Tenho vivido, nestes últimos nove anos, a maior parte do tempo, nos Países Baixos.
Em muitos e importantes aspetos da vida, este país corresponde à ideia que podemos fazer do que possa ser um país normal.
Lembro-me, a propósito desta expressão – um país normal –, de um antigo artigo que escrevi para uma obra coletiva, publicada no ano 2000, que procurava analisar criticamente alguns aspetos da vida e da organização institucional do nosso país.
Chamava-se tal artigo «Uma Justiça dúctil para um país normal».
Construir e viver num país normal é, creio, o desejo da maior parte dos portugueses.
Na semana passada, vi, num cinema holandês, um filme português intitulado «Alma viva», realizado por um descendente de portugueses chamada Christèle Alves Meira.
Um filme em que sobressai a interpretação excecional de uma miúda chamada Lua Michel, que é já e, porventura, será também no futuro uma excecional atriz.
O tema do filme – que aqui não vou descrever – transporta-nos para um Portugal que já não corresponde à normalidade do país, ao que é, em geral, o país que já somos, ou à ideia que dele fazemos.
Não digo que esse outro país não exista ainda, mas não é nele que revemos o país que Portugal hoje é, até porque a maioria dos portugueses vive já em grandes cidades e à beira-mar e não nas recônditas aldeias do interior.
E, todavia, reflete-se, nesse filme, muito do atraso que ainda nos caracteriza como país e nos devia fazer refletir, em vez de gastarmos tempo com os noticiários e comentários das guerras de alecrim e manjerona.
Refiro-me às habitações sem condições nem o mínimo de conforto, a uma sociedade incapaz de oferecer alternativas de apoio à terceira-idade, aos resquícios de uma população envelhecida e isolada e que não é, ou é, apenas, precariamente escolarizada.
A busca da normalidade a que almejamos desde, pelo menos, o 25 de Abril não se realizou, de facto, ainda hoje.
Se tivermos, por exemplo, como bitola um país como os Países Baixos, podemos mais facilmente perceber o que possa ser essa normalidade, que muitos perseguiram, mas da qual, infelizmente, estamos ainda muito afastados.
Neste último país, o salário mínimo dos adultos – que poucos auferem – é razoavelmente superior ao salário médio português.
O parque habitacional social – propriedade do Estado ou dos poderes autárquicos – é cerca de dez vezes superior ao nosso e, ainda assim, a insuficiência da sua dimensão começa a ser contestada, pois não reponde já às necessidades de uma população jovem e instruída, como é a holandesa.
Os horários de trabalho são, neste país, curtos: as lojas, por exemplo, abrem às dez horas da manhã e fecham por volta das cinco.
Corrijo, fecham, na prática, um quarto de hora antes, para que os empregados possam arrumar a loja e sair exatamente às cinco da tarde.
Também nos serviços, este horário é respeitado e o teletrabalho é admitido e aconselhado uma ou duas vezes por semana, para que os pais possam apoiar mais a família.
Por essa mesma razão, os pais acompanham, desde as dezassete horas, os filhos nos parques infantis, que estão sempre cheios.
Não há, na verdade, extensão de horários para as creches, precisamente para que os pais sintam que têm, também, de educar e acompanhar os filhos.
Exatamente por essas mesmas razões, – a saber: salários decentes e progressivos, horários de trabalho humanos e adequados à vida em família – a população dos Países Baixos é uma das mais jovens da Europa.
Há condições sociais que favorecem a natalidade.
As famílias, como muitos gostam de se referir, hoje, à população do nosso país – o conceito de cidadão caiu em desuso, por aludir logo a direitos cívicos –, têm, pois, boas condições para prosperarem, não só economicamente como emocionalmente.
Estes princípios de organização da sociedade estão já enraizados culturalmente pela sociedade neerlandesa e parece-me difícil que possa haver um retrocesso, sem que isso provocasse uma rebelião de dimensões avassaladoras.
Tais valores são sustentados, em comum, por uma sociedade pluralista do ponto de vista religioso e político.
A cultura dos valores e direitos cívicos e sociais, adquiridos nos tempos em que a social-democracia não se subordinara, ainda, ao neoliberalismo e governou com objetivos sociais, continua sólida e, inclusive, é agora aceite pelos sectores politicamente mais conservadores do país.
Por outro lado, a Igreja Católica tornou-se, nos últimos anos, neste país – dada a redução da prática religiosa dos protestantes -, na que tem maior número de praticantes efetivos, defendendo estes, ativamente também, e não apenas de boca, os direitos indispensáveis ao desenvolvimento das condições que permitem às famílias florescer económica e emocionalmente.
Sem ser perfeita, esta sociedade mostra-se razoavelmente satisfeita com a «normalidade» atingida, pois corresponde, em certa medida, às possibilidades que o desenvolvimento das condições económico-produtivas, hoje existentes, oferece.
Não esquecendo as contradições realmente existentes para que se possa falar de uma sociedade justa, podemos, contudo, dizer que em muitos e variados aspetos os cidadãos deste país vivem objetivamente satisfeitos.
Isso é, de resto, visível nas expressões conviviais dos holandeses, sejam elas de natureza familiar ou social.
O Portugal que quisemos fazer depois do 25 de Abril, e que tem na Constituição o pacto político, económico e social maioritário que os portugueses quiseram firmar como programa e objetivo político, poderia ter alcançado já, não digo os níveis de satisfação da sociedade holandesa, mas, pelo menos, um equilíbrio muito mais perfeito entre as condições de vida dos seus cidadãos.
Infelizmente, e à semelhança do que acontece noutras parte do mundo – EUA, Brasil, Turquia, Israel – a nossa sociedade vai-se progressivamente polarizando também, precisamente por não se terem concretizado, e terem-se abandonado mesmo, muitas das mais importantes promessas que o pacto constitucional abarca.
Hoje, parece evidente e gritantemente injusto o défice democrático que existe no (des)equilíbrio dos rendimentos dos portugueses, no plano habitacional e urbanístico, no plano do acesso às condições de saúde e de outros serviços públicos de qualidade, sejam elas a escola pública, a justiça, as creches, ou os centros de apoio à terceira-idade.
Hoje, devido às leis laborais que temos e à violenta e indecente permissividade com que se encara a violação dos já de si limitados direitos que elas consagram, a maioria dos portugueses leva uma vida familiar apenas sofrível para as condições que o país pode e devia, com justiça, proporcionar-lhes.
Prossegue, pois, o empenho e o anseio social de soluções para que possamos ser, não digo já uma sociedade justa, mas, pelo menos, um país normal.
Tal desejo tem de contar, contudo, com o tributo – e não a guerrilha – de todos os que, independentemente da sua cor política ou religiosa, aprovaram a Constituição e hoje a juram quando desempenham funções públicas.