A vida da nossa república e a conversa indecifrável dos novos marretas mediáticos


Os cidadãos continuam, coitados, a preocupar-se, sobretudo, com questões tão mesquinhas como o preço dos géneros alimentícios, da habitação, da energia e os problemas da organização e eficácia dos serviços de saúde, de justiça, da educação, da segurança, dos transportes.


Lembram-se dos velhos «marretas», juntos num camarote, com dificuldade em ouvirem-se, mas repetindo constantemente um ao outro, as mesmas apreciações sobre os mesmos assuntos?

As nossas televisões (sobretudo elas) parecem-se cada vez mais com o camarote do teatro em que aquelas duas figuras se interpelavam repetidamente.

Hoje, parece ter passado a ser moda os jornalistas e comentadores residentes das TVs – num tuteamento cúmplice e displicente que os une como membros de uma mesma tribo e os separa, superiores, da turba multa –  encerrarem-se numa fala própria sobre a vida política nacional.

Uma fala que eles mesmos inventam todos os dias, mas que ninguém, fora do seu círculo, entende, por ser dita numa língua exótica e por nada ter a ver com os problemas reais da sociedade.

Comentam, discutem e antecipam, tão seriamente quanto possível – os astrólogos também – os esgares, os risos, a rapidez dos passos, as emoções passadas e futuras, as reações alérgicas, as escolhas das ementas e as mal percebidas ou, por vezes, mesmo indecifráveis, respostas que as figuras dominantes da nossa pobre vida política ensaiam dar-lhes.

Fechados no camarote mediático, do alto dos seus assentos reservados, e à margem da sociedade dos não iniciados, chegam mesmo, assim, a crer estar a falar de algo relevante para a maioria dos cidadãos.

Passam, depressa, das palmadas nas costas e do piscar de olho à mais desenfreada gritaria, quando algum deles, num raro momento de desatenção ou sinceridade, foge ao guião predeterminado que conduz sempre ao consenso combinado e que ilustra, apenas, a sua muito exclusiva perceção do mundo.

Para os espectadores mais desatentos, parece mesmo que se zangam, quando, por vezes, representam, histriónica e excitavelmente, tal papel.

Mas não; se se esperar um pouco, lá os vemos reencontrar, depressa, as linhas por onde combinaram orientar-se e através das quais nos querem, também, conduzir para o seu mundo mágico e fantasioso, dissecando, palavrosos, um presente inexistente e adivinhando futuros irrealizáveis: um mundo que só existe, por isso, nas suas cabeças e nas cabeças dos séquitos irrequietos e alucinados que os acompanham e, constantemente, os incensam.

Falam de tudo e de nada como se fossem especialistas de qualquer matéria, mas do que verdadeiramente sabem é do desfiar do novelo de peripécias menores que, contudo, segundo eles, são o centro da política e deveriam concitar, pois, toda a atenção dos alheados cidadãos.

Estes – imensamente burros, assim os julgam – continuam, coitados, a preocupar-se, sobretudo, com questões tão mesquinhas como o preço dos géneros alimentícios, da habitação, da energia e os problemas da organização e eficácia dos serviços de saúde, de justiça, da educação, da segurança, dos transportes.

 Assim, ingratos, os cidadãos incomodam-se pouco, e cada vez menos, com os melodramas que, quase como se fosse um ballet moderno, jornalistas e comentadores residentes – que, a propósito, vão ocupando, sucessivamente, as cadeiras uns dos outros e, mesmo, as daqueles que ousam comentar – se encarregam, em conjunto, de ensaiar e exibir.

Com tais melodramas procuram, portanto, atrair a atenção dos já poucos mirones que lhes restam e que eles insistem em tomar pelo povo.

O roufenhar permanente destes novos marretas polui, contudo, o silêncio pesado e magoado dos que trabalham, na maioria mal pagos e com pouca esperança de ver melhorada em breve a sua situação.

São estes que, ainda assim, insistem em cumprir a suas tarefas o melhor que sabem e podem, em circunstâncias sempre adversas, que em nada se parecem com os cenários delirantes daquele outro mundo fantasioso de troca de recados e fretes que lhes querem vender como autêntico e relevante.

A crescente e grave dessintonia entre o mundo de uns e o dos outros ameaça, todavia, tornar-se perigosa para a democracia.

Esta, para prosperar, ou para, pelo menos, não definhar, tem de ter alicerces sólidos, verdadeiros e comuns: alicerces ancorados na vida tal como ela é de facto.

Tal dessintonia contribui, porém, enormemente, para fazer crescer o risco de uma rutura social e política séria: uma rutura decisiva e funda, em nada comparável com as pequenas, encenadas, mas irrelevantes brechas que acontecem todos os dias, para gaudio exclusivo de apenas uns quantos frequentadores do teatro mediático.

Qual a dimensão dessa outra e mais autêntica rutura, quais os agentes da mesma, qual o seu sentido e as consequências que terá, ninguém – nem mesmo os novos marretas – sabe desvendar.

O que se sabe é que tal rutura se aprofunda rápida e descontroladamente, cresce em cada dia um pouco mais e que – pese o exorbitante ruído da permanente e enervante discussão dos que acompanham o palco da vida a partir dos camarotes – também o seu fragor se vai, agora, começando a sentir, cada vez com mais força e nitidez e já dentro dos muros do próprio teatro onde atuam os marretas.

E tal rutura – como o próprio Presidente da República constatou – será, desta vez, séria e dolorosa e ocorrerá, necessariamente, à margem dos comentários artificiosos, dos rodriguinhos consabidos, das conversas em família e da língua viperina, mas obediente, de muitos dos mais adestrados intervenientes mediáticos e dos políticos a eles ligados.

Talvez fosse, por isso, a hora de lhes fechar o camarote e de pedir a todos que, humildemente, descessem à rua para verem e ouvirem, com mais atenção e interesse, as imagens e os sons do mundo real: o mundo daqueles que não precisam de cifra para, doridamente, sentirem na própria pele e perceberem logo quando e que ruturas se dão.

Ganharíamos todos com isso: os cidadãos, alguns políticos e os próprios órgãos de comunicação social, que passariam de novo a ser levados a sério.

Ganharia, também, o regime democrático que, num dos momentos mais felizes da nossa vida cívica, fizemos consagrar na Constituição da República, pacto político e social que urge, hoje, preservar e fazer respeitar.

 

A vida da nossa república e a conversa indecifrável dos novos marretas mediáticos


Os cidadãos continuam, coitados, a preocupar-se, sobretudo, com questões tão mesquinhas como o preço dos géneros alimentícios, da habitação, da energia e os problemas da organização e eficácia dos serviços de saúde, de justiça, da educação, da segurança, dos transportes.


Lembram-se dos velhos «marretas», juntos num camarote, com dificuldade em ouvirem-se, mas repetindo constantemente um ao outro, as mesmas apreciações sobre os mesmos assuntos?

As nossas televisões (sobretudo elas) parecem-se cada vez mais com o camarote do teatro em que aquelas duas figuras se interpelavam repetidamente.

Hoje, parece ter passado a ser moda os jornalistas e comentadores residentes das TVs – num tuteamento cúmplice e displicente que os une como membros de uma mesma tribo e os separa, superiores, da turba multa –  encerrarem-se numa fala própria sobre a vida política nacional.

Uma fala que eles mesmos inventam todos os dias, mas que ninguém, fora do seu círculo, entende, por ser dita numa língua exótica e por nada ter a ver com os problemas reais da sociedade.

Comentam, discutem e antecipam, tão seriamente quanto possível – os astrólogos também – os esgares, os risos, a rapidez dos passos, as emoções passadas e futuras, as reações alérgicas, as escolhas das ementas e as mal percebidas ou, por vezes, mesmo indecifráveis, respostas que as figuras dominantes da nossa pobre vida política ensaiam dar-lhes.

Fechados no camarote mediático, do alto dos seus assentos reservados, e à margem da sociedade dos não iniciados, chegam mesmo, assim, a crer estar a falar de algo relevante para a maioria dos cidadãos.

Passam, depressa, das palmadas nas costas e do piscar de olho à mais desenfreada gritaria, quando algum deles, num raro momento de desatenção ou sinceridade, foge ao guião predeterminado que conduz sempre ao consenso combinado e que ilustra, apenas, a sua muito exclusiva perceção do mundo.

Para os espectadores mais desatentos, parece mesmo que se zangam, quando, por vezes, representam, histriónica e excitavelmente, tal papel.

Mas não; se se esperar um pouco, lá os vemos reencontrar, depressa, as linhas por onde combinaram orientar-se e através das quais nos querem, também, conduzir para o seu mundo mágico e fantasioso, dissecando, palavrosos, um presente inexistente e adivinhando futuros irrealizáveis: um mundo que só existe, por isso, nas suas cabeças e nas cabeças dos séquitos irrequietos e alucinados que os acompanham e, constantemente, os incensam.

Falam de tudo e de nada como se fossem especialistas de qualquer matéria, mas do que verdadeiramente sabem é do desfiar do novelo de peripécias menores que, contudo, segundo eles, são o centro da política e deveriam concitar, pois, toda a atenção dos alheados cidadãos.

Estes – imensamente burros, assim os julgam – continuam, coitados, a preocupar-se, sobretudo, com questões tão mesquinhas como o preço dos géneros alimentícios, da habitação, da energia e os problemas da organização e eficácia dos serviços de saúde, de justiça, da educação, da segurança, dos transportes.

 Assim, ingratos, os cidadãos incomodam-se pouco, e cada vez menos, com os melodramas que, quase como se fosse um ballet moderno, jornalistas e comentadores residentes – que, a propósito, vão ocupando, sucessivamente, as cadeiras uns dos outros e, mesmo, as daqueles que ousam comentar – se encarregam, em conjunto, de ensaiar e exibir.

Com tais melodramas procuram, portanto, atrair a atenção dos já poucos mirones que lhes restam e que eles insistem em tomar pelo povo.

O roufenhar permanente destes novos marretas polui, contudo, o silêncio pesado e magoado dos que trabalham, na maioria mal pagos e com pouca esperança de ver melhorada em breve a sua situação.

São estes que, ainda assim, insistem em cumprir a suas tarefas o melhor que sabem e podem, em circunstâncias sempre adversas, que em nada se parecem com os cenários delirantes daquele outro mundo fantasioso de troca de recados e fretes que lhes querem vender como autêntico e relevante.

A crescente e grave dessintonia entre o mundo de uns e o dos outros ameaça, todavia, tornar-se perigosa para a democracia.

Esta, para prosperar, ou para, pelo menos, não definhar, tem de ter alicerces sólidos, verdadeiros e comuns: alicerces ancorados na vida tal como ela é de facto.

Tal dessintonia contribui, porém, enormemente, para fazer crescer o risco de uma rutura social e política séria: uma rutura decisiva e funda, em nada comparável com as pequenas, encenadas, mas irrelevantes brechas que acontecem todos os dias, para gaudio exclusivo de apenas uns quantos frequentadores do teatro mediático.

Qual a dimensão dessa outra e mais autêntica rutura, quais os agentes da mesma, qual o seu sentido e as consequências que terá, ninguém – nem mesmo os novos marretas – sabe desvendar.

O que se sabe é que tal rutura se aprofunda rápida e descontroladamente, cresce em cada dia um pouco mais e que – pese o exorbitante ruído da permanente e enervante discussão dos que acompanham o palco da vida a partir dos camarotes – também o seu fragor se vai, agora, começando a sentir, cada vez com mais força e nitidez e já dentro dos muros do próprio teatro onde atuam os marretas.

E tal rutura – como o próprio Presidente da República constatou – será, desta vez, séria e dolorosa e ocorrerá, necessariamente, à margem dos comentários artificiosos, dos rodriguinhos consabidos, das conversas em família e da língua viperina, mas obediente, de muitos dos mais adestrados intervenientes mediáticos e dos políticos a eles ligados.

Talvez fosse, por isso, a hora de lhes fechar o camarote e de pedir a todos que, humildemente, descessem à rua para verem e ouvirem, com mais atenção e interesse, as imagens e os sons do mundo real: o mundo daqueles que não precisam de cifra para, doridamente, sentirem na própria pele e perceberem logo quando e que ruturas se dão.

Ganharíamos todos com isso: os cidadãos, alguns políticos e os próprios órgãos de comunicação social, que passariam de novo a ser levados a sério.

Ganharia, também, o regime democrático que, num dos momentos mais felizes da nossa vida cívica, fizemos consagrar na Constituição da República, pacto político e social que urge, hoje, preservar e fazer respeitar.