O comboio, de memória


Gente ignara, a armar-se em nórdica, quer transformar a ferrovia num modo de transporte. Grande erro que desdenha a tradição lusa e o valor acrescentado daquilo a que se chamam hoje “experiências”.


Agora que as greves fazem sumir os comboios, sem fazerem sumir os passageiros, vem-me à memória a reflexão de uma reputada especialista em transportes: “A CP é uma empresa fantástica,   só não gosta de transportar passageiros. Sem passageiros a CP seria ainda melhor.” Esta sábia observação vale para a CP do presente e temo que valha para a do futuro, considerando a capacidade dos comboios portugueses para circularem hoje (quando circulam…) à mesma velocidade praticada nos anos sessenta do século passado. Em Portugal, onde não há TGV, o acrónimo deve corresponder, para efeitos de transporte, a Two Guys & a Van.

Não havendo comboio resta-nos a memória do que houve. Recordo com saudade uma instituição já desaparecida, o comboio correio, na versão sulista. Pluralista no modo de transporte começava de barco, largando amarras da estação Sul e Sueste, navegando sem pressas o cachão do Tejo. Partia do Barreiro uma composição com ambulância postal e umas três carruagens de passageiros, sempre depois das 22.40, se possível muito depois, porque o horário era lido pela CP como os semáforos em Nápoles, uma sugestão, nunca uma prescrição. E chegava a Faro com o sol bem nascido, puxado pela velha e pesada locomotiva da série 1500, seguindo o comboio, gabando-se de ser “nocturno”, até Vila Real de Santo António, abrandando ao aproximar-se de certas estações e cuspindo uma saca de correio. O “correio” aventurava-se pelo país real por linhas entretanto dadas ao pasto. Os passageiros tinham uma oportunidade cinematográfica, infelizmente nunca mostrada a Sergio Leone: deslizando pela planura alentejana o comboio parava, de madrugada, no meio de sítio nenhum, encostado a um alpendre, um depósito de água e um aerogerador, como então existiam, castanhos de ferrugem e rangendo, a chamar um tema de Enio Morricone. O revisor, conhecedor do sono solto dos passageiros com ligação para Évora e que poderiam só acordar em Beja, berrava pelos corredores, abrindo a gritos cada um dos compartimentos: “CASA BRANCA!” Vitimizado, ainda hoje as 3 primeiras associações que faço quando ouço o topónimo “Casa Branca” obrigam a um enterrar da cabeça entre os ombros, para me proteger dos decibéis recordados.

Para os mais corajosos havia o comboio azul, entre Campanhã e Vila Real de Santo António, com a vantagem clubística inexcedível de não passar por Lisboa, atravessando o Tejo em Setil, tomando a linha de Vendas Novas (“CASA BRANCA” revisited) e seguindo pela linha do Alentejo até à Funcheira.

Os comboios de então mitigavam, tant bien que mal, alguns efeitos das alterações climáticas. A falta de ar condicionado era sublinhada pelas janelas avariadas e que se recusavam a abrir. Por vezes outras avarias, agora no aquecimento, permitiam, com o mesmo bloqueado no máximo, uma sauna portuguesa, numa carruagem da Sorefame de aço inox canelado, em Julho,   circulando por Ermidas-Sado, pelas 3 da tarde.

Antes da inclusão da restauração lusitana no Guia Michelin o “bar” do comboio Sotavento era por vezes improvisado num dos compartimentos da 2ª classe, com um alguidar com gelo e sandes embrulhadas na hora, tudo na cauda da composição para fugir à tosse negra da locomotiva da série 1800.

À sexta-feira os militares, praticantes das relações MFA-povo e conhecedores da sobrelotação do comboio, entravam pela janela, primeiro a mochila e depois o corpo. Um militar escondia sempre meio pelotão. Era uma versão grandiosa, em cinemascope 3D, do concurso “quantos  cabem dentro de um Mini” do Passeio dos Alegres.

O comboio, de memória


Gente ignara, a armar-se em nórdica, quer transformar a ferrovia num modo de transporte. Grande erro que desdenha a tradição lusa e o valor acrescentado daquilo a que se chamam hoje “experiências”.


Agora que as greves fazem sumir os comboios, sem fazerem sumir os passageiros, vem-me à memória a reflexão de uma reputada especialista em transportes: “A CP é uma empresa fantástica,   só não gosta de transportar passageiros. Sem passageiros a CP seria ainda melhor.” Esta sábia observação vale para a CP do presente e temo que valha para a do futuro, considerando a capacidade dos comboios portugueses para circularem hoje (quando circulam…) à mesma velocidade praticada nos anos sessenta do século passado. Em Portugal, onde não há TGV, o acrónimo deve corresponder, para efeitos de transporte, a Two Guys & a Van.

Não havendo comboio resta-nos a memória do que houve. Recordo com saudade uma instituição já desaparecida, o comboio correio, na versão sulista. Pluralista no modo de transporte começava de barco, largando amarras da estação Sul e Sueste, navegando sem pressas o cachão do Tejo. Partia do Barreiro uma composição com ambulância postal e umas três carruagens de passageiros, sempre depois das 22.40, se possível muito depois, porque o horário era lido pela CP como os semáforos em Nápoles, uma sugestão, nunca uma prescrição. E chegava a Faro com o sol bem nascido, puxado pela velha e pesada locomotiva da série 1500, seguindo o comboio, gabando-se de ser “nocturno”, até Vila Real de Santo António, abrandando ao aproximar-se de certas estações e cuspindo uma saca de correio. O “correio” aventurava-se pelo país real por linhas entretanto dadas ao pasto. Os passageiros tinham uma oportunidade cinematográfica, infelizmente nunca mostrada a Sergio Leone: deslizando pela planura alentejana o comboio parava, de madrugada, no meio de sítio nenhum, encostado a um alpendre, um depósito de água e um aerogerador, como então existiam, castanhos de ferrugem e rangendo, a chamar um tema de Enio Morricone. O revisor, conhecedor do sono solto dos passageiros com ligação para Évora e que poderiam só acordar em Beja, berrava pelos corredores, abrindo a gritos cada um dos compartimentos: “CASA BRANCA!” Vitimizado, ainda hoje as 3 primeiras associações que faço quando ouço o topónimo “Casa Branca” obrigam a um enterrar da cabeça entre os ombros, para me proteger dos decibéis recordados.

Para os mais corajosos havia o comboio azul, entre Campanhã e Vila Real de Santo António, com a vantagem clubística inexcedível de não passar por Lisboa, atravessando o Tejo em Setil, tomando a linha de Vendas Novas (“CASA BRANCA” revisited) e seguindo pela linha do Alentejo até à Funcheira.

Os comboios de então mitigavam, tant bien que mal, alguns efeitos das alterações climáticas. A falta de ar condicionado era sublinhada pelas janelas avariadas e que se recusavam a abrir. Por vezes outras avarias, agora no aquecimento, permitiam, com o mesmo bloqueado no máximo, uma sauna portuguesa, numa carruagem da Sorefame de aço inox canelado, em Julho,   circulando por Ermidas-Sado, pelas 3 da tarde.

Antes da inclusão da restauração lusitana no Guia Michelin o “bar” do comboio Sotavento era por vezes improvisado num dos compartimentos da 2ª classe, com um alguidar com gelo e sandes embrulhadas na hora, tudo na cauda da composição para fugir à tosse negra da locomotiva da série 1800.

À sexta-feira os militares, praticantes das relações MFA-povo e conhecedores da sobrelotação do comboio, entravam pela janela, primeiro a mochila e depois o corpo. Um militar escondia sempre meio pelotão. Era uma versão grandiosa, em cinemascope 3D, do concurso “quantos  cabem dentro de um Mini” do Passeio dos Alegres.