Trotinetes. A nova arma mortal?

Trotinetes. A nova arma mortal?


Lucas pensou que ia ficar desfigurado, Beatriz esteve mais de um mês com a boca fechada com ferros e parafusos, Catarina perdeu a vida. Os acidentes com trotinetes têm aumentado. Paris já as proibiu. Em Lisboa, a Câmara quer impor regras mais apertadas.


Eram duas da manhã do dia 30 de janeiro de 2022, quando Lucas, de 30 anos, saiu da discoteca Titanic, em Lisboa, rumo a casa. Como estava habituado a andar de trotinete e só tinha bebido três cervejas, decidiu optar pelo velocípede, ao invés de chamar um Uber. «Se soubesse o que ia acontecer a seguir, tinha feito uma escolha diferente», admite ao Nascer do SOL. Ao passar na ribeira das naus, entre o Cais e o Terreiro do Paço, caminho revestido por calçada escura, com falta de iluminação em algumas zonas, o jovem não reparou na falta de uma pedra e, sem dar conta, entalou a roda da frente do pavimento. «A roda da frente bloqueou e fui de cara ao chão». Lucas não sabe se foi do trauma da pancada, mas só se lembra da sensação de cair e da dor que veio a seguir. «Felizmente a memória protege-nos. Sei o que aconteceu por relatos. Fiquei lá deitado, sozinho, de madrugada, até que um taxista parou para me ajudar. Entrei no táxi e liguei para a minha namorada da altura», continuou. Segundo Lucas, ela nem reconheceu a sua voz.  «Fraturei o nariz, parti quatro dentes da frente, abri os lábios e fiquei com arranhões perto do olho. Não conseguia fechar a boca», explicou. 

Ao chegar a casa da namorada, juntamente com um amigo, levaram-no para o hospital São José, onde foi «mal-tratado». «Trataram-me como se eu fosse um negligente da rua, por mais que todos merecem respeito», desabafa. 

Na altura, tinha de estar de máscara para entrar no hospital. «Como devem imaginar, com a cara desfigurada, não conseguia colocar nada por cima. Não me queriam atender. Foi terrível. De manhã a minha namorada ligou para os meus pais que moram na Costa Vicentina, e eles vieram para Lisboa. Fiquei 12 horas no São José e eles nem o sangue da minha cara limparam. Deixaram-me encostado», lamentou. Acabou por ir para o privado. «Tinha que ser cozido até 6 horas depois do acidente, o que não fizeram no São José. Tive sorte porque, apesar de ter sido cozido quase 23 horas depois, calhou-me um grande cirurgião plástico. Passei mais duas noites no hospital e depois regressei para casa dos meus pais, para ter ajuda, durante um mês». Até hoje está a usar um aparelho porque dos quatro dentes da frente – que ainda são os seus dentes – um deles ficou pendurado, os outros saíram do lugar. 

Há cinco anos que as trotinetas fazem parte do mobiliário das ruas portuguesas, mais concretamente da capital, por mais que já se comecem a espalhar pelas outras grandes e pequenas cidades. Mas, ao que parece, os benefícios ambientais têm sido sobrepostos por despesas hospitalares já que este é apenas um dos milhares de casos que acontecem por ano em Portugal e que, segundo os dados, tendem a aumentar. 

No princípio desta semana, Paris avançou com um referendo às trotinetes. Foram os parisienses que decidiram que querem uma cidade sem este meio de transporte por motivos de segurança  e a autarquia vai aceitar, com a medida a ser implementada a partir de 31 de agosto.

Cada vez mais feridos 

Mas e em Lisboa? Filipe Anacoreta Correia, Vice-Presidente da Câmara Municipal da cidade, garante ao Nascer do SOL que, apesar dos mais recentes números que preocupama capital, esta não irá seguir o caminho de Paris. 

Segundo um estudo partilhado no dia 29 de março e realizado por Rosa Félix, Maurício Orozco-Fontalvo, Filipe Moura, do Instituto Superior Técnico, os custos socioeconómicos da sinistralidade superam os benefícios que esta forma de mobilidade traz atualmente a Lisboa, pintando um cenário assustador. 

«Este estudo surge de um protocolo de investigação realizado com a Câmara Municipal de Lisboa, e foi entregue em julho 2021, sendo agora publicado numa revista científica internacional», conta Rosa Félix ao Nascer do SOL. De acordo com a investigadora, a discussão sobre a quantificação dos custos e benefícios para a sociedade desta mobilidade partilhada era, e ainda é, algo que interessava medir, «para compreender quais os seus impactes socio-económicos e de que formas a cidade pode melhorar a regulamentação da operação destes veículos».

Em 2019, os acidentes envolvendo trotinetes elétricas disponibilizadas por plataformas partilhadas custaram cerca de 5 milhões de euros em despesas de saúde à capital, ou seja, «um valor 11 vezes maior que os benefícios ambientais e económicos gerados pela sua utilização».

A partir dos registos de 1,4 milhões de viagens em trotinetes partilhadas e de um inquérito a mais de 900 utilizadores, as conclusões surpreendem, apontando para um impacto socioeconómico largamente negativo do sistema partilhado de transporte, maioritariamente devido à sinistralidade que envolve quedas por desequilíbrio, irregularidades no pavimento, e eventualmente colisões com outros veículos. «Em 2022, o INEM transportou 6.280 feridos envolvendo trotinetas, bicicletas e skates (quase o triplo do valor em 2019)», apontou a investigadora. 

Segundo o estudo, o maior benefício ambiental destes velocípedes ocorre quando são «usados em alternativa ao automóvel». Dizem os dados de 2019, que foi o que aconteceu em 40% das viagens de trotinetas realizadas em Lisboa – houve, por isso, poupança ambiental estimada em 41 mil euros anuais. Trocar o carro pela trotinete partilhada também teve um benefício económico, na ordem dos 606 mil euros, já que optar por esta forma de mobilidade suave «acarreta menos custos diretos». Contudo, os especialistas, concluíram também que devido a vários fatores (como promoções), «apenas 10% das viagens realizadas nesse ano, tenha sido paga pelos utilizadores».

O cenário começa a ficar negro, quando chegamos ao nível social. De acordo com o estudo, em 2019, «ocorreram 57 colisões em Lisboa envolvendo trotinetas, que provocaram 41 feridos ligeiros e um grave». Somando as respetivas despesas de saúde e danos materiais, os investigadores estimaram um custo socioeconómico de cinco milhões de euros associado à sinistralidade neste meio de transporte (valor que ultrapassa de forma evidente os benefícios ambientais e económicos e que podia ter sido ainda mais elevado caso tivessem ocorrido mortes nesse ano, como aconteceu em três acidentes de 2021 e 2022).

De acordo com Rosa Félix, os custos societais da sinistralidade, «são custos que deverão ser mitigados com medidas para melhorar a condução dos seus utilizadores, regulamentação, e melhorias nos próprios veículos, para que os seus condutores circulem de forma mais segura. Relativamente aos dados de sinistralidade em trotinetas (que também se aplica a bicicletas), sabemos que muitos não são registados – muitas vezes porque não envolve comunicação a seguradoras -, o que dificulta uma correta estimativa destes custos», explica a especialista. Por outro lado, mesmo quando são registadas, «não nos é possível saber em que condições ocorreram, para poder mitigar as suas causas», lamenta. Para si, o registo numa plataforma colaborativa pelo próprio utilizador, ou uma ficha de caracterização estruturada e preenchida nos hospitais, «poderia apoiar a mitigação destes custos de sinistralidade».

As principais lesões 

Em fevereiro, o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central também anunciou que vai passar a ceder à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária dados detalhados dos utilizadores de velocípedes, como bicicletas e trotinetes, envolvidos em acidentes, para ajudar a desenvolver medidas de prevenção.

Segundo João Varandas Fernandes, diretor do Centro de Responsabilidade Integrada de Traumatologia Ortopédica do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, existe claramente um aumento dos números de acidentados e de traumatizados com lesões médias ou graves, das áreas músculo-esquelético, neurocirúrgica, plástica e reconstrutiva e maxilo-facial. Para si, a utilização destes meios de mobilidade traz «óbvias vantagens em tempo». «Como meio de mobilidade recente, com trotinetes,  de pouco dispêndio financeiro, é natural que atraia cada vez mais utilizadores». Porém, de acordo com o médico, para toda esta evolução, tem de existir uma atenção redobrada por parte das autoridades, como se tem verificado, pela regulamentação e pelo desenvolvimento de programas de formação e divulgação.

«No primeiro trimestre de 2023, temos como feridos: 122, resultante de trotinetes; 183, resultante de bicicletas; 27,  resultante de skate e 11, resultante de patins. Temos ainda um número apreciável de traumatismos, com origem não identificada», detalhou, acreditando que os números vão continuar a aumentar. 

Contava o Nascer do SOL em janeiro que, o INEM registou 6 280 feridos com trotinetes, bicicletas e skates em 2022, no ano anterior tinha transportado 3 251, enquanto em 2020 – ano marcado pelas restrições à circulação da pandemia – foram 2 642 feridos e em 2019 foram 2 265.

Em relação a 2021, os feridos de acidentes transportados pelo INEM aumentaram 93% em 2022. Dos 6 280 feridos transportados pelo INEM no ano passado, 4 254 eram ciclistas, 4 254 utilizadores de trotinetes e 335 de skates. Sobre os utilizadores de trotinetes, os acidentes aumentaram 78% no ano passado em relação a 2021, quando se registaram 946, voltando a descer em 2020 (367), enquanto em 2019 o INEM registou 577 feridos.

Segundo João Varandas, as lesões mais frequentes são «traumatismos simples ou complexos dos membros inferiores, nomeadamente joelhos, tornozelos e pés, traumatismos cranianos e faciais». E, quando se trata de lesões complexas, obviamente que a reabilitação é demorada, ultrapassando em várias situações clínicas os 6 meses.

Um momento traumático e fatal

Beatriz, de 27 anos, de Lisboa, viu-se numa dessas situações. No início de junho do ano passado, num sábado de madrugada ( sete da manhã), apanhou uma trotinete para fazer o resto do percurso para casa e, num cruzamento,  já na sua rua, ao arrancar para virar para a esquerda, na curva, a trotinete derrapou na linha do elétrico. «Fui literalmente de cara ao chão, o resto do corpo ficou intacto», conta ao Nascer do SOL. Beatriz partiu um dente, quebrou os dois lados da mandíbula, foi operada e esteve um mês e meio com a boca fechada com ferros e parafusos. «Estive esse tempo todo a comer de seringa e mais tarde palhinha, só líquidos, até estar recuperada da cirurgia, poder retirar os ferros todos e, muito devagar, voltar a tentar comer normalmente». A recuperação foi total. 

Quem pensa que esta realidade só está presente nas grandes cidades como Lisboa e Porto, está enganado. As trotinetes estão na moda e têm sido uma alternativa mais barata e ecológica para as pessoas que vivem em vilas ou pequenas cidades, como Vila Nova de Santo André, na Costa Vicentina, onde em maio do ano passado aconteceu uma tragédia. Ao contrário de Lucas e Beatriz, há quem não sobreviva à queda. 

Catarina tinha 33 anos e acabara de ser mãe há sete meses. Encontrava-se no seu bairro com um grupo de amigos, quando um deles apareceu com uma trotinete «grande e modificada». Cláudia, a sua irmã, não viu o acidente, mas os relatos de quem o presenciou, não lhe saem da cabeça: «Estavam todos a experimentar a trotinete no bairro, mas era uma trotinete alterada. Enquanto as normais andam até 30, esta andava até 120. A minha irmã, tinha um bebé com sete meses na altura e estava muito pesada, isso também influenciou», contou com a voz trémula. «Quis dar uma voltinha, deu o menino ao meu cunhado, mas como foi sem capacete, embateu na curva e nem teve reação, segundo o que o médico me disse», continuou. Segundo a irmã, Catarina deve ter perdido o controlo da velocidade por não conhecer a sensibilidade do veículo. «Caiu de cabeça e ficou logo em morte cerebral. Ficou logo cega, em estado vegetativo. A língua para fora, os olhos revirados…», lembra. Os médicos conseguiram reanimar a jovem, que esteve durante uma semana e meia em Lisboa. Porém, ao ser transferida para o Hospital de Santiago do Cacém, foi atacada por uma bactéria. «Mesmo que tivesse sobrevivido a isso, ficaria em estado vegetal para o resto da vida. Não ia ver, não se ia mexer. O médico referiu que estes acidentes acontecem aos pilotos de fórmula 1. O embate foi muito forte», reforçou Cláudia que, neste momento, não consegue ver ninguém a andar de trotinete.  

Para Mário Meireles, vice-presidente da Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta (FPCUB) convém sempre olhar para o panorama geral: «Em 2022 existiram cerca de 36 800 vítimas de sinistros rodoviários: 17% diz respeito a trotinetas, bicicletas e skates. Parece-me que nos estamos a focar no lado errado do problema, olhando para os números. Se olharmos para as vítimas mortais, ainda mais tenho a certeza que a prioridade para o problema tem que obrigatoriamente ser outra», defende.

De acordo com Mário Meireles, o desenho de rua, de avenida, de estrada que temos é um fator determinante na segurança rodoviária. «E essa deve ser a prioridade absoluta. Há, efetivamente, uma deficiente infraestrutura rodoviária para a utilização da trotinete», frisa, acrescentando que «fundamental é garantir que as ruas e avenidas têm espaços apropriados para que as deslocações sejam efetuadas em segurança, sem que fique em risco a integridade física do seu utilizador». «O resultado que hoje temos é a consequência de introduzirmos sistemas de trotinetas partilhadas em avenidas onde 80% do seu perfil é dedicado ao carro. Metemos o carro à frente dos bois. Primeiro devemos criar as condições para as pessoas andarem, e depois introduzir este tipo de sistemas. .

Regulação das trotinetes 

Mas as alterações já começaram a ser implementadas. Segundo Filipe Anacoreta Correia, uma das declarações que ouvimos em várias notícias sobre o que se dizia em vários lugares de Paris, é que o assunto das trotinetes não era regulado. «Nós estamos a tentar fazer um ponto prévio que é: chamámos os operadores e dissemos que isto estava a ficar insustentável. ‘Ou nós conseguimos regular isto e disciplinar, ou daqui a uns anos têm a cidade contra vocês!’, dissemos. Eles aceitaram. Ou seja, em primeiro lugar, reduzimos substancialmente o número de trotinetes: o máximo durante o inverno por operadora (são cinco) é 1500, ao todo 7500 trotinetes; e, no verão, 1750, ao todo 8750», lembrou o vice-presidente da CML.

Além disso, foram estabelecidas zonas de parqueamento, que ainda estão a ser implementadas. «A Câmara de Lisboa, ficou  de implementar as zonas por via tecnológica. Mais 1000 lugares de estacionamento para a mobilidade suave (trotinetes e bicicletas partilhadas).  As pessoas só podem pará-las no lugar assinalado», explicou. Para si, «ainda é cedo para fazer uma avaliação», porque a CML refez o mapa da cidade, mandou para os presidentes de junta propostas para esses parques e está a receber respostas. 

Os operadores aceitaram ainda reduzir a velocidade máxima para 20 km/h. «Nós queríamos 15, mas não tivemos acordo. Por isso, queremos implementar este acordo (temos reuniões mensais com os operadores). Se for necessário ter medidas mais restritivas, vamos ter.  Já não necessariamente de uma negociação ou acordo, mas através de um regulamento em que também estamos a trabalhar», alertou.  

De acordo com o vice-presidente, a CML arrancou com formações para o público mais novo, «para aprenderem regras de trânsito, utilização de trotinetes». «Temos duas escolas de trânsito e estamos a implementar cursos para as escolas com já centenas de alunos inscritos. Há sempre um lado que está relacionado com o civismo na utilização e a formação pode fazer diferença. Vamos ver», contou. 

A inspeção também foi reforçada. «A dada altura os operadores queixavam-se porque tinham muitas multas… Foram as instruções que demos à Polícia Municipal e à PSP. Mas há aqui um problema, enquanto nos carros temos matrículas, portanto multam aquele carro, aqui tem de se autuar por referência à hora e ao local. O operador é que tem de ir atrás do condutor. Não é demasiado. Tem de haver regras», defendeu. 

Interrogado sobre os números divulgados, Filipe Anacoreta Correia afirma que são «bastante impressionantes», mas que «não estão refletidos em estatísticas». «Porque os números que nós temos da PSP, são muito inferiores. De qualquer forma, se calhar são mais fidedignos porque há muita gente que não chama a Polícia», admitiu.   

«A situação tem de ser melhorada. Este acordo foi o primeiro passo. Foi também pioneiro ao envolvermos os operadores nisto. As coisas estão um bocado melhores do que o que estavam», defende. 

O Nascer do SOL procurou conhecer os números da PSP. Contudo, não recebeu nenhuma resposta até ao fecho da edição.