Putin, o imputado


Os planos de viagem do Presidente da Federação Russa passaram a estar limitados à pátria, aos territórios ocupados e aos Estados amigos que não queiram colaborar com o Tribunal Penal Internacional.


O mandado de detenção emitido na passada sexta-feira contra Vladimir Putin pelo II Juízo de Instrução do TPI preencheu várias horas da lusa televisão dita “de informação” com repetitivas intervenções dos opinadores contratados e residentes, quase todos sem qualquer formação jurídica, sendo poucos os cultores do direito penal internacional. Como ao mandado não se seguiu a detenção do imputado a televisão espectáculo deu o assunto por encerrado ao fim de algumas horas.

O mandado merece mais atenção, desde logo ao contexto em que surgiu – a investigação promovida pelo Procurador do TPI – mas também pelo conteúdo. Segundo o comunicado de imprensa do TPI Putin é “alegadamente responsável” pela prática de dois crimes de guerra, ao abrigo das Convenções de Genebra (que são costume internacional universal pelo que a Federação Russa está por elas obrigada independentemente do Estatuto do TPI): deportação ou transferência ilegal (sub-alínea vii da alínea a) do art. 8º do Estatuto) e “a deportação ou transferência da totalidade ou de parte da população do território ocupado, dentro ou para fora desse território” (sub-alínea viii da alínea b) do art. 8º do Estatuto). Segundo o mesmo comunicado o objecto da deportação e transferência ilegais seriam crianças ucranianas. Para assegurar a protecção das vítimas e testemunhas e preservar a investigação o comunicado remete para a decisão do Juízo de Instrução de qualificar como secretos os detalhes do mandado. A protecção das vítimas e testemunhas é expressamente referida pelo art. 81º das regras de processo e prova do TPI como justificando a confidencialidade.

A escolha dos tipos de crime terá sido feita com base na facilidade de prova (os deportados não se encontram no território ocupado) e por forma a fundar a competência do TPI na alínea a) do nº 2 do art. 12º do Estatuto (“Estado em cujo território tenha tido lugar a conduta em causa” e que – como aconteceu com a Ucrânia desde 21 de Novembro de 2013 – aceite a competência do TPI mesmo não sendo parte no Estatuto) nos casos em que exista uma denúncia ao Procurador feita por Estados parte no Estatuto (foram 43 a fazê-lo, incluindo Portugal) e/ou mediante um inquérito promovido pelo Procurador. A escolha dos crimes de guerra permite afastar as dificuldades inerentes ao crime de agressão porque a competência do TPI não inclui os actos de agressão praticados por nacionais dos Estados que (como é o caso da Federação Russa e da Ucrânia) não são partes no Estatuto de Roma ou em cujo território ocorreram.

No caso de Putin o mandado refere a alegada prática de crimes a título individual ou em conjunto ou por intermédio de outrem (art. 25º a) do Estatuto) e a responsabilidade criminal do superior hierárquico por não ter evitado a prática dos crimes (art. 28º b).

O Estatuto não permite julgamentos à revelia pelo que a execução do mandado implicará o recurso à cooperação judiciária internacional, prevista no Estatuto, ou uma mudança de titulares do poder em Moscovo ou uma inverosímil comparência voluntária de Putin. Em tese poder-se-á também admitir o exercício da competência penal por parte de um Estado não parte no Estatuto e que sancione a violação das Convenções de Genebra. Esta via pode corresponder a uma simulação de exercício de poder punitivo para garantir a Putin uma absolvição pelos crimes identificados no mandado do TPI e o benefício do princípio ne bis in idem, acolhido pelo art. 20º do Estatuto.

A cooperação internacional deve ser feita com base na irrelevância da imunidade associada aos chefes de Estado e de Governo, expressamente prevista no art. 27º do Estatuto. Omar Al-Bashir, então Presidente do Sudão, foi destinatário de um mandado de detenção emitido pelo TPI em 4 de Março de 2009. O mandado continua por executar e Al-Bashir, defenestrado em Setembro de 2019 por um golpe militar, teve o cuidado de visitar Estados sem vontade colaborarem com o TPI.

 

Putin, o imputado


Os planos de viagem do Presidente da Federação Russa passaram a estar limitados à pátria, aos territórios ocupados e aos Estados amigos que não queiram colaborar com o Tribunal Penal Internacional.


O mandado de detenção emitido na passada sexta-feira contra Vladimir Putin pelo II Juízo de Instrução do TPI preencheu várias horas da lusa televisão dita “de informação” com repetitivas intervenções dos opinadores contratados e residentes, quase todos sem qualquer formação jurídica, sendo poucos os cultores do direito penal internacional. Como ao mandado não se seguiu a detenção do imputado a televisão espectáculo deu o assunto por encerrado ao fim de algumas horas.

O mandado merece mais atenção, desde logo ao contexto em que surgiu – a investigação promovida pelo Procurador do TPI – mas também pelo conteúdo. Segundo o comunicado de imprensa do TPI Putin é “alegadamente responsável” pela prática de dois crimes de guerra, ao abrigo das Convenções de Genebra (que são costume internacional universal pelo que a Federação Russa está por elas obrigada independentemente do Estatuto do TPI): deportação ou transferência ilegal (sub-alínea vii da alínea a) do art. 8º do Estatuto) e “a deportação ou transferência da totalidade ou de parte da população do território ocupado, dentro ou para fora desse território” (sub-alínea viii da alínea b) do art. 8º do Estatuto). Segundo o mesmo comunicado o objecto da deportação e transferência ilegais seriam crianças ucranianas. Para assegurar a protecção das vítimas e testemunhas e preservar a investigação o comunicado remete para a decisão do Juízo de Instrução de qualificar como secretos os detalhes do mandado. A protecção das vítimas e testemunhas é expressamente referida pelo art. 81º das regras de processo e prova do TPI como justificando a confidencialidade.

A escolha dos tipos de crime terá sido feita com base na facilidade de prova (os deportados não se encontram no território ocupado) e por forma a fundar a competência do TPI na alínea a) do nº 2 do art. 12º do Estatuto (“Estado em cujo território tenha tido lugar a conduta em causa” e que – como aconteceu com a Ucrânia desde 21 de Novembro de 2013 – aceite a competência do TPI mesmo não sendo parte no Estatuto) nos casos em que exista uma denúncia ao Procurador feita por Estados parte no Estatuto (foram 43 a fazê-lo, incluindo Portugal) e/ou mediante um inquérito promovido pelo Procurador. A escolha dos crimes de guerra permite afastar as dificuldades inerentes ao crime de agressão porque a competência do TPI não inclui os actos de agressão praticados por nacionais dos Estados que (como é o caso da Federação Russa e da Ucrânia) não são partes no Estatuto de Roma ou em cujo território ocorreram.

No caso de Putin o mandado refere a alegada prática de crimes a título individual ou em conjunto ou por intermédio de outrem (art. 25º a) do Estatuto) e a responsabilidade criminal do superior hierárquico por não ter evitado a prática dos crimes (art. 28º b).

O Estatuto não permite julgamentos à revelia pelo que a execução do mandado implicará o recurso à cooperação judiciária internacional, prevista no Estatuto, ou uma mudança de titulares do poder em Moscovo ou uma inverosímil comparência voluntária de Putin. Em tese poder-se-á também admitir o exercício da competência penal por parte de um Estado não parte no Estatuto e que sancione a violação das Convenções de Genebra. Esta via pode corresponder a uma simulação de exercício de poder punitivo para garantir a Putin uma absolvição pelos crimes identificados no mandado do TPI e o benefício do princípio ne bis in idem, acolhido pelo art. 20º do Estatuto.

A cooperação internacional deve ser feita com base na irrelevância da imunidade associada aos chefes de Estado e de Governo, expressamente prevista no art. 27º do Estatuto. Omar Al-Bashir, então Presidente do Sudão, foi destinatário de um mandado de detenção emitido pelo TPI em 4 de Março de 2009. O mandado continua por executar e Al-Bashir, defenestrado em Setembro de 2019 por um golpe militar, teve o cuidado de visitar Estados sem vontade colaborarem com o TPI.