Esta clara separação de funções pode ser ofuscada pelas tarefas de mediação entre Deus e os homens. O advento de uma classe profissional organizada e de acesso condicionado (e que surgiu muito antes das tentativas da Comissão Europeia e do XXIII Governo Constitucional de liberalização das profissões organizadas por via de associações públicas) convoca as dificuldades com que vivem os híbridos. A Igreja prega o bem e vê-se como um seu veículo, logo seria imune ao mal, uma característica intrinsecamente humana. Se a justiça dos homens não se interessar pelo mal praticado pelos membros da Igreja – desinteresse que pode resultar de práticas activas de encobrimento do mal – ou se tardiamente o fizer, em momento em que a lei penal ou a lei civil ficaram, a bem da paz social, tolhidas pelos institutos da prescrição ou da caducidade, que fazer? Há que ter fé nas vias canónicas que no passado foram percorridas para descoberta da verdade. Com bibliófila concupiscência vêm-me à memória o Directorium inquisitorum e o Malleus maleficarum. Seguem-se alguns exemplos práticos.
Sua Excelência Reverendíssima o Bispo de Beja partilhou com o canal de televisão SIC algumas flores do seu pensamento e que foram injustamente distorcidas por mentes vis, pouco exercitadasna promoção da virtude e na prevenção do vício. O Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor Dom João Marcos declarou, a propósito da tentativa de perseguição aos membros do clero que abusaram sexualmente de crianças e aos respectivos superiores que os encobriram: “Esta maneira de abordar as coisas não é muito católica.”
Para instrução dos ignaros, aqui se transcreve um módico da abordagem católica em matéria de obtenção de prova, quase caída em esquecimento não fosse, já neste século, a natureza empreendedora de alguns diligentes funcionários públicos norte-americanos, devotados ao combate aos incréus: “A todo tormento corresponde. Assentarão o Réu no potro e antes de o deitarem lhe darão nos braços posto um sobre o outro nove voltas apertadas com o cordel, e sendo assim atado será admoestado que confesse e não querendo, nesse passo, se lhe lerá o libelo (aonde se costuma ler) e aonde não se costuma o deixarão estar assim atado por algum tempo admoestando que confesse; será logo deitado de costas sobre o potro e lhe porão o colar de ferro na garganta e lhe darão com o cordel duas voltas em cada baixo do braço e outras duas em cada coxa e duas em cada canela das pernas, indo-o sempre admoestando que confesse. Depois se lhe porá o véu na boca, com o púcaro de água na boca, sobre o véu para que vá entrando o véu na boca com a água na forma que se costuma e isto se fará de modo que não abafe a arbítrio do médico, cirurgião e inquisidor.” (transcreve-se a obra do último guarda-mor da Torre do Tombo, António Baião, “Episódios dramáticos da Inquisição portuguesa”, vol. II, Rio de Janeiro, 1924 – 1ª ed. em 1911 -, Álvaro Pinto Editor – Annuario do Brasil, pp. 258 e ss., citando o Codice do Santo Oficio nº 1422, na Torre do Tombo, folha 7 – o vol. I foi editado em 1919, no Porto, pela Renascença Gráfica, há uma 2ª edição da Seara Nova, Lisboa, 1936-1953, “melhorada e acrescentada com documentos inéditos e informações novas”, em 3 vols., 3ª ed. da mesma editora em 1972-73, o vol. I teve uma edição fac-similada e mais recente, coordenada por Ana Cristina da Costa Gomes e editada pela Prefácio, Lisboa, 2004).