A questão da escolha e determinação de uma dada jurisdição, para apreciar uma determinada causa – civil ou criminal –, tem mais importância do que se possa imaginar.
Resultando, na maioria dos casos, numa mera operação de natureza técnico-jurídica em função de normas prefixadas na lei ou em contrato, ela pode esconder e envolver, em algumas situações menos comuns, escolhas políticas e de grande relevância.
Nos grandes contratos internacionais – sejam eles firmados apenas por partes privadas, sejam, por outro lado, assinados, por exemplo, por um Estado e uma entidade internacional de natureza financeira – tal escolha não é indiferente.
O mesmo acontece – e com acrescida razão – com a jurisdição penal internacional.
Quando, em 1998, sob a égide das Nações Unidas, através do Tratado de Roma, foi criado o Tribunal Penal Internacional (TPI), pensou-se que se havia alcançado um patamar de segurança jurídico-judiciária até aí inédito e elevado neste tipo de jurisdição.
Assim, para investigar e julgar casos de genocídio, de crimes contra a humanidade, de crimes de guerra e de agressão, passava a existir uma jurisdição internacional, legal, permanente e preestabelecida em relação aos crimes que lhe competia apreciar quando as justiças nacionais o não fizessem.
Mesmo que apenas subsidiária à ação ou inação das justiças nacionais, a jurisdição penal internacional passou a dever ser exercida por um tribunal internacional permanente e preexistente – em função de uma codificação de crimes predefinida – e não por um tribunal dos vencedores, destinado por estes a julgar os vencidos nos conflitos em que tais crimes tivessem sido cometidos.
A competência investigatória e de julgamento do TPI é, pois, independente e alheia à pertença do arguido à parte vencedora ou à vencida no conflito em que o crime terá sido cometido.
O que importa é o crime que se cometeu e não o estatuto de quem o cometeu.
Pela primeira vez na História, se criava, pois, um Tribunal que era competente para investigar e julgar aqueles tipos de crime e os que os cometeram e cujas normas, que regulam a sua ação e o seu funcionamento, foram definidos por lei, mesmo antes de eles terem sido perpetrados.
A jurisdição internacional do TPI só tem lugar se a prática dos crimes que, em abstrato, lhe compete investigar e julgar, se tiver verificado posteriormente à sua criação.
Diz-se, com efeito, no artigo 11.º do Tratado de Roma, que o TPI só é competente para julgar os crimes cometidos depois da entrada em vigor do seu estatuto.
Diz-se, também, no preâmbulo do Tratado de Roma «Determinados em prosseguir este objetivo (…) criar um tribunal penal internacional com carácter permanente e independente, no âmbito do sistema das Nações Unidas, e com jurisdição sobre os crimes de maior gravidade que afetem a comunidade internacional no seu conjunto.»
É assim, de resto, o que se verifica, em geral, em relação aos tribunais estaduais nacionais em países democráticos: são permanentes e independentes.
É o que acontece, necessariamente, quando as normas do Estado de Direito prevalecem sobre a aleatoriedade existente em regimes em que a função da lei e dos tribunais é, sobretudo, a de apoiar e sufragar as decisões previamente tomadas pelo poder político.
Disse-se, atrás, que, com a criação do TPI, muitos pensaram que isso não mais iria passar a acontecer no âmbito da jurisdição penal internacional.
Mas, na realidade, nem todos pensavam – ou pensam – assim.
Muitas agressões, guerras e conflitos depois da criação do TPI – e com eles muitos crimes e muitas vidas inocentes precipitadamente interrompidas, muitas vítimas incapacitadas para sempre – deram a compreender melhor a razão de ser de algumas recusas na adesão ao Tratado de Roma.
Dos 123 Estados que aprovaram o referido tratado, contam-se 33 países Africanos, 19 da Ásia Pacífico, 43 da Europa, 28 da América Latina e Caribe.
Entre eles, todos os que pertencem à União Europeia e ainda o Reino Unido.
Todavia, nenhuma das grandes potências militares – EUA, Rússia e China – são hoje partes deste tratado.
Poucos anos após a criação do TPI, em 2002 – coincidindo com a instalação do TPI n’A Haia – foi proclamada a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Esta Carta de Direitos, na senda dos princípios que inspiraram e justificaram a criação do TPI, estatui, no seu artigo 47.º, que «Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei.»
Pela primeira vez, neste tipo de declarações sobre direitos humanos e de cidadania, ficou claramente consagrado que alguém só pode ser legitimamente julgado por um crime que cometeu por um tribunal anteriormente a ele estabelecido na lei.
Para um tribunal europeu ser competente para julgar um crime não lhe basta ter sido formalmente estabelecido por lei; a lei que o criou deve, necessariamente, ser anterior à prática do crime cometido.
Na União Europeia, fica, pois, muito pouco espaço para quem defenda soluções jurídicas e judiciárias que contrariem aquele princípio, desenhado no Estatuto de Roma que instituiu o TPI e explicitado, mais compreensivelmente, na Carta de Direitos dos Cidadãos da União Europeia.