00 às duas da manhã (o Quarteto popularizou as  sessões da meia-noite).

Da vida no Quarteto recordo um Matador, de Almodóvar, em sessão da meia noite. No clímax, quando Assumpta Serna retira um estilete do Top Knot para matar Nacho Martínez, sem o descavalgar, ouviu-se pela sala 4 do Quarteto um resfolegar, entrecortado por gemidos, vindo da fila 5. Sendo o público cinéfilo soou a onomatopeia habitual, requerendo silêncio. O resfolegar intensificou-se. Um cinéfilo mais dado à pedagogia gritou: “E-S-T-Á C-A-L-A-D-O A-N-I-M-A-L!”. Regressou o silêncio à plateia e pudemos ouvir Assumpta Serna a engolir a bala. Dois dias depois (éramos felizes, não havia internet, nem redes sociais) os jornais da tarde deram a notícia da morte de um espectador numa das salas do Quarteto, fulminado por um acidente cardiovascular. Sabedora destes (e de outros) perigos, a Inspecção Geral das Actividades Culturais (who else?) decidiu, em 2007, encerrar o Quarteto por falta de condições de segurança. Até hoje.

Fora dos terrenos cinéfilos aconteciam coisas estranhas. Os cinemas Alfa eram uma fábrica de pipocas, actividade mais lucrativa para a Lusomundo do que a venda de bilhetes. Foram, a partir de 1980 e até 1997, o segundo multiplex de Lisboa, começando com 3 a acabando com 6 salas, sendo a sala 1 particularmente capaz para grandes formatos. Na outra ponta da escala encontrava-se o Alfa 5, uma espécie de despensa com duas colunas de betão no meio da sala, roubando lugares e visão aos poucos espectadores que podia acolher. Dada a pequenez da sala, o Alfa 5 não justificaria filmes de acção mas tal não desmotivava os programadores que lá prantavam, com regularidade, os 3 desgraças (Van Damme, Schwarznegger e Seagal). Tendo sido vencido por mais uma promessa do cinema português que passava, estranhamente, na sala 1, decidi cevar a minha boa fé e comprei um segundo bilhete, desta vez para o Alfa 5. Calhou-me um Van Damme. Sentei-me na segunda fila (não havia muitas mais) e pude fruir a minha primeira (e única) experiência de cinema 3D. Na fila 3 sentava-se uma balzaquiana e três quartos, profunda conhecedora do enredo, sábia na bruitage e com a capacidade de relato de um Jorge Perestrelo. Pontuava os comentários com pontapés nas poltronas da fila fronteira e garantia, pela análise semiótica, que Van Damme não falhava uma cena: “Olha atrás de ti pá!, Vira-te!, Dá-lhe agora!, Parte-lhe a boca toda!”

No escurinho do cinema


O fim da pandemia trouxe de volta o prazer do cinema em sala, permitindo, na luta de classes (e de gerações), o triunfo dos adeptos do grande ecrã sobre os corcundas do telemóvel e os conformados do formato televisivo.


Melhor só o cinema ao ar livre numa noite de Verão, longe da poluição luminosa e sonora das cidades. Regressar às salas de cinema é também lembrar todas as que já fecharam, desde os cinemas de bairro, reconvertidos em discotecas e depois em supermercados, até às primeiras gerações de multiplex. Regressamos, pela memória, aos sítios em que fomos felizes.

O Quarteto nasceu com o arejamento pós-revolucionário, em 1975, quase dentro da cidade Universitária, com uma programação eclética onde se incluíam todas as geografias, não excluindo Hollywood, e soube criar e educar um público fiel. Piores eram as poupanças no estender da vida das lâmpadas de projecção e que tendiam a amarelecer o canto dos ecrãs Perlux. Na data do aniversário da inauguração – 21 de Novembro – a festa do cinema durava 24 horas, com os bilhetes a preços de 1975, alargando o já longo período normal de funcionamento, das 13.00 às duas da manhã (o Quarteto popularizou as  sessões da meia-noite).

Da vida no Quarteto recordo um Matador, de Almodóvar, em sessão da meia noite. No clímax, quando Assumpta Serna retira um estilete do Top Knot para matar Nacho Martínez, sem o descavalgar, ouviu-se pela sala 4 do Quarteto um resfolegar, entrecortado por gemidos, vindo da fila 5. Sendo o público cinéfilo soou a onomatopeia habitual, requerendo silêncio. O resfolegar intensificou-se. Um cinéfilo mais dado à pedagogia gritou: “E-S-T-Á C-A-L-A-D-O A-N-I-M-A-L!”. Regressou o silêncio à plateia e pudemos ouvir Assumpta Serna a engolir a bala. Dois dias depois (éramos felizes, não havia internet, nem redes sociais) os jornais da tarde deram a notícia da morte de um espectador numa das salas do Quarteto, fulminado por um acidente cardiovascular. Sabedora destes (e de outros) perigos, a Inspecção Geral das Actividades Culturais (who else?) decidiu, em 2007, encerrar o Quarteto por falta de condições de segurança. Até hoje.

Fora dos terrenos cinéfilos aconteciam coisas estranhas. Os cinemas Alfa eram uma fábrica de pipocas, actividade mais lucrativa para a Lusomundo do que a venda de bilhetes. Foram, a partir de 1980 e até 1997, o segundo multiplex de Lisboa, começando com 3 a acabando com 6 salas, sendo a sala 1 particularmente capaz para grandes formatos. Na outra ponta da escala encontrava-se o Alfa 5, uma espécie de despensa com duas colunas de betão no meio da sala, roubando lugares e visão aos poucos espectadores que podia acolher. Dada a pequenez da sala, o Alfa 5 não justificaria filmes de acção mas tal não desmotivava os programadores que lá prantavam, com regularidade, os 3 desgraças (Van Damme, Schwarznegger e Seagal). Tendo sido vencido por mais uma promessa do cinema português que passava, estranhamente, na sala 1, decidi cevar a minha boa fé e comprei um segundo bilhete, desta vez para o Alfa 5. Calhou-me um Van Damme. Sentei-me na segunda fila (não havia muitas mais) e pude fruir a minha primeira (e única) experiência de cinema 3D. Na fila 3 sentava-se uma balzaquiana e três quartos, profunda conhecedora do enredo, sábia na bruitage e com a capacidade de relato de um Jorge Perestrelo. Pontuava os comentários com pontapés nas poltronas da fila fronteira e garantia, pela análise semiótica, que Van Damme não falhava uma cena: “Olha atrás de ti pá!, Vira-te!, Dá-lhe agora!, Parte-lhe a boca toda!”