O telefone dos mortos


É-me sempre difícil apagar do telemóvel os números das pessoas que morreram. E, no entanto, são já tantos os mortos que carrego seja na minha memória seja na memória do aparelho.


É-me sempre difícil apagar do telemóvel os números das pessoas que morreram. E, no entanto, são já tantos os mortos que carrego seja na minha memória seja na memória do aparelho. Sinceramente não sei como explicar devidamente esta relutância até porque as pessoas mudam várias vezes de número conforme vão passando de umas operadoras para as outras e admito que deixando um número vago ele possa passar para outrem o que me faz correr o risco de, num momento qualquer, receber a chamada de um defunto, ou melhor, do número de um defunto a ser utilizado por alguém mais saudável, se é que posso expressar-me assim. Talvez seja pelo conforto que dá continuar de linha aberta para com aqueles que do outro lado só responderiam com silêncio se me decidisse ligar-lhes. Confesso: tal ideia nunca tive, tal como nunca passou pela cabeça de Mário de Sá Carneiro mudar a corda esgaçada da criança que se balouçava sobre um poço. Sim. “Mais vale morrer de bibe do que de gravata!”. Tenho o mesmo número de telemóvel desde 1996 o que faz com que o sinta como realmente meu. Somos companheiros de muitas conversas com muita gente, embora ele apenas como veículo delas. Quando chego à palavra P da lista telefónica o primeiro nome que encontro é Pai. Tenho um dor cá dentro tão fininha como se me tivessem rasgado o coração com a lâmina das saudades quando em cima da uma e meia da tarde o meu telefone tocava e ouvia a sua voz meio trocista a afirmar: “Ainda estavas a dormir…”. Para mim, que vivo de madrugada e não me deito antes das três ou quatro da manhã, era como se um carinho desembaciasse a janela do meu dia. Deixei o meu pai morto em Águeda, em setembro. Deixei o telemóvel dele, também morto, em Águeda, na gaveta da mesa da televisão. Talvez um dia ligue e ele me atenda. E faça com que esta dor no peito que me impede de respirar voe para longe como um pássaro sem destino e sem regresso.

 

O telefone dos mortos


É-me sempre difícil apagar do telemóvel os números das pessoas que morreram. E, no entanto, são já tantos os mortos que carrego seja na minha memória seja na memória do aparelho.


É-me sempre difícil apagar do telemóvel os números das pessoas que morreram. E, no entanto, são já tantos os mortos que carrego seja na minha memória seja na memória do aparelho. Sinceramente não sei como explicar devidamente esta relutância até porque as pessoas mudam várias vezes de número conforme vão passando de umas operadoras para as outras e admito que deixando um número vago ele possa passar para outrem o que me faz correr o risco de, num momento qualquer, receber a chamada de um defunto, ou melhor, do número de um defunto a ser utilizado por alguém mais saudável, se é que posso expressar-me assim. Talvez seja pelo conforto que dá continuar de linha aberta para com aqueles que do outro lado só responderiam com silêncio se me decidisse ligar-lhes. Confesso: tal ideia nunca tive, tal como nunca passou pela cabeça de Mário de Sá Carneiro mudar a corda esgaçada da criança que se balouçava sobre um poço. Sim. “Mais vale morrer de bibe do que de gravata!”. Tenho o mesmo número de telemóvel desde 1996 o que faz com que o sinta como realmente meu. Somos companheiros de muitas conversas com muita gente, embora ele apenas como veículo delas. Quando chego à palavra P da lista telefónica o primeiro nome que encontro é Pai. Tenho um dor cá dentro tão fininha como se me tivessem rasgado o coração com a lâmina das saudades quando em cima da uma e meia da tarde o meu telefone tocava e ouvia a sua voz meio trocista a afirmar: “Ainda estavas a dormir…”. Para mim, que vivo de madrugada e não me deito antes das três ou quatro da manhã, era como se um carinho desembaciasse a janela do meu dia. Deixei o meu pai morto em Águeda, em setembro. Deixei o telemóvel dele, também morto, em Águeda, na gaveta da mesa da televisão. Talvez um dia ligue e ele me atenda. E faça com que esta dor no peito que me impede de respirar voe para longe como um pássaro sem destino e sem regresso.