A propósito de um livro de Bernhard Schlink, ainda não publicado em Portugal


O que no livro se relata é a incapacidade de uns e outros «alemães» se compreenderem e aceitarem num plano de igualdade, enquanto povo (povos?) já com culturas diferentes.


«As conversas são como as cerejas» costuma dizer-se e, no grupo de amigos a que me referi no texto da semana passada, elas têm por costume crescer e alongar-se pela noite dentro, até esgotar, não direi os temas que nos preocupam, mas, pelo menos, a nossa capacidade de não adormecer: e que, com a idade da maioria, parece cada vez mais reduzida.

Nada, pois, de mais razoável do que, esgotada a dissertação sobre o tema dos jornais e da comunicação social, termos começado a falar de livros.

Alguns de nós confessaram, então, não lerem já livros de ficção, limitando-se a ler e estudar, agora, ensaios sobre as mais distintas matérias, mas, em princípio, maioritariamente dedicados às ciências ditas naturais.

A desilusão com as ciências humanas e a sua incapacidade para estas, por si sós, ajudarem a mudar o mundo levou alguns dos presentes a desistirem do que, durante muito tempo, fora a sua leitura preferida.

Alguns confessaram, entre risos, que, antes, acreditaram mesmo que algumas obras políticas, de sociologia, de história, de direito e de economia política tinham o condão de, por si, mobilizar vontades e, com elas, as pessoas que queriam mudar o mundo.

Eu, pelo contrário, tive de convir, à revelia da tendência geral, que apesar do interesse de algumas dessas obras, sempre acreditei que, como afirmava o velho timoneiro, «é da prática que vêm as ideias corretas»; o que suscitou ainda mais risos e sarcasmos.

Na verdade, muitos desses velhos amigos, ali reunidos – agora já de noite e à volta de uns bons copos -, há muito que não participavam, ativa e pessoalmente, em nenhuma movimentação política ou social digna desse nome.

Limitavam-se, agora, a reler os livros que os inspiraram um dia ou que, mais recentes, refutavam – para bem das suas consciências – as ideias que, quando mais novos, os haviam movido com generosidade e coragem.

Por ser verdade, acrescentei que, politicamente, sempre me moveram mais os livros de ficção do que os manuais de ciência política, qualquer que fosse a sua orientação.

Aproveitei, de seguida, por isso, para lhes falar de um romance que estava a ler em francês: «La petite fille» de Bernhard Schlink.

Acrescentei, para esclarecimento dos mais entrosados em línguas estrangeiras que, no original, em alemão, o livro se chamava «Die Enkelin».

Em português – mas ainda não traduzido e editado – talvez venha ser «A neta», como na Alemanha.

Tentei, então – apesar da dificuldade de, a essa hora, prender ainda a atenção da audiência – dar uma ideia da problemática do livro.

Quanto ao autor, todos o conheciam, pelo menos do livro e do magnífico filme, nele baseado, «O Leitor».

Mais do que do enredo da obra, salientei o plano de fundo em que a estória das personagens se desenrolava: a razão de ser do nascimento dos movimentos de jovens ultradireitistas e, mesmo, neonazis, no território do que fora, em tempos, a RDA.

O narrador da estória, um social-democrata de esquerda, vai-nos dando, ao longo do romance, conta das suas conjeturas e descobertas sobre as supostas razões da adesão de muitos jovens, e dececionados, da extinta RDA a tais movimentos.

Fá-lo, empenhado que está em poder rebater tais razões, junto de uma jovem que ele adotara como «neta» e que provinha, já em segunda geração, dessa renovada cultura nacionalista, explorada pelos bandos ultradireitistas.

Da estória do livro, não vou falar mais, até para não retirar o interesse de futuros leitores.

Direi, contudo, que o que me impressionou – embora já tivesse lido sobre o assunto – foi a forma como o autor descreve o sentimento de orfandade que afetou muitos dos cidadãos daquele extinto país.

Na verdade, para ser mais correto, o que no livro se relata é a incapacidade de uns e outros «alemães» se compreenderem e aceitarem num plano de igualdade e respeito enquanto povo (povos?) já com culturas diferentes: uma mais individualista, outra, ainda, essencialmente comunitária.

Resulta do livro que muitos dos cidadãos da extinta RDA haviam, mesmo que contestando o seu anterior regime, desenvolvido, entretanto, uma cultura própria – também ela alemã – que se não identificava, em muitos aspetos, com os valores e modo de vida dos alemães de Oeste.

Uma cultura que valorizava mais a noção de pertença do que a capacidade para deter mais, e sempre mais, bens materiais.

Mas foi este último modo de vida que, após a reunificação, os alemães de Oeste quiseram impor – e conseguiram – como a cultura alemã real.

Daí o sentimento de desamparo e a procura – no lado contrário do espectro político – de valores mais comunitários e menos individualistas, por parte de muitos jovens da extinta RDA.

Tendo, muitos deles, aspirado por uma reunificação da Alemanha – das «alemanhas» – viram, depois, amputada e desvalorizada, sem condescendência alguma, a sua maneira de viver e de se sentirem alemães.

Por isso, mais do que integrados, sentiram-se anexados e, como tal, vencidos e vexados.

O romance de Schlink traduz, pois, esta procura da razão de ser desse desenraizamento e vazio dos jovens alemães de Leste e das consequências políticas que ele provocou.

O narrador – o próprio autor – não se limitou, porém, a criticar e apostrofar os jovens desenraizados, que desprovidos já da ideia e da teia social de suporte que, antes, os amparavam, uniam e motivavam, viram nas ideologias e forças de extrema-direita uma forma de voltar a afirmar uma certa identidade nacional e vingar, assim, os aviltamentos que sofreram.

Uma identidade própria – mesmo que ficcionada – que acreditavam ser a sua e que os ajudava a viver, sem mais humilhações, no seu novo país.

O narrador procurou, antes, entender e, de alguma maneira, aceitar – não o neonazismo, que sempre repudiou – mas a urgência dessa outra maneira de querer viver em conjunto e com uma motivação comum, que não se reduzisse ao sucesso individual. 

Se, por causa da sua história, a situação alemã é muito específica, muito do que ali se passa – mesmo que com outro discurso e outra vestimenta ideológica – reproduz-se em outras partes da Europa e do mundo.

Daí, também, o interesse mais geral do livro.

O individualismo radical, que os liberais consideram ser, hoje, um acquis da democracia, parece, pois, não colar bem com a necessidade que os homens têm, igualmente, de viver e se sentir envolvidos numa comunidade solidária e orientada para um mesmo destino.

O problema que daí resulta situa-se, porém, na definição desse destino.

A história tem ilustrado suficientemente, mesmo que de diversas formas e algumas bem perversas, como, para tanto, é mais fácil reconhecer um inimigo comum – uma raça, uma cor, um povo, uma cultura, uma religião, uma ideologia política – do que identificar um objetivo generoso e pacífico que a todos, ou quase, possa congregar.

 

 

 

A propósito de um livro de Bernhard Schlink, ainda não publicado em Portugal


O que no livro se relata é a incapacidade de uns e outros «alemães» se compreenderem e aceitarem num plano de igualdade, enquanto povo (povos?) já com culturas diferentes.


«As conversas são como as cerejas» costuma dizer-se e, no grupo de amigos a que me referi no texto da semana passada, elas têm por costume crescer e alongar-se pela noite dentro, até esgotar, não direi os temas que nos preocupam, mas, pelo menos, a nossa capacidade de não adormecer: e que, com a idade da maioria, parece cada vez mais reduzida.

Nada, pois, de mais razoável do que, esgotada a dissertação sobre o tema dos jornais e da comunicação social, termos começado a falar de livros.

Alguns de nós confessaram, então, não lerem já livros de ficção, limitando-se a ler e estudar, agora, ensaios sobre as mais distintas matérias, mas, em princípio, maioritariamente dedicados às ciências ditas naturais.

A desilusão com as ciências humanas e a sua incapacidade para estas, por si sós, ajudarem a mudar o mundo levou alguns dos presentes a desistirem do que, durante muito tempo, fora a sua leitura preferida.

Alguns confessaram, entre risos, que, antes, acreditaram mesmo que algumas obras políticas, de sociologia, de história, de direito e de economia política tinham o condão de, por si, mobilizar vontades e, com elas, as pessoas que queriam mudar o mundo.

Eu, pelo contrário, tive de convir, à revelia da tendência geral, que apesar do interesse de algumas dessas obras, sempre acreditei que, como afirmava o velho timoneiro, «é da prática que vêm as ideias corretas»; o que suscitou ainda mais risos e sarcasmos.

Na verdade, muitos desses velhos amigos, ali reunidos – agora já de noite e à volta de uns bons copos -, há muito que não participavam, ativa e pessoalmente, em nenhuma movimentação política ou social digna desse nome.

Limitavam-se, agora, a reler os livros que os inspiraram um dia ou que, mais recentes, refutavam – para bem das suas consciências – as ideias que, quando mais novos, os haviam movido com generosidade e coragem.

Por ser verdade, acrescentei que, politicamente, sempre me moveram mais os livros de ficção do que os manuais de ciência política, qualquer que fosse a sua orientação.

Aproveitei, de seguida, por isso, para lhes falar de um romance que estava a ler em francês: «La petite fille» de Bernhard Schlink.

Acrescentei, para esclarecimento dos mais entrosados em línguas estrangeiras que, no original, em alemão, o livro se chamava «Die Enkelin».

Em português – mas ainda não traduzido e editado – talvez venha ser «A neta», como na Alemanha.

Tentei, então – apesar da dificuldade de, a essa hora, prender ainda a atenção da audiência – dar uma ideia da problemática do livro.

Quanto ao autor, todos o conheciam, pelo menos do livro e do magnífico filme, nele baseado, «O Leitor».

Mais do que do enredo da obra, salientei o plano de fundo em que a estória das personagens se desenrolava: a razão de ser do nascimento dos movimentos de jovens ultradireitistas e, mesmo, neonazis, no território do que fora, em tempos, a RDA.

O narrador da estória, um social-democrata de esquerda, vai-nos dando, ao longo do romance, conta das suas conjeturas e descobertas sobre as supostas razões da adesão de muitos jovens, e dececionados, da extinta RDA a tais movimentos.

Fá-lo, empenhado que está em poder rebater tais razões, junto de uma jovem que ele adotara como «neta» e que provinha, já em segunda geração, dessa renovada cultura nacionalista, explorada pelos bandos ultradireitistas.

Da estória do livro, não vou falar mais, até para não retirar o interesse de futuros leitores.

Direi, contudo, que o que me impressionou – embora já tivesse lido sobre o assunto – foi a forma como o autor descreve o sentimento de orfandade que afetou muitos dos cidadãos daquele extinto país.

Na verdade, para ser mais correto, o que no livro se relata é a incapacidade de uns e outros «alemães» se compreenderem e aceitarem num plano de igualdade e respeito enquanto povo (povos?) já com culturas diferentes: uma mais individualista, outra, ainda, essencialmente comunitária.

Resulta do livro que muitos dos cidadãos da extinta RDA haviam, mesmo que contestando o seu anterior regime, desenvolvido, entretanto, uma cultura própria – também ela alemã – que se não identificava, em muitos aspetos, com os valores e modo de vida dos alemães de Oeste.

Uma cultura que valorizava mais a noção de pertença do que a capacidade para deter mais, e sempre mais, bens materiais.

Mas foi este último modo de vida que, após a reunificação, os alemães de Oeste quiseram impor – e conseguiram – como a cultura alemã real.

Daí o sentimento de desamparo e a procura – no lado contrário do espectro político – de valores mais comunitários e menos individualistas, por parte de muitos jovens da extinta RDA.

Tendo, muitos deles, aspirado por uma reunificação da Alemanha – das «alemanhas» – viram, depois, amputada e desvalorizada, sem condescendência alguma, a sua maneira de viver e de se sentirem alemães.

Por isso, mais do que integrados, sentiram-se anexados e, como tal, vencidos e vexados.

O romance de Schlink traduz, pois, esta procura da razão de ser desse desenraizamento e vazio dos jovens alemães de Leste e das consequências políticas que ele provocou.

O narrador – o próprio autor – não se limitou, porém, a criticar e apostrofar os jovens desenraizados, que desprovidos já da ideia e da teia social de suporte que, antes, os amparavam, uniam e motivavam, viram nas ideologias e forças de extrema-direita uma forma de voltar a afirmar uma certa identidade nacional e vingar, assim, os aviltamentos que sofreram.

Uma identidade própria – mesmo que ficcionada – que acreditavam ser a sua e que os ajudava a viver, sem mais humilhações, no seu novo país.

O narrador procurou, antes, entender e, de alguma maneira, aceitar – não o neonazismo, que sempre repudiou – mas a urgência dessa outra maneira de querer viver em conjunto e com uma motivação comum, que não se reduzisse ao sucesso individual. 

Se, por causa da sua história, a situação alemã é muito específica, muito do que ali se passa – mesmo que com outro discurso e outra vestimenta ideológica – reproduz-se em outras partes da Europa e do mundo.

Daí, também, o interesse mais geral do livro.

O individualismo radical, que os liberais consideram ser, hoje, um acquis da democracia, parece, pois, não colar bem com a necessidade que os homens têm, igualmente, de viver e se sentir envolvidos numa comunidade solidária e orientada para um mesmo destino.

O problema que daí resulta situa-se, porém, na definição desse destino.

A história tem ilustrado suficientemente, mesmo que de diversas formas e algumas bem perversas, como, para tanto, é mais fácil reconhecer um inimigo comum – uma raça, uma cor, um povo, uma cultura, uma religião, uma ideologia política – do que identificar um objetivo generoso e pacífico que a todos, ou quase, possa congregar.