O acervo do legado familiar, de valores e ações, no recato individual, na vida comunitária e nos rumos do país, pode ser um insuperável peso de responsabilidade para os sucessores, remetendo-os para esse passado, sem capacidade para viver o presente e projetar o futuro.
O Tó Freitas, para os mais próximos, o Custódio João conseguiu superar esse enorme acervo de valores e de ação de um legado familiar rico, marcante de republicanismo, de humanismo e de compromissos com os outros, para ser muito mais que a sua circunstância.
Ser maior que a circunstância é uma arte ao alcance de poucos, ainda mais quando se carrega um legado familiar com a riqueza dos valores, da intervenção cívica e da ação concreta na transformação das realidades, que constitui matéria rara nos nossos quotidianos.
Talvez porque esse legado em vez de fardo fosse inspiração para ser melhor que a vulgaridade de muitos quotidianos.
Talvez porque esse passado, de memórias, ensinamentos e realidades vividas e transmitidas fossem relevantes para o que enfrentamos todos os dias e o que queremos para o futuro, num tempo em que amiúde se descarta a sabedoria das memórias vividas e do curso da história, quantas vezes com natureza cíclica.
Talvez porque a vida se tivesse formatado em missão, em cimento de tantas realidades dispersas e em toque positivo de tantas vivências, em tantas paragens e no impulso da palavra e da ação.
Talvez por tudo isso e muito mais, a circunstância de Ortega y Gasset foi superada.
A palavra, essa companheira mágica de uma vida cheia de experiências, de histórias e de pequenas grandes concretizações, pelo seu poder transformador e inspirador, projetava-se com a entusiasmante cadência de quem não a deixava retida na vivência individual verbalizando-a para a partilha universalizante. Estava ali, ao alcance dos familiares, dos amigos, dos próximos e dos de circunstância, para os enriquecer, despertar ou instigar à procura de mais conhecimento sobre a história e as estórias contadas, a geografia, as marcas da nossa identidade, a gastronomia e tudo o que pudesse ser relevante para sermos melhor do que somos, porque mais completos no saber e no humanismo, que é suposto serem pressupostos de civilização.
Um Ser maior na palavra, nas histórias e no conhecimento que a propósito de qualquer tema jorravam saber num encadeamento encantatório, misto de aula e reconfortante ensejo de enriquecimento para quem o ouvia. Com ele tive, pela segunda vez na vida (a primeira foi em Abrantes com a mãe da D. Generosa Marques), a sensação de ouvir coisas únicas, a noção de um acervo de história e sabedoria que merecia ser perpetuado para futuro, pela riqueza e densidade dos conteúdos, como agora os gostamos de rotular. A conversa, as conversas ou as histórias, porque existia espaço para ouvir e para retorquir, eram sempre momento especiais, uma espécie de diálogo enciclopédico, sem páginas de papel, mas com muitos volumes de virares de páginas encadeados. O Tó Freitas era um encantador de histórias, vividas, ricas, absorvidas do conhecimento e dos conhecimentos, sempre com um sinal de pendor positivo, tocante e inspirador. Humanista, maçom, sábio, político, construtor de realidades, guardião de memórias, comprometido com a vivência da vida e cidadão praticante, conjugava a grandeza desse acervo de saber apreendido e vivido com a expressão das coisas simples. Era verdadeiramente grande na palavra e na ação.
Um Ser maior na ação, um conciliador dos valores com a ação, em obediência a esses padrões de princípios humanistas e republicanos, além das circunstâncias, num daqueles cimentos das relações humanas e das dinâmicas das comunidades que, não sendo evidentes na volatilidade dos nossos dias, se constituíam em fator de perenidade e sustentabilidade do funcionamento da sociedade, desde logo nas Caldas da Rainha, em Peniche, de onde era natural, e nos universos que integrava. Num tempo de deslaço social de muitas comunidades, além das intervenções institucionais, é desta coerência, deste sentido de soma das partes, com humanismo, solidariedade e sentido de coesão, que precisamos. Verdadeiramente, só a real atenção ao outro, nos permite ser ainda maiores do que o acervo de saber e vivências que acumulamos. O Tó Freitas sabia-o e praticava, de forma discreta, sustentada, humanista e solidária, tocando positivamente muita gente e muitas dinâmicas individuais e comunitárias.
Há sempre vazio e défice, quando a presença é substituída pela memória dos afetos, da sabedoria intensa e dos bons momentos de despertar para a missão individual e comunitária de sermos mais do que a circunstância, a correria do dia-a-dia e a afirmação de interesses parciais. Esse legado tocante, inspirador e perene soma ao enorme acervo humanista, republicano e de compromisso com as realidades das Caldas da Rainha, do Oeste e do país da família Maldonado Freitas. É uma espécie de reserva de abrigo à qual podemos recorrer para procurar sentido quando o quotidiano nos interpelar com derivas antidemocráticas, faltas de sentido de Estado, ausência de ética republicana e outros desmandos da política e do funcionamento da sociedade portuguesa. É um acervo da família que partilhamos como comunidade caldense e cidadãos com a ambição de viver num país melhor, mais humanista, solidário, igual e desenvolvido. Num tempo volátil e confuso, as referências são fundamentais para a manutenção de patamares mínimos de compromisso individual e comunitário com os valores e princípios que nunca deveriam ser abocanhados em democracia, depois de quase 50 anos de vivência democrática.
Há valores, direitos, deveres, liberdades e garantias que são sempre mais que a circunstância ou os desvios.
Há sempre espaço para contarmos com a memória e a inspiração dos Seres maiores que nos vão formatando, modelando e interpelando para a importância de irmos mais além do mundano, do corrente e da correria em que se transformaram as nossas vidas, mais de sobrevivência do que de vivências.
O Tó Freitas era o esplendor das vivências com valores, humanismo e sentido de compromisso com o outro como parte do todo. Era e, de certa forma, continuará a ser. Nenhum vazio é permitido a um Ser maior, porque nenhum vazio foi permitido no que pudemos viver em conjunto. Tocado e tolhido pela sua personalidade, por proximidade à família e privilégio do convívio, só agora deixei a referência ao Senhor Custódio da terceira pessoa, nunca presente nos momentos de encadeamento de histórias, para me alojar na simplicidade do Tó Freitas, diferenciador em relação ao legado da família Maldonado.
Preenchidos pelo que nos foi dado viver e conviver, somos instados a prosseguir para o amanhã e o futuro como ele deve ser, com valores, humanismo, ética republicana e respeito pelo outro que é parte do todo. Sem o encadear de histórias, continuaremos cá a viver o presente e a construir novos futuros, entre a memória e a missão.
Obrigado, Custódio João Maldonado Freitas! Obrigado, Tó Freitas!