Irão-Arábia. China garante acordo histórico

Irão-Arábia. China garante acordo histórico


Após sete anos de tensões entre Irão e Arábia Saudita, o acordo foi finalmente fechado em Pequim.


Depois de sete anos de tensões, o Irão e a Arábia Saudita restabeleceram relações diplomáticas, num processo de diálogo mediado pela China que culminou com quatro dias de negociações em Pequim. Os esforços de aproximação começaram em 2021, inicialmente com a mediação do Iraque e do Omã.

 Segundo o comunicado assinado agora pelas três partes, o acordo assenta na «afirmação do respeito pela soberania dos Estados e na não interferência nos seus assuntos internos» e prevê o aprofundamento das relações bilaterais entre Teerão e Riade, incluindo a reabertura de embaixadas e missões diplomáticas até maio, e a implementação de um acordo de cooperação na área da segurança assinado em 2001, e de um acordo nos domínios do comércio, investimento, tecnologia e cultura, assinado em 1998. 

Os dois países estão separados por uma clivagem de natureza religiosa, opondo xiitas e sunitas numa competição por reconhecimento e liderança do mundo islâmico. Tendo-se tornado relevante depois da Revolução iraniana de 1979, a divisão tem contribuído para determinar a geometria de alianças na região. As relações entre as duas potências regionais deterioraram-se acentuadamente a partir de 2016, quando cidadãos em protesto invadiram a embaixada saudita em Teerão, na sequência da execução do clérigo xiita Nimr al-Nimr.

Esta rivalidade também se materializou em conflitos por procuração, como no Iémen, onde a Arábia Saudita integra a coligação de apoio ao regime e os rebeldes xiitas houthi têm contado com o apoio do Irão; ou na Síria, onde Riade apoia os rebeldes, e Teerão o regime de Bashar al-Assad. Os ataques a infraestruturas petrolíferas sauditas perpetrados por rebeldes houthis e alegadamente patrocinados por Teerão contribuíram para o agravamento das relações entre os dois países.

Repercussões na região

Apesar deste ser um acordo frágil, visando reconciliar dois países separados por uma clivagem de 14 séculos, assente em diferenças religiosas que têm consequências políticas, é esperado que tenha repercussões importantes, aumentando as perspetivas de estabilização no Médio Oriente. Mas se o acordo foi recebido com entusiasmo numa região fustigada pela instabilidade, o facto de ter sido mediado por Pequim significa que os seus efeitos far-se-ão sentir para lá do Médio Oriente.

Em dezembro de 2022, o Presidente Xi Jinping foi recebido em Riade com pompa e circunstância, numa cerimónia que contrastou com a receção menos calorosa feita a Joe Biden em julho. Durante a visita, o Presidente chinês descreveu a Arábia Saudita como um «parceiro estratégico» da China, e uma força «chave» e «independente» num mundo multipolar. Na política externa, como em toda a política, os símbolos importam. E Biden, recebido de forma austera, falharia os dois objetivos da visita: convencer Riade a aumentar a produção de petróleo e a estabelecer uma aliança de defesa aérea com Israel. 

Apesar da abertura do espaço aéreo saudita a Israel, as relações diplomáticas entre os dois países não foram normalizadas e, em outubro, a OPEC e os seus aliados (incluindo a Rússia) anunciaram a intenção de reduzir a produção de petróleo. 

No seu discurso em Jeddah, Joe Biden assegurou que os Estados Unidos não iriam abandonar a região, deixando assim um vazio a ser preenchido pela China, a Rússia ou o Irão. 

No atual contexto global de competição sistémica entre os Estados Unidos e a China, e pelos esforços de adaptação dos restantes atores do sistema internacional, a mediação de Pequim neste acordo indica que Washington está a falhar um objetivo importante. 

A aproximação abala o eixo Estados Unidos-Israel-Arábia Saudita que, durante décadas, determinou a geopolítica da região a partir do acordo implícito entre sucessivas administrações norte-americanas e a Casa de Saud, segundo o qual Washington garantia armamento e segurança a Riade, e Riade comprometia-se a manter-se um aliado estratégico, e a consentir a presença militar norte-americana no seu território. Este acordo foi determinante para conter a influência iraniana na região, e crucial para a ‘cruzada pela liberdade’ empreendida pela administração Bush. 

Também durante a administração Trump as relações entre Washington e Riade foram de proximidade, sobrevivendo mesmo ao assassinato, pelos serviços sauditas, do jornalista e colunista do Washington Post Jamal Khashoggi. Mas essa proximidade foi interrompida pela atual administração. Ainda em campanha para as presidenciais de 2020, Biden lembraria o assassinato de Khashoggi e condenaria a intervenção saudita no Iémen, prometendo converter a Arábia Saudita num ‘pária global’.

Apesar da retórica, a administração norte-americana ainda vê os Acordos de Abraão, um dos legados da política externa de Trump que levou ao restabelecimento de relações diplomáticas entre Israel, os EAU e Marrocos, como um instrumento estratégico para a promoção da paz e estabilidade na região. Na véspera do anúncio do acordo entre Teerão e Riade, o secretário de Estado da Defesa norte-americano aterrava em Israel, onde discutiu com o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, a ameaça da nuclearização do Irão. Apesar das críticas da ala mais radical do Partido Democrata, que quebram a longa tradição de consenso bipartidário em torno de Israel, Lloyd Austin afirmou que o apoio dos Estados Unidos é «inquebrantável», e «assim se manterá».

E no mesmo dia em que se anunciava a reaproximação entre Teerão e Riade, nos EUA a Câmara dos Representantes discutia os esforços a desenvolver para normalizar as relações entre Israel e a Arábia Saudita, e a possível utilização dos Acordos de Abraão para promover a paz entre israelitas e palestinianos. 

Segundo fontes próximas do processo citadas pelo New York Times, o Governo saudita teria exigido, com vista a essa normalização, garantias de segurança por parte dos EUA, o alívio das restrições à venda de armamento e apoio no desenvolvimento de um plano nuclear civil. 

O regresso da História 

Existe um consenso alargado de que a invasão russa da Ucrânia terminou com quaisquer ilusões sobre o fim da história, ou sobre a marcha triunfante da ordem internacional liberal. Com o regresso da história, assistiu-se também ao regresso da geopolítica e da geoeconomia.

Na ótica de Pequim, um cenário de estabilidade no Médio Oriente é importante para assegurar o acesso a recursos energéticos, sobretudo petróleo, e como região estratégica na implementação da ambiciosa Nova Rota da Seda.

Segundo dados da U.S Energy Information Administration, a Arábia Saudita, a China e o Irão estão entre os dez principais países produtores de petróleo, ocupando o terceiro, sexto e oitavo lugar respetivamente. A Rússia é o segundo maior produtor a seguir aos Estados Unidos. Para além da Rússia, a Arábia Saudita e o Irão são os principais fornecedores de petróleo à China. Apesar de não existirem números oficiais, os analistas referem que o volume de importações, pela China, de petróleo iraniano atingiu níveis recorde em 2022, ilustrando a capacidade de Teerão, e de Pequim, para contornar as sanções ocidentais.

O complexo sistema de organizações internacionais que se começou a desenhar nos pós II Guerra, e que se expandiu de forma acelerada no período pós-Guerra Fria, representava as regras e princípios da ordem internacional liberal. Mas Pequim tem conseguido – com sucesso – uma posição hegemónica em corpos intergovernamentais importantes, como o Conselho de Direitos Humanos da ONU. E na sua estratégia para redesenhar a ordem internacional, a China tem-se também servido de organizações próprias numa lógica que integra os seus interesses geoeconómicos (acesso a recursos energéticos, implementação da Nova Rota da Seda e expansão do renminbi) no objetivo mais abrangente de afirmação no plano global. É o caso de alianças geopolíticas consolidadas sob o domínio do Pequim, como os BRICS ou a Organização para a Cooperação de Xangai, que inclui a Rússia e a índia, e tem no Irão o seu mais recente membro. Numa iniciativa da China, e depois da apresentação de pedidos formais de adesão, os BRICS decidirão em 2023 sobre a entrada do Irão e da Arábia Saudita. 

O mundo que há de vir 

Do mesmo modo que Pequim tem vindo a consolidar a sua influência no Médio Oriente, também Xi Jinping tem vindo, desde 2012, a consolidar a sua liderança na China. Depois de eliminar o limite de mandatos presidenciais previsto na constituição, Xi Jinping inaugurou recentemente o seu terceiro mandato presidencial após votação unânime pelos 2952 delegados do Congresso Nacional do Povo Chinês. 

No encerramento do Congresso, o Presidente lembrou a reunificação com Taiwan, comprometeu-se a fazer do exército chinês uma ‘grande muralha de aço’ destinada a proteger a soberania chinesa, e sublinhou o papel da China na reforma e desenvolvimento do sistema de governança global, afirmando que «o testemunho de construir um grande país moderno e socialista e avançar com o rejuvenescimento da nação foi historicamente passado à nossa geração». 
Na política internacional, que também é sobre o poder e a sua distribuição, não existem espaços vazios. E no atual contexto, em que duas superpotências competem em múltiplas frentes (política, diplomática, económica, tecnológica), este acordo reflete a tradução, pela China, de influência e de potência em poder efetivo. Isto num momento em que as diplomacias europeia e norte-americana estão focadas na Ucrânia, tida como frente decisiva no combate pela ordem internacional liberal.

Mas o futuro também se joga no Médio Oriente, em África e na América Latina, onde a China vai expandindo a sua influência. Fá-lo mediante o recurso a instrumentos como os empréstimos com condições preferenciais ou grandes projetos de infraestruturas, e obedecendo a uma lógica segundo a qual a História não acabou, nem foi interrompida. Apresenta-se através de um modelo de cooperação Sul-Sul, assente nos princípios da soberania e não interferência, na denúncia pontual do ‘neoimperialismo’ ocidental, e em estratégias de desenvolvimento que, apesar de desligadas de considerações substanciais sobre a democracia ou os direitos humanos, têm sido capazes de se afirmar não apenas junto de autocratas, mas também de algumas populações.