E, por fim, já não aguentam mesmo


As pessoas descobriram, por fim, que não têm futuro, ou que o futuro que lhes apresentam é tão mau ou pior do que o seu presente, já amargo.


E, de repente, pessoas das mais variadas e insuspeitas condições e sensibilidades começaram a dizer que não aguentam mais.

Longe vão, com efeito, os tempos em que a jactância de alguns os levava a dizer: «Ai! aguentam, aguentam!»
Estou certo que os mesmos perguntam agora, aturdidos e indignados: «o que se passa?»

«É a (vossa) economia, estúpidos! O que é que não entendem nas reclamações que fazemos? – poderiam alguns, mais atentos e irónicos, cotejá-los na resposta. 

O que acontece é que as pessoas descobriram, por fim, que não têm futuro, ou que o futuro que lhes apresentam é tão mau ou pior do que o seu presente, já tão amargo.

Exigir, sempre mais e mais sacrifícios, deixou, por isso, de ter e fazer sentido
É isso que torna as pessoas incapazes de aguentar uma vez mais, e mais uma vez, que lhes espremam o já pouco que, ainda, têm.

Em Portugal, em França, em Espanha, em Itália, no Reino Unido, na própria Alemanha, em qualquer outro lado, as pessoas não querem mais ser os protagonistas passivos da anedota do inglês sovina que, economizando sempre mais e mais na comida do burro que possuía, ficou chocado quando ele morreu de fome, no preciso momento em que – para espanto do dono – já estava habituado a não comer. 

Os sacrifícios, que as pessoas ainda possam conceber sofrer, obrigam, em contrapartida, a uma promessa credível: a garantia de que, num futuro próximo e visível, algo vai mesmo mudar para melhor, desde logo para si e também para os seus filhos.

Ora, não é isso que as pessoas sentem que vai suceder desta vez, mais uma vez.
O que as leva a dizer, agora, que não aguentam mais é a antevisão, sem esperança, dos mesmos e repetidos cenários de contenção dos direitos mais fundamentais da vida humana: os que, como cantava com rara precisão, Sérgio Godinho, em 1974, se sintetizam em «o pão, a paz, habitação, saúde, educação».

Por exemplo, os salários dos mais jovens – mesmo dos doutorados, mestrados ou licenciados – não lhes permitem projetar uma vida decente: não pagam sequer a mais modesta das habitações dignas desse nome.

Depois, falta tudo o resto.

Durante os últimos tempos, desde, pelo menos, há duas décadas, na medida em que os pais estivessem vivos e conseguissem ajudar – albergando em casa os filhos e os netos – as coisas lá se iam aguentando.

Mas, e depois, quando as leis da vida se começaram a impor?
Ora, foi precisamente esse tempo de folga que os pais deram à economia que, em muitos casos, começa agora – com eles – a escassear e mesmo a acabar.

Por isso, a realidade da vida, tal como vivida neste regime dominado pelo discurso ideológico neoliberal, tornou-se, de repente, mais evidentemente sem saída.

O que sobra é uma vida bruta e bloqueada para uma grande parte das pessoas e, pior, das pessoas mais jovens.
A verdade é que o neoliberalismo – gostem ou não os seus defensores mais encarniçados, ou aqueles que, arrastados, com ele condescendem – é uma ideologia que prevê um programa específico de sociedade, não, como alguns julgam ou pretendem, a realidade verdadeira e definitiva das coisas.

Da porta da casa dos pais, começam, pois, a sair e juntar-se na rua – nessa rua crua e violenta que tantos temem – jovens das mais variadas gerações e condições, clamando pelas promessas não cumpridas e, afinal, nunca realmente pretendidas e concebidas pelos que gerem, de facto, a sociedade.

Era de há muito patente que, um dia, isso ia acontecer.

Mesmo assim, poucos quiseram ver, ou acreditar.

Hoje, nasce, sem ideologia precisa, uma verdadeira fúria contra o presente estado de coisas e contra aqueles que, com ele, estão de algum modo comprometidos.

O que tal fúria possa trazer, ainda ninguém sabe.

O maior perigo é que as manifestações dessa fúria não se direcionem e não sejam orientadas por um projeto racional, claro, atual e credível, capaz de solucionar, ou ao menos atenuar, os bloqueios e as injustiças que o neoliberalismo faz crescer todos os dias: um projeto imediato de solidariedade e respeito de uns para com os outros.

Os norte-americanos, que têm muitos defeitos, mas sempre souberam antecipar o que vem a seguir, de há muito que começaram a refletir no seu cinema os cenários apocalípticos de regressão civilizacional que os poderes de hoje estão a criar.

Há mais de uma década que fazem filmes sobre as grandes metrópoles ingovernáveis e as sociedades paralelas e marginais ao domínio das corporações económicas que, direta ou indiretamente, as gerem. 

Lembro-me, de repente, de um: «The Postman», dirigido por Kevin Costner. 

Mas outros há – e houve – bem mais explícitos e menos otimistas.

Não por acaso, o que nesse país se passa agora, não é já uma questão de confronto e divisão entre partidos com programas algo diferentes; o que ali acontece é, de facto, o início de uma rutura da ordem económica e social, até hoje estabelecida.

Sim, trata-se de uma rutura entre um mundo ainda assim (mal) ordenado pelo neoliberalismo clássico e um outro onde reinará já, sem máscara, um cada vez mais desbragado anarcoliberalismo liberticida.

Dele sobrevirá – para além do que já acontece – uma sociedade que rejeita tudo o que se traduza no bem comum, em que se defende um individualismo radical e desrespeita, pois, tudo o que de solidário ainda possa existir, nos programas e discursos hipócritas dos que ainda gerem a sociedade.

Será já o salve-se quem puder, sem, ao menos, o recurso às ajudas pontuais com que hoje se tenta disfarçar a permanente quebra de salários e de outros direitos sociais. 

O que se passa neste nosso mundo é o fim do que ainda resta de uma ordem que, em tempos, a social-democracia e a democracia cristã europeias do pós-guerra erigiram para amparar, como contraforte, o outro lado do mundo e do muro que o dividia.

Quando ele caiu num Outono de 1989, porque a firmeza do contraforte opositor degenerou e, por isso, se esboroou sem grande sobressalto, não aconteceu, como muitos acreditavam, um mundo com mais humanismo, justiça e segurança: antes, sobreveio um neoliberalismo vindicativo, mais desapiedado e brutal que, de resto, vinha sendo cozinhado e experimentado já, à vista de todos, por Reagan, Thatcher e Pinochet. 

Ao contraforte social-democrata e social-cristão aconteceu, então, o mesmo que ao outro: desabou.

O olvido constante, óbvio e chocante, do bem comum como valor orientador da governação que o neoliberalismo introduziu – escândalos, falências e corrupções, que passaram a governar, ou desgovernar, recorrentemente a vida de todos – só poderia, pois, acabar no que começa a ocorrer: numa revolta sempre mais violenta, mesmo que ainda sem objetivos definidos.

É por essa razão que os que querem, a todo o custo, manter a desumanizada sociedade que ajudaram a construir se encarniçam tanto contra o que dizem ser «o pensamento ideológico».

Temem que ele possa gerar uma nova mobilização em torno de uma alternativa real, mas diferente, da dogmática fantasiosa, que impuseram, e há anos perseguem e de que já nem sequer se dão conta que rege, realmente, todos os seus passos e os discursos.

Mas, uma alternativa fundada de novo num discurso político, racional, solidário e plausível é, precisamente, o que, ainda assim, de melhor poderia acontecer-lhes.

É a inconsideração do que verdadeiramente são e do que estão a criar que torna hoje os neoliberais – que, com as mais diversas roupagens, nos gerem – verdadeiramente perigosos, inclusive para os interesses que julgam defender.

As peripécias que – para desastre de todos e sobretudo dos mais fracos – continuam, por exemplo, a acontecer na banca nacional e internacional são disso um exemplo claro e um sinal de mau presságio.

A guerra que alastra e para a qual se vendem, compram e experimentam mais e mais novas e terríveis armas, e que se antevê, por isso, continuada e cruel, é outro sinal, também.

Sem um compromisso honesto, programado, verificável nos seus tempos e na concretização efetiva e que restitua esperança no recomeço de uma vida decente para a maioria das pessoas, o caminho que se abre aos democratas das mais diversas cores – que os há – apenas conduzirá ao abismo e ao derrube das democracias.

É que, ao contrário do que nos querem fazer crer, não há hoje uma guerra entre democracias e autocracias: o que há é uma disputa por mercados e matérias primas, que permitam aguentar uns tempos mais o sempre mais voraz regime de exploração que reina em todo o lado. 

Por isso, as democracias não desabarão imediatamente por efeito de revoltas justas, porventura violentas, mas inconsequentes, que irrompem em muitos lados; desabarão, para já, às mãos dos que friamente fomentaram as sucessivas crises, para melhor poderem usufruir dos privilégios de que sempre gozaram.

E, por fim, já não aguentam mesmo


As pessoas descobriram, por fim, que não têm futuro, ou que o futuro que lhes apresentam é tão mau ou pior do que o seu presente, já amargo.


E, de repente, pessoas das mais variadas e insuspeitas condições e sensibilidades começaram a dizer que não aguentam mais.

Longe vão, com efeito, os tempos em que a jactância de alguns os levava a dizer: «Ai! aguentam, aguentam!»
Estou certo que os mesmos perguntam agora, aturdidos e indignados: «o que se passa?»

«É a (vossa) economia, estúpidos! O que é que não entendem nas reclamações que fazemos? – poderiam alguns, mais atentos e irónicos, cotejá-los na resposta. 

O que acontece é que as pessoas descobriram, por fim, que não têm futuro, ou que o futuro que lhes apresentam é tão mau ou pior do que o seu presente, já tão amargo.

Exigir, sempre mais e mais sacrifícios, deixou, por isso, de ter e fazer sentido
É isso que torna as pessoas incapazes de aguentar uma vez mais, e mais uma vez, que lhes espremam o já pouco que, ainda, têm.

Em Portugal, em França, em Espanha, em Itália, no Reino Unido, na própria Alemanha, em qualquer outro lado, as pessoas não querem mais ser os protagonistas passivos da anedota do inglês sovina que, economizando sempre mais e mais na comida do burro que possuía, ficou chocado quando ele morreu de fome, no preciso momento em que – para espanto do dono – já estava habituado a não comer. 

Os sacrifícios, que as pessoas ainda possam conceber sofrer, obrigam, em contrapartida, a uma promessa credível: a garantia de que, num futuro próximo e visível, algo vai mesmo mudar para melhor, desde logo para si e também para os seus filhos.

Ora, não é isso que as pessoas sentem que vai suceder desta vez, mais uma vez.
O que as leva a dizer, agora, que não aguentam mais é a antevisão, sem esperança, dos mesmos e repetidos cenários de contenção dos direitos mais fundamentais da vida humana: os que, como cantava com rara precisão, Sérgio Godinho, em 1974, se sintetizam em «o pão, a paz, habitação, saúde, educação».

Por exemplo, os salários dos mais jovens – mesmo dos doutorados, mestrados ou licenciados – não lhes permitem projetar uma vida decente: não pagam sequer a mais modesta das habitações dignas desse nome.

Depois, falta tudo o resto.

Durante os últimos tempos, desde, pelo menos, há duas décadas, na medida em que os pais estivessem vivos e conseguissem ajudar – albergando em casa os filhos e os netos – as coisas lá se iam aguentando.

Mas, e depois, quando as leis da vida se começaram a impor?
Ora, foi precisamente esse tempo de folga que os pais deram à economia que, em muitos casos, começa agora – com eles – a escassear e mesmo a acabar.

Por isso, a realidade da vida, tal como vivida neste regime dominado pelo discurso ideológico neoliberal, tornou-se, de repente, mais evidentemente sem saída.

O que sobra é uma vida bruta e bloqueada para uma grande parte das pessoas e, pior, das pessoas mais jovens.
A verdade é que o neoliberalismo – gostem ou não os seus defensores mais encarniçados, ou aqueles que, arrastados, com ele condescendem – é uma ideologia que prevê um programa específico de sociedade, não, como alguns julgam ou pretendem, a realidade verdadeira e definitiva das coisas.

Da porta da casa dos pais, começam, pois, a sair e juntar-se na rua – nessa rua crua e violenta que tantos temem – jovens das mais variadas gerações e condições, clamando pelas promessas não cumpridas e, afinal, nunca realmente pretendidas e concebidas pelos que gerem, de facto, a sociedade.

Era de há muito patente que, um dia, isso ia acontecer.

Mesmo assim, poucos quiseram ver, ou acreditar.

Hoje, nasce, sem ideologia precisa, uma verdadeira fúria contra o presente estado de coisas e contra aqueles que, com ele, estão de algum modo comprometidos.

O que tal fúria possa trazer, ainda ninguém sabe.

O maior perigo é que as manifestações dessa fúria não se direcionem e não sejam orientadas por um projeto racional, claro, atual e credível, capaz de solucionar, ou ao menos atenuar, os bloqueios e as injustiças que o neoliberalismo faz crescer todos os dias: um projeto imediato de solidariedade e respeito de uns para com os outros.

Os norte-americanos, que têm muitos defeitos, mas sempre souberam antecipar o que vem a seguir, de há muito que começaram a refletir no seu cinema os cenários apocalípticos de regressão civilizacional que os poderes de hoje estão a criar.

Há mais de uma década que fazem filmes sobre as grandes metrópoles ingovernáveis e as sociedades paralelas e marginais ao domínio das corporações económicas que, direta ou indiretamente, as gerem. 

Lembro-me, de repente, de um: «The Postman», dirigido por Kevin Costner. 

Mas outros há – e houve – bem mais explícitos e menos otimistas.

Não por acaso, o que nesse país se passa agora, não é já uma questão de confronto e divisão entre partidos com programas algo diferentes; o que ali acontece é, de facto, o início de uma rutura da ordem económica e social, até hoje estabelecida.

Sim, trata-se de uma rutura entre um mundo ainda assim (mal) ordenado pelo neoliberalismo clássico e um outro onde reinará já, sem máscara, um cada vez mais desbragado anarcoliberalismo liberticida.

Dele sobrevirá – para além do que já acontece – uma sociedade que rejeita tudo o que se traduza no bem comum, em que se defende um individualismo radical e desrespeita, pois, tudo o que de solidário ainda possa existir, nos programas e discursos hipócritas dos que ainda gerem a sociedade.

Será já o salve-se quem puder, sem, ao menos, o recurso às ajudas pontuais com que hoje se tenta disfarçar a permanente quebra de salários e de outros direitos sociais. 

O que se passa neste nosso mundo é o fim do que ainda resta de uma ordem que, em tempos, a social-democracia e a democracia cristã europeias do pós-guerra erigiram para amparar, como contraforte, o outro lado do mundo e do muro que o dividia.

Quando ele caiu num Outono de 1989, porque a firmeza do contraforte opositor degenerou e, por isso, se esboroou sem grande sobressalto, não aconteceu, como muitos acreditavam, um mundo com mais humanismo, justiça e segurança: antes, sobreveio um neoliberalismo vindicativo, mais desapiedado e brutal que, de resto, vinha sendo cozinhado e experimentado já, à vista de todos, por Reagan, Thatcher e Pinochet. 

Ao contraforte social-democrata e social-cristão aconteceu, então, o mesmo que ao outro: desabou.

O olvido constante, óbvio e chocante, do bem comum como valor orientador da governação que o neoliberalismo introduziu – escândalos, falências e corrupções, que passaram a governar, ou desgovernar, recorrentemente a vida de todos – só poderia, pois, acabar no que começa a ocorrer: numa revolta sempre mais violenta, mesmo que ainda sem objetivos definidos.

É por essa razão que os que querem, a todo o custo, manter a desumanizada sociedade que ajudaram a construir se encarniçam tanto contra o que dizem ser «o pensamento ideológico».

Temem que ele possa gerar uma nova mobilização em torno de uma alternativa real, mas diferente, da dogmática fantasiosa, que impuseram, e há anos perseguem e de que já nem sequer se dão conta que rege, realmente, todos os seus passos e os discursos.

Mas, uma alternativa fundada de novo num discurso político, racional, solidário e plausível é, precisamente, o que, ainda assim, de melhor poderia acontecer-lhes.

É a inconsideração do que verdadeiramente são e do que estão a criar que torna hoje os neoliberais – que, com as mais diversas roupagens, nos gerem – verdadeiramente perigosos, inclusive para os interesses que julgam defender.

As peripécias que – para desastre de todos e sobretudo dos mais fracos – continuam, por exemplo, a acontecer na banca nacional e internacional são disso um exemplo claro e um sinal de mau presságio.

A guerra que alastra e para a qual se vendem, compram e experimentam mais e mais novas e terríveis armas, e que se antevê, por isso, continuada e cruel, é outro sinal, também.

Sem um compromisso honesto, programado, verificável nos seus tempos e na concretização efetiva e que restitua esperança no recomeço de uma vida decente para a maioria das pessoas, o caminho que se abre aos democratas das mais diversas cores – que os há – apenas conduzirá ao abismo e ao derrube das democracias.

É que, ao contrário do que nos querem fazer crer, não há hoje uma guerra entre democracias e autocracias: o que há é uma disputa por mercados e matérias primas, que permitam aguentar uns tempos mais o sempre mais voraz regime de exploração que reina em todo o lado. 

Por isso, as democracias não desabarão imediatamente por efeito de revoltas justas, porventura violentas, mas inconsequentes, que irrompem em muitos lados; desabarão, para já, às mãos dos que friamente fomentaram as sucessivas crises, para melhor poderem usufruir dos privilégios de que sempre gozaram.