É preciso evitar o confronto entre os que sofrem dos mesmos problemas


O objetivo dos manifestantes – ao contrário dos novos trauliteiros – não é o de mudar a ordem constitucional e a democraticidade do regime: o que pretendem é que elas se cumpram.


A visualização da TV, a audição da rádio e a leitura dos jornais e das redes sociais revelam, cada vez mais, uma inaudita violência discursiva, no plano da atual luta política institucional e extrainstitucional no nosso país.

Os que virem e ouvirem tais meios de comunicação ficam com uma visão tremendista da nossa sociedade e dos confrontos sociais que nela estão a ocorrer.

Isso tanto pode causar medo e refrear protestos de uns, como, pelo contrário, incitar a maior violência de outros.

Quem está atento a este fenómeno concluirá rapidamente que nem no período que se seguiu à queda da ditadura aconteceram, fora e no seio da comunicação social, falas tão eivadas de violência e de raiva pessoal.

O que, com entusiasmo, se discutia então eram, sobretudo, as diferentes soluções e alternativas políticas para o país.

Muitas são as razões para esta mudança de estilo na expressão das contradições sociais.

Uma delas é, porém, evidente: a incapacidade dos autores de tais arengas para, com clareza defenderem políticas diferentes e verdadeiramente alternativas às que vão sendo concretizadas todos os dias.

Perante essa incapacidade – ou envergonhada cumplicidade com as medidas que dizem contestar – o que resta é, como numa feira, o tiro ao boneco, ou seja: o ataque pessoal.

Em tais discursos furiosos, nada de verdadeiramente novo é proposto.

Apesar do ruído produzido, no que se refere ao essencial, estão quase todos de acordo com a situação existente.

Este estilo de fazer política pode ser e querer parecer radical, mas, verdadeiramente, além do aumento do ruído, não toca em nada de fundamental.

O confronto e o contraste dessa virulência verbal com as palavras-de-ordem das cada vez mais massivas manifestações dos variados setores sociais, insatisfeitos com a injustiça da vida que levam, mostra bem onde se verifica a fratura que se está a acentuar na sociedade portuguesa.

Ela situa-se na injustiça dos salários, nas pensões miseráveis, no problema da habitação, na especulação livre dos preços dos produtos alimentares, nas dificuldades de acesso aos serviços de saúde, na falta de apoio efetivo da banca às famílias com dificuldade em pagar empréstimos e, pior, na constatação revoltante da inexistência, num futuro próximo, de uma saída política, mesmo que progressiva e faseada, para tais problemas.

É isso o que os manifestantes que vão ocupando o espaço público todos os dias estão – com um controle e uma paciência notáveis – a dizer repetidamente há já algum tempo.

Fazem-no para chamarem à razão os responsáveis pela resolução dos problemas que emanaram de tais insucessos sociais.

O seu objetivo – ao contrário dos outros – não é o de mudar a ordem constitucional e a democraticidade do regime; o que pretendem é que elas se cumpram.

Os outros, os da palavra fácil e grossa, criticando embora as mesmas situações e as pouco convincentes soluções que para elas são apresentadas, o que querem é, na verdade, fomentar a descredibilização do regime democrático para, mais facilmente, arrasar os direitos sociais que, mesmo que deficientemente cumpridos, a Constituição atual consagra. 

Para os que, através do ruído que fazem, influenciam e mobilizam, agora, alguns setores sociais mais desesperados – um pouco como aconteceu nos EUA e no Brasil – o que importa é, aproveitando-se da insatisfação popular, atiçar a violência e ensaiar o assalto ao poder.

Em Itália, já conseguiram.

Para estes, como no romance O Leopardo, de Tomaso de Lampedusa, o que é preciso é que tudo pareça mudar um pouco para que, afinal, tudo fique na mesma.

Do outro lado, daquele que dá voz aos movimentos populares que se manifestam nas ruas, procura-se, com mais ou menos sucesso, mobilizar os que sofrem e explicar e tornar evidente o absurdo das políticas que estão a gerar o atual estado das coisas. 

 E, note-se, muitos dos que sofrem são, também, os que participam e engrossam, agora, o coro agressivo e ruidoso que deslegitima o poder democrático.

O risco de agudização destas duas maneiras de pensar e agir é o de, pela primeira vez desde o 25 de Abril, se caminhar para um confronto cego e direto entre setores populares que, afinal, suportam conjuntamente os mesmos problemas, mas que têm deles, e da sua solução, leituras radicalmente opostas.

A possibilidade de tal confronto pode, momentaneamente, beneficiar os que, no essencial, sustentam as medidas políticas e económicas que atualmente vigoram.

Todavia, tal enfrentamento pode conduzir, também, a uma rutura radical do cenário democrático.

E, se isso acontecer, assistir-se-á de imediato ao esvaziamento das poucas medidas que, de alguma forma, mesmo que insuficientes e injustamente desenhadas, atenuam, hoje, ainda assim, o padecimento de muitos cidadãos.

Por tal razão, não parece sensato, nem avisado, que os responsáveis pela situação atual procurem – em vez de a corrigirem – lançar operações de contrafogo sem calcularem bem os efeitos que delas podem resultar.

Como dizia Félix Cucurull, um poeta catalão que gosto de citar, «os homens ladram pela boca dos seus cães».

Acontece que, por vezes, estes se soltam e se tornam incontroláveis, mordendo mesmo os próprios donos.

Deixar lançar, por isso, cidadãos uns contra os outros – designadamente todos os que sofrem dos mesmos males – pode tornar-se num jogo perigoso e de resultados muito difíceis de antever e prevenir.

Quem o faz, aos mais diferentes níveis, deverá, pois, aquilatar seriamente os efeitos que está – ou pode vir – a provocar.

Uma coisa é certa, se esses confrontos se agudizarem, a violência daí resultante incidirá sobre todos; mesmo sobre os que, no fundo, a desejaram ou, por calculismo, nela consentiram.

Por tal razão, os que apostam na racionalidade da política, sem prescindirem de lutar contra a injustiças mais gritantes, terão, também, de procurar evidenciar melhor o que – e quem – as provoca e, ao mesmo tempo, denunciar a tolerância reiterada que os novos trauliteiros, mesmo quando fingem exaltar-se, revelam em relação a elas.

Só a reivindicação e apresentação de soluções, que a maioria dos portugueses considere, neste momento, razoáveis e capazes de unir os que sofrem, poderá evitar uma confrontação séria e de resultados imprevisíveis para o regime democrático.

Os exemplos recentes ajudarão, por certo, a compreender o que não se deve fazer:  deixar enfraquecer a posição institucional dos que, genuinamente, estão ao lado dos que sofrem e dos que lutam por ter, agora, uma vida mais justa.

A tarefa é difícil, mas só a sua concretização – com ou sem sapos à mistura – poderá evitar uma situação de violência social eminente e a destruição dramática dos direitos constitucionais de natureza social.