É quase impossível não notar a visível relevância que os tribunais têm hoje na definição do que é, ou não, politicamente aceitável numa dada sociedade.
Nunca, como agora, foi o poder judicial chamado a contribuir, sistematicamente, para solucionar problemas da governação a que os políticos não conseguem dar uma resposta convincente e popular.
Ainda recentemente, constatámos o que ocorreu em França, a propósito da mudança do regime e da idade em que os cidadãos franceses podem reformar-se.
O Conselho Constitucional francês pronunciou-se, mas a sua resposta, obviamente, nada tem a ver com a correção ou incorreção da opção política tomada pelo governo desse país.
Em Portugal, é certo e sabido que, quando os representantes dos diferentes órgãos do poder político não se entendem sobre algum assunto que importa resolver, os tribunais são chamados a intervir.
Mesmo quando tais matérias revestem, no essencial, uma natureza iminentemente política, os que têm que tomar decisões de fundo sobre elas acabam, por norma, por aguardar que os tribunais se pronunciem sobre alguns dos seus aspetos menos centrais.
O que este tipo de intervenção judicial implica não pode, assim, deixar de suscitar uma reflexão profunda sobre a mudança da função – deveria dizer papel, por se tratar mais do simbolismo do que das atribuições constitucionais – dos tribunais.
Uma das questões que deveria suscitar uma reflexão mais séria diz respeito à confusão pública que hoje existe em relação às responsabilidades e funções dos órgãos constitucionais do Estado, entre elas as dos tribunais.
Uma outra diz respeito à preparação dos magistrados para decidirem sobre matérias que, em princípio, não lhes competiria, em primeira mão, pronunciar-se.
Além de que – se verdadeiramente se desejar que os tribunais participem neste tipo de decisões – haveria que reconsiderar, também, a sua composição, o seu apoio e o seu funcionamento, para que elas não sejam intempestivas e, por isso, na melhor das hipóteses, meramente emblemáticas.
Na realidade, qualquer que seja natureza dos regimes políticos, é frequente os tribunais – mesmo que apenas para coonestar decisões previamente tomadas pelo poder político – serem chamados a assumir posições que, sendo, em rigor, alheias à essência da decisão política que as promoveu, a condicionam de algum modo.
Por isso, qualquer que seja o seu sentido, são, quase sempre, incompreendidas e impopulares.
O facto de um tribunal dizer que uma determinada medida tomada pelo poder político não é ilegal, nem na forma nem no conteúdo, não lhe confere, todavia, a qualidade de ser uma boa decisão do ponto de vista político, social ou económico e de ser capaz de resolver com competência, justiça e equidade um dado problema.
Mas, sobre isso, pouco os media se informam, raramente se pronunciam e, muito menos, esclarecem a opinião pública.
A certificação judicial da legalidade de uma dada decisão e, na perspetiva política, a sua adequação para resolver o problema que a determinou acabam, assim, por confundir-se.
A atenção dos cidadãos é, então, chamada a centrar-se sobre aspetos – muitas vezes marginais – que, em nada ou muito pouco, influem na qualidade política de uma dada medida que é, à partida, pouco consensual.
Tal desvio de atenção do essencial para o acessório, quase sempre apoiado por um noticiário envolvente e repetitivo, parece decorrer, demasiadas vezes, de um subterfúgio destinado a escamotear a verdade total do caso.
Nesta aparente estratégia de mistificação da realidade, parecem confluir, porém, não só os que são oficialmente os progenitores da medida política em causa, como, além deles, com frequência também, muitos dos que aparentam, quando na oposição, opor-se-lhe.
A questão do destino da nossa companhia aérea é, deste tipo de confusões e contradições, um exemplo notável e arrepiante.
Acumulam-se muitos inquéritos de vária ordem, porventura alguns processos, e é quase nula a discussão política sobre a importância, ou não, da sua sobrevivência, enquanto empresa portuguesa, pública ou privada.
Em vez disso, discutem-se nas TVs, até à exaustão, os pormenores dos comportamentos e responsabilidades, ou irresponsabilidades, dos que, num ou noutro dado momento da vida dessa empresa, a geriram, mais próxima ou mais distantemente.
Claro que, no sítio certo – os tribunais – e com a reserva que, apesar de tudo, se lhes exige, devem tais responsabilidades legais ser apuradas, mas isso demora tempo e o seu resultado, sempre incerto, pode não ser tempestivamente útil para ser, de imediato, tratado nos media.
Do ponto de vista folhetinesco, parece muito mais interessante, assim, saber e divulgar as intervenções inenarráveis que os responsáveis pelas mais incríveis situações tiveram em cada momento, mesmo que delas não resultem consequências legais relevantes.
O que, nos nossos dias de política espetáculo, parece, tão só, interessar aos media do regime – e eles alinham hoje quase todos pelo mesmo diapasão – é o cálculo de quantos e quais os factos políticos necessários, para mudar os protagonistas do enredo.
À margem do confronto diretamente político-partidário, também os media – mesmo que uniformes na maneira como elaboram e forçam a importância de um dado facto político – procuram obter para si a glória das mudanças político-sociais que conseguiram impor.
Um dia destes, ainda inventam, por isso, um popular concurso televisivo para premiar os telespectadores que adivinharem o número, o momento e o autor dos factos políticos que foram, ou são, capazes de mudar o elenco da novela.
Sobre tais cálculos fazem-se já, nos mais recônditos, mas especializados, círculos político-mediáticos, as maiores e mais interessadas apostas.