Esta pérola de sabedoria, aparentemente colhida no Borda d’água, é oferecida como se nada de belicamente relevante se tivesse passado a leste desde o Outono passado. A visão da guerra como um videojogo promovido pela televisão à hora das refeições faz crescer o desejo de uma mudança no marcador, reclamando ofensivas e contra-ofensivas primaveris que permitam a consagração de um vencedor. O aumento das apostas – novas armas, novas promessas de vitória a breve trecho – e da pressão mediática, concentradas a leste, fazem aumentar o risco de uma III guerra mundial por procuração, passível de evoluir para uma guerra directa. Uma III guerra mundial entre EUA e a Federação Russa seria um equívoco geo-estratégico, uma espécie de vingança da história, recriando um conflito entre os dois quando um deles já não consegue competir por ter sido destronado como adversário de eleição. A III guerra mundial está encomendada, o casting para os protagonistas já começou e todos sabemos que será travada entre os EUA e a China, dita República Popular.
Até que a verdadeira III guerra chegue há que apostar na disseminação de conflitos pelo planeta, multiplicando os pontos de contacto de pequena e de média pressão em vez de concentrar o conflito num só ponto (a fronteira sueste da Ucrânia). Os conflitos não têm de ser cinéticos, podem ser comerciais, económicos, tecnológicos, desportivos (com e sem boicotes às iniciativas dos inimigos), culturais,…
Esta semana trouxe-nos de volta aos melhores tempos da guerra fria, com o regresso dos EUA ao Pacífico, com o anacronismo do Reino Unido na photo op, a Austrália a pagar pela garantia de segurança e uma promessa de submarinos nucleares mas, nos que batam pavilhão australiano, sem armas nucleares, Biden dixit. Os submersíveis serão baseados em Perth com a possibilidade de um destacamento em Darwin (com vista para Díli). Menos prática nas virtudes da guerra fria quando esta se aproxima do seu território, a China terá reagido epidermicamente, aumentando de imediato o envio de armas e munições para a Rússia.
A guerra internacional também serve para gerir conflitos internos. As decisões sobre a guerra, sejam no jus ad bellum (o justificar da participação no conflito, o filigranar do casus belli mesmo que a benefício de terceiros cujo auxílio se promove), seja no ius in bellum (o que é legítimo fazer quando se participa, ainda que de forma indirecta, no conflito), são decisões de política interna e alimentam a pré-campanha eleitoral nos EUA. Em 2024 também se discutirá o peso da despesa pública na criação de emprego: o alongar da lista de compras de material de defesa é capaz de dar a Biden vários pontos percentuais nas eleições de 2024. A guerra por procuração permite manter os resultados do “Bring our boys back home” sem pagar o preço do isolacionismo de Trump, acomodatício com russos e chineses.
A maioria dos cold warriors já não está no activo mas é supinamente útil voltar a lê-los com atenção para perceber o porquê de a guerra quente nunca ter passado à escala planetária. Deixo duas sugestões de leitura, uma na primeira pessoa e outra que trata do primeiro grande conflito regional do período: Dean Acheson, “Present at the Creation: My Years in the State Department”, Nova Iorque, 1969; Sergei N. Goncharov, John W. Lewis, Xue Litai, “Uncertain Partners: Stalin, Mao, and the Korean War”, Stanford, 1993.