Padre Duarte da Cunha: “Acho que é impossível a ordenação de mulheres”

Padre Duarte da Cunha: “Acho que é impossível a ordenação de mulheres”


Nasceu em 1968 e com 25 anos foi ordenado sacerdote. Não gosta de ser apelidado de conservador e nesta entrevista fala sobre os sacrifícios que alguns católicos se autoinfligem e explica por que não os condena. Não se escandaliza com o fim do celibato dos padres, mas é contra a ordenação das mulheres. 


Encontramo-nos na paróquia de Santa Joana, uma transversal da Avenida Estados Unidos da América, em Lisboa, onde uma bancada está cheia de pão, entregue pela Refood, para todos aqueles que o queiram levar. «Chama-se o pão de ontem e é para que não haja desperdícios», diz-nos. É um homem calmo que nos recebe, mas com algum receio de  falar, não fossem as suas palavras serem distorcidas. Percebe-se bem como se dedica ao sacerdócio e como não casa com as novas correntes dentro da Igreja. Para alguém como eu, que não é católico praticante, chega a ser desconcertante ouvi-lo falar da dor e da fé. Aqui fica o testemunho de Monsenhor Duarte da Cunha, um homem muito acarinhado pelos seus fiéis, sobre o momento que vive a Igreja Católica. 

Com o que se vive neste momento na Igreja, há o perigo de haver uma nova cisão? Há muita gente que, pelos vistos, não se identifica com o relatório de Portugal que está a ser discutido no Sínodo em Praga. E será finalizado em outubro.

Em 2024 volta a haver mais uma reunião. Em outubro ainda não vai ser o fim de tudo. Não se sabe ainda bem o que vai acontecer entre outubro de 2023 e outubro de 2024. Qualquer coisa há de ser proposto. Em outubro de 2023 vão estar os bispos todos em Roma, reunidos, dos vários países. Neste momento estão em Praga os da Europa mas também houve nas Ilhas Fiji, da Oceania, os da América, África, todos os continentes fizeram a reunião da fase continental do Sínodo. A partir de um documento feito pela Secretaria Geral do Sínodo, um documento comum, alguns acharam que não devia ter só um documento central para ser discutido em todos os continentes, porque os continentes são diferentes, as comunidades eclesiais são diferentes. Mas foi assim que foi decidido. Agora as conclusões são para sair destas fases continentais.

Mas em relação ao relatório português fez um documento que tornou público a contestá-lo.

A minha questão não é tanto a sensibilidade eclesial, mais assim ou mais assado. A mim pareceu-me que era importante. A grande diferença eu diria que é se é uma posição mais ideológica ou mais realista. Isto é sempre muito difícil. Não podemos acusar ninguém mas às vezes é quase inconsciente. No fundo, a minha fé vem do quê? Vem do ter encontrado Jesus Cristo como um facto na Igreja. Não tive uma visão. Foi na Igreja, foi na comunidade, foi nas pessoas em concreto. O meu encontro com Cristo precede a minha ideia do que deve ser a Igreja. Sou eu que o encontro numa comunidade que já existe. Diferente é quando uma pessoa pretende que a Igreja se deve adaptar ao mundo e depois então começamos a discutir o que é o mundo de hoje. A nossa tentativa, o que quisemos fazer no relatório foi o ver o que é a realidade da Igreja, não tanto o que achamos que a Igreja deve ser. E ver não tanto o que é que a Igreja pede a Deus para fazer, mas o que Deus pede à Igreja para fazer. Não tanto: quero que a Igreja seja…, mas o que é que Deus quer que a Igreja seja. Todo este processo sinodal é para escutar o Espírito Santo, como diz o Papa tantas vezes. Não é propriamente para escutarmos o mundo e nos adaptarmos ao mundo. Por isso, a melhor maneira para escutar o Espírito Santo – diz o Papa e é uma tradição da Igreja – é escutarmo-nos uns aos outros. Mas também escutarmos os nossos antepassados, com certeza. Os de há 50 e os de há 70 anos. Temos de estar em sintonia com eles. Nesse sentido, não acho que seja possível dizermos que o meu relatório foi de uma fação e o outro foi de outra fação. Acho que são tentativas de fazer uma síntese daquilo que eram os relatórios diocesanos, porque é muito difícil fazer uma síntese. Quando temos 200 páginas e temos de reduzir a dez… O que sintetizamos? O que fazemos num estudo estatístico? Tentámos realçar algumas coisas que no relatório nacional nos pareceu que faltava. Também porque nos parecia que o relatório nacional tinha sido feito com demasiado ênfase nesta coisa das mudanças das estruturas e nas mudanças da doutrina, quando isso é um aspeto pedido por algumas pessoas mas não é o único aspeto. A Igreja é uma realidade que está viva, não é uma realidade que está morta. Os jovens estão bastante vivos e ativos.

O que se está a dizer sobre as mudanças era o fim do celibato, o casamento dos padres, as mulheres poderem ser ordenadas, os recasados poderem ter comunhão, os homossexuais terem os mesmos direitos… é isso?

Isso são tudo questões, digamos assim, de conclusão. Depois há toda a questão de como é que se chega a essa conclusão. E a mim parece-me que a Igreja é mais chamada neste momento a fazer uma verificação daquilo que, de facto, é a antropologia. O que é o ser humano? O que é o ser humano na sua relação interior entre corpo e alma, entre corpo e espírito, entre corpo e interioridade, para não usarmos palavras antigas? No fundo, o que é a pessoa humana no seu eu e o que é a pessoa humana na relação com os outros? O que é a diferença sexual, o que é a complementaridade da diferença sexual? Por que é que a vida de uma criança nasce fruto da relação de um homem e de uma mulher? Por que é que estas coisas existem? E só se nós pressupomos que há um plano criador de Deus para o homem faz sentido uma determinada moral. Se, pelo contrário, nós nos esquecemos da antropologia, vamos às questões morais só preocupados com o posso ou não posso fazer. Mas a Igreja não é moralista nesse sentido. Não começa por dizer o que se pode ou não se pode fazer a partir duma lei que alguém ou um grupo decide, não sei quando, não sei como. Quer dizer, a Igreja é sempre chamada, e o mundo inteiro também, a antes de saber o que se deve fazer, deve-se saber de que se está a falar. O que é a realidade vem antes de perguntar sobre o que fazer. E só depois digo o que devo fazer com aquilo que é. Primeiro conheço a realidade e depois sei usar essa realidade. E este é o desafio que me parece mais importante. O homem tem que se procurar a si mesmo. Quem é o homem? Quem é o ser humano? O que é isto de ser humano? E o que é isto de ser humano na relação com Deus? Deus está aqui para me ajudar, só? Ou a sua grande ajuda também é orientar-me? Mas só me orienta dizendo o que eu devo fazer? Ou entra na minha vida e dá-me força para eu depois me converter? Aqui está o tema da graça, que é uma questão fundamental para a Igreja. A convicção da Igreja é que os homens, para serem santos, para realizarem a sua humanidade, não lhes basta as forças da sua vontade. Mas então, se Deus me ajuda, ajuda-me para chegar àquilo que Ele acha que é importante eu chegar. Portanto, a primeira ajuda que me faz é também ajudar-me a perceber onde é que ele quer que eu chegue. E isso é a experiência da Igreja. 

Há leituras completamente opostas dentro da própria Igreja. Ou a Igreja se abre e vai de encontro a Jesus, que era uma pessoa humilde, que se dava com as prostitutas, que se dava com os ricos, que se dava com os pobres…

Também estou de acordo com isso. A Igreja abrir-se e ir de encontro às pessoas todas, isso faz parte. Se eu começo a perceber o que é o ser humano, então cada ser humano tem toda a dignidade. Este é que é o ponto, é que a Igreja convertida a Jesus Cristo torna-se muito mais caridosa junto dos outros. E vou ao encontro da prostituta, vou ao encontro da pessoa doente, da pessoa que sofre, da pessoa que está sozinha, que está desorientada, que está deprimida. Porque as pessoas me interessam.

Vai ao encontro mas não as aceita todas da mesma forma na sua casa, isto é, na igreja.

Aceito-as todas da mesma forma em minha casa. Agora, com aquela porta de entrada com que eu também tenho que passar todos os dias. Esta semana tivemos a Quarta-feira de Cinzas. Nessa altura pusemos a cinza na cabeça das pessoas e dissemos: ‘Lembra-te ó homem que és pó e ao pó voltarás’, com consciência da nossa pequenez, da nossa fragilidade. Ou então dizemos ao impor as cinzas: ‘Converte-te e acredita no Evangelho’. Foram as primeiras palavras que Jesus disse. E o diz a mim. Se me diz a mim é porque diz a cada um. O que é converter-me? Por isso é que a Igreja está aberta a toda a gente para entrar. Mas com uma proposta. Não é para dizer ‘entra e fica na mesma’. Isso não é de ajuda. O Papa diz muitas vezes que a Igreja é um hospital de campanha. É como se disséssemos às pessoas que entram num hospital: ‘Olha, fica aí doente’. Não, fica aí, mas eu estou aqui para te tratar, para te ajudar. E todos nós temos muitos problemas para serem tratados não é só esses casos bicudos de divorciados, homossexuais. Todos nós precisamos de ser tratados. Agora, a aceitação da pessoa implica também o querer acompanhar essa pessoa num caminho. Senão não é uma aceitação, é uma espécie de estou-me nas tintas para ti.

É como dizer, vamos imaginar, a um homossexual se deixar de ser homossexual, já tem os mesmos direitos.

O que quer dizer ser homossexual? A Igreja distingue algumas questões aqui? Acho que é mais ou menos evidente que é uma inclinação, uma afeição, um afeto por pessoas do mesmo sexo, isso é distinto de uma prática sexual, digamos assim, com pessoas do mesmo sexo. A Igreja diz que a prática da sexualidade é para ser feita entre homem e mulher dentro do casamento. Portanto, é tanto pecado um homem com homem como um homem com uma mulher fora do casamento. São pecados diferentes, mas são pecados. Pecados no sentido de que são coisas que são contrárias àquilo para que Deus nos fez, como Deus nos fez. Não são a forma como nos realizamos como pessoas, são coisas que no fim – o pecado não só ofende a Deus, de certeza, mas, porque Deus quer o nosso bem – pecar tem como consequência fazermos mal a nós mesmos. Por isso, a Igreja recebe toda a gente, mas pede a toda a gente que, com a graça de Deus, se esforcem, e cá estamos nós para nos ajudarmos, a viver um caminho que não nos faz seguir só os instintos, os apetites de cada momento. Isto não tem nada a ver com ser homossexual ou heterossexual. Tem a ver com o ser humano, ser uma pessoa que é capaz de viver a sua humanidade, em que a razão, a inteligência, a vontade são mais fortes do que os apetites, as pressões sociais, as modas, etc.

Mas é óbvio que não há espaço para o prazer sexual nessa filosofia.

Então não há? Entre marido e mulher há muito prazer sexual. Também há prazer sexual na castidade. Às vezes entristece-me. As pessoas acham que nós, padres, por exemplo, se somos castos, se somos celibatários, ou um casal que passa por períodos de continência não tem prazer. Mas o que é que nos dá prazer? O prazer sexual, naquele sentido do instante, com certeza que isso é renunciado. É oferecido, aceito não ter. Mas por um prazer maior que é o prazer do amor, o prazer de uma vida dada. O mesmo numa relação sexual. Se o marido e a mulher a única coisa que querem é trocar prazeres, não têm a plenitude da relação sexual, em que o objetivo é uma comunhão de vida, que é expressa, como disse o Papa João Paulo II na teologia do corpo, através da relação sexual, esta apresenta-se como sacramento da vida toda.

Porque é a reprodução.

Não. Porque estão unidos na vida, no dia-a-dia, no que comem, no que bebem, no que fazem, no trabalho, na casa que vivem. Há uma unidade de vida que se representa num momento sexual. Que depois esse momento sexual, que é também expressão de toda a unidade da vida, seja um momento reprodutivo é uma coisa espetacular, porque significa que cada vida nasce como fruto de um ato de amor. E que Deus tenha feito estas coisas assim é muito interessante porque mostra que cada um de nós, no primeiro instante da sua existência, tinha um homem e uma mulher a beijarem-se. É uma coisa misteriosa, mas significa que isto está pensado para que cada um de nós não se esqueça que foi feito por amor. Não foi feito por um acaso qualquer. Depois, se somos mais fiéis ou menos fiéis à vivência e à educação do amor, isso depois são problemas humanos, e muitas vezes a nossa liberdade dá para sermos rebeldes.

Vamos imaginar que neste processo sinodal se conclui que o celibato é opcional, que os padres podem ser homem casados, que os recasados têm direito à comunhão, que os homossexuais têm os mesmos direitos e por aí fora. O que acha se isso for aprovado?

Acho que há aqui questões muito diferentes. Há questões de disciplina e há questões de doutrina e há questões de antropologia. Questões de disciplina são questões que, digamos assim, são verificadas como convenientes para épocas da história e para determinados ministérios, determinadas questões. O celibato dos padres não é uma questão, digamos, obrigatória no sentido doutrinal. Quer dizer, há nas Igrejas orientais católicas homens casados que são padres. O sacerdócio como sacramento da ordem e o matrimónio não são incompatíveis. O que há é uma consideração disciplinar no sentido de conveniência verificada na Igreja latina de que pelo tipo de ministério, pelo tipo de identidade que o sacerdote tem na Igreja latina, é conveniente escolher entre os homens que se consagram celibatariamente a Deus para serem padres. Que isso depois na vida apareça como ‘não te podes casar se queres ser padre’ é uma coisa diferente, mas na experiência existencial que cada um de nós faz no caminho do seminário, antes de sermos ordenados, experimentamos a certeza de que ‘eu quero-me dedicar a Deus’. É uma consagração, digamos assim. Isso é uma questão disciplinar e pode mudar, mas para mudar é preciso que haja boas razões pela mudança, e terá de passar por querer ser mais fiel a Jesus Cristo, não  para nos adaptarmos ao mundo. Não para dizermos que os homens de hoje são mais incapazes de se aguentar do que os homens de há 50, 100 ou 200 anos. Mas porque há uma relação de conveniência, não por uma questão de cedência, porque isso seria ‘vamos ser menos santos’. Mas porquê? Um homem casado é menos santo que um homem celibatário? Não pode ser. São coisas diferentes. Mas também é preciso ter em conta que será uma mudança de forma de entender o sacerdote na vida da comunidade. O sacerdote celibatário está para a comunidade não como um simples empregado que faz os serviços religiosos, mas, de facto, como um esposo da comunidade, como alguém que tem a vida entregue a ela. Há todo um estilo de vida que está ligado ao celibato que muda se uma pessoa tem família, tem filhos em casa e tem que ir para casa, tem que arranjar ordenado para alimentar a família. É toda uma grande mudança de estilo de vida. Mas isto são questões disciplinares. Já outras questões são dogmáticas. Jesus só escolheu homens para apóstolos e que lhes disse: ‘Fazei isto em minha memória’. E ele próprio era homem, masculino, e que o sacerdócio na Igreja Católica é entendido como…

Mas Ele não tinha discípulos e discípulas?

Tinha, como tem. Isso não deixou de ter. Mas aquele ministério concreto de ‘Fazei isto em memória de mim’, que disse na Última Ceia, é uma coisa que entregou aos 12 apóstolos. A Nossa Senhora entregou mais ainda, entregou ser mãe dele. Mas aquele ministério ligado à eucaristia, aquela missão, entregou a homens também por causa desta dimensão esponsal e por esta identificação com ele. Os padres, os sacerdotes do Novo Testamento não são como os do Antigo Testamento. No Novo Testamento são pessoas que ‘emprestam’ a sua vida para que Cristo atue através deles. Eu, quando consagro o pão, é Cristo que consagra. Quando batizo uma criança, é Cristo que batiza. Há uma identificação com Cristo e com os apóstolos que faz parte da tradição de sempre da Igreja. E uma mudança neste campo seria uma redução daquilo que é o sacerdócio e o ministério sacerdotal. Seria pensá-lo como uma espécie de líder da comunidade. E líderes da comunidade com certeza que podem ser homens ou mulheres, não é essa a questão. Mas o sacerdócio não é simplesmente o líder da comunidade. Portanto, seria uma mudança doutrinal muito mais profunda e dogmática do que a questão disciplinar do celibato. Já questões da sexualidade e da antropologia seriam uma mudança, uma questão muito mais profunda que tem muito mais a ver com aquilo que vemos acontecer na história, o que é próprio da natureza humana, das várias culturas e depois também da Sagrada Escritura, da Redenção e da tradição da Igreja. Quem somos nós, no século XXI, para agora decidirmos que as coisas são completamente diferentes? Nós somos pessoas chamadas a ir ao encontro da realidade, não a manipular a realidade, acho eu.

Estamos perante duas visões do mundo totalmente opostas. Aquela corrente da Igreja que foi até a responsável pela síntese e a sua e de outros padres. Isto pode ou não dar algum cisma? Há um corte grande entre a escola alemã e a ala onde se insere, mais conservadora…. Como é que essas duas realidades tão diferentes vão conviver?

Eu não represento ninguém. Quando fizemos aquela síntese, eu e o padre Ricardo falámos com os bispos antes de a tornarmos pública. E muitos nos agradeceram o gesto sinodal que foi também esta tentativa. No fundo, acho que o sínodo entra neste diálogo. Se entendemos o sínodo como uma espécie de braço de ferro para ver quem é que ganha, então uns vão ganhar e outros perder. Agora, se vemos o sínodo como um diálogo para ver, de facto, a que é que o Senhor nos chama, então, tenho a obrigação de dizer aquilo de que estou convicto, mas tenho também a obrigação de estar a escutar o que o outro diz e perceber as razões do outro. Assim como o outro reciprocamente em relação a mim. E, nesse sentido, isto é sínodo. Com certeza que isto parece, aparentemente e nesta fase, que as duas linhas não têm pontos de junção, são paralelas.

São completamente.

Mas é aqui que dizemos: ‘Senhor, faz-nos ver a tua luz para percebermos o que temos de mudar’. O que eu tenho que mudar nas minhas convicções para ir ao encontro do outro, o que é que o outro tem que mudar, porque o que queremos não é eu ter razão ou o outro ter razão, mas é encontrarmos a razão de Deus. Tem que haver uma disponibilidade para escutar, para mudar, para dizer que se calhar não tenho razão. Mas até lá tem que se entrar no debate, no diálogo. E o debate faz-se também assim.

Mas, se a Igreja assumir essas conclusões, o que acha que poderá acontecer?

Em mudanças disciplinares, se mudarem o celibato dos padres, não vai haver cisma nenhum, vai  haver uns contentes, outros tristes, outros chateados, outros não chateados, outros a achar que isto é um erro e o tempo o dirá. Não vai haver um cisma por causa disto. Acho que vai haver diminuição do número de católicos, vai haver uma crise grande na Igreja. Não acho que isso seja o futuro mas não vai haver cisma.

E a ordenação das mulheres?

A ordenação das mulheres… Isso, o Papa João Paulo II escreveu uma carta que praticamente torna aquilo quase impossível de alterar. O Papa Francisco tem dito e redito que também não acha que isto seja possível. É uma coisa que é uma espécie de braço-de-ferro que tem mais a ver com o que é ser padre. Temos que lembrar que o Sínodo alemão, nas suas intenções, o que queria era perceber o que é o sacerdote. Depois, se reduzimos o sacerdote a um ministro, a um responsável, e não percebermos a dimensão teológica e dogmática profunda que está dentro da missão – porque isto é uma missão que temos, mas ao mesmo tempo também é uma identificação, é um sacramento que recebemos. Não é propriamente só uma tarefa ou um ministério, é uma coisa mais profunda. Temos que tentar perceber melhor este ministério para além destes debates todos, braço-de-ferro ou não braço-de-ferro…

Poderá haver cisma se as mulheres forem ordenadas?

Acho mesmo que, se agora houvesse uma votação na Igreja toda, não ganharia a ordenação das mulheres. Mas, se a Igreja se começasse a fazer por votações, então estávamos um bocadinho entregues aos marketings, às publicidades, às manipulações. E onde está o Espírito Santo nisto tudo? Onde está a nossa conversão? E onde está a nossa santidade?

Como sou jornalista gosto de respostas diretas, o senhor como padre gosta de ser mais explicativo… Foi muito taxativo a dizer que o fim do celibato não provocará um cisma na Igreja mas em relação às mulheres já não foi tão taxativo. 

Mas acho que isso não é possível mesmo. Acho que se alguém disser isso, esse alguém sai da comunhão da Igreja Católica.

Para um leigo perceber totalmente, o que há de tão diferente entre um homem e uma mulher? Por que é que um homem pode e uma mulher não pode?

Por causa da identificação com Jesus Cristo. Acho que a nossa sexualidade não é simplesmente uma espécie de roupa que ponho. Hoje ponho uma camisola encarnada e amanhã uma azul. A nossa sexualidade é a nossa identidade também. Nós somos uma pessoa toda, corpo e alma. Mesmo a parte física da nossa identidade tem muito mais interior do que simplesmente físico. Há diferenças entre os dois sexos. Não é que uns sejam melhores do que outros, são complementares. Podemos dizer que a missão mais importante que um ser, que uma criatura teve na história da salvação foi Nossa Senhora ser mãe. Mas hoje em dia reduziu-se muito a questão de ser mãe. É uma maçada as mulheres estarem grávidas, depois têm que ter o filho, dar de mamar… Se formos bem pensar, é a coisa mais nobre que existe. Nossa Senhora ter sido mãe de Jesus, desde logo explica que a posição da mulher na Igreja não é uma posição secundária. E que a Igreja precisa muito do papel da mulher, do feminino como sinal também de acolhimento, de paciência, de ternura, é muito isso. Nós vivemos em tempos em que a igualdade de género passou de simplesmente uma igualdade da dignidade de homens e mulheres para tentarmos ser todos iguais, fazer tudo iguais, sermos todos iguais, como se não houvesse mais complementaridade. No fundo, a mulher desaparece do seu feminino e o homem do seu masculino? Eu acho que é uma perda. E acho que na sociedade, mesmo na educação dos filhos e em tantas outras questões, a complementariedade faz falta. Mas se me pergunta por que razão as mulheres não podem ser ordenadas? Há coisas que posso responder com conveniências, como diria São Tomás de Aquino. São Tomás usava muito: ‘Não sei porquê, mas vejo que havia conveniências’. Foi o que Deus decidiu. Ultimamente a doutrina da Igreja sobre o sacerdócio exclusivo para os sacerdotes está enraizada numa autoridade que é maior do que a nossa capacidade de compreender. Jesus escolheu assim. Sou alguém para poder mudar o que Jesus escolheu? O Papa, neste momento da história, vamos fazer uma coisa que nunca houve na história? Aquilo que fizeram os protestantes, isso mudou para melhor? Ou ficaram mais crises, mais divisões, mais tensões, menos conversões, comunidades mais pequenas? Até pelo exemplo dado por outras Igrejas, devemos tentar perceber o que Deus quer. 

Mas está a falar da Igreja protestante? Inglaterra e por aí fora? Não há uma que Igreja está solidificada?

Tem uma crise muito maior do que a nossa. Tem mais perdas. Na Alemanha, por exemplo, os alemães declaram que são católicos ou que são protestantes no ato dos impostos.

Qual tem mais? Protestante ou católica?

Neste momento, 30-30%. Os outros 30% são outras religiões.

Muitos muçulmanos.

Sim. Mas quer a Igreja Protestante quer a Igreja Católica têm vindo a diminuir o número de fiéis. Os praticantes são depois uma percentagem mais pequena. E isto para os alemães é importante porque, no fundo, quando eles declaram ser de uma destas Igrejas pagam também um imposto acrescido. Se  não sou de nenhuma Igreja, não pago imposto. Mas há mais protestantes a sair do que católicos. E os protestantes têm todas estas coisas liberais. Se os católicos pensam que, por causa disto, vai aumentar o número de fiéis ou vai diminuir o número de saídas, enganam-se. Não é essa a questão. Onde vejo mais vitalidade nas igrejas é quando há conversões, quando há experiências como estas Jornadas Mundiais da Juventude, em que há um entusiasmo por Jesus Cristo, pela fé, pela Igreja, pela oração. Quando vemos aqueles miúdos a fazerem peregrinações a Fátima e a rezar, há ali uma coisa que é diferente, que é mais atrativa.

Mas continua a não responder à pergunta. Se for decidido isso, e tudo indica que é para aí que a Igreja vai, basta ver o relatório de Portugal que foi para Praga, tem essa abertura toda…

Está no relatório que há cristãos ou há católicos de Portugal que acham que isto deve ser pensado. Não é propriamente dizer nós defendemos que isto mude. A reunião em Praga, estive a ver um pouco do debate que foi transmitido online, e as conclusões que saíram – não as finais, porque essas ainda não foram publicadas – é toda ela muito normal. Há um diálogo, há uma sensibilidade, mas longe de haver uma maioria de pessoas que queiram mudar estas coisas.

Isso entra noutro ponto que é aqueles que dizem e que dão a cara, que olham para o Vaticano e dizem que tem que mudar, não se pode ter arcebispos a ganhar quatro ou cinco mil euros a viverem como príncipes e a afastarem-se dos princípios de Jesus. 

Isso estou totalmente de acordo, não tenho dificuldade nenhuma nisso. Nós podemos ser muito mais pobres e devemos até ser menos burgueses. Há muita burguesia neste sentido, entre leigos, sacerdotes e bispos. Mais radicalidade, acho que é por aí que temos que ir, mas não é isso que vai fazer com que haja mais liberalismos éticos ou morais. Tenho uma irmã que é consagrada numa congregação mendicante e batem à porta das pessoas a pedir para comer. Vivem em casinhas. Agora acho que já têm um colchonete mas antes era só um estrado. 

E vão bater à porta das pessoas para pedir comida?

Sim.

Em Lisboa?

Ela está em Roma. Mas esteve aqui uma semana a fazer uma missão. E fez isso. Eu fiquei até um bocadinho preocupado… ‘Mas vais pedir comida aos meus paroquianos?’. Mas, de facto, foi uma experiência impressionante o facto de elas baterem à porta para pedir comida. Almoçam o que lhes dão mas é também uma ocasião de conversa com as pessoas, quando as pessoas lhes abrem a porta. É uma maneira delas evangelizarem. Há ali um uma troca muito interessante e muita gente que se sente muito sozinha nas suas casas, ao verem três freiras a bater na porta, ficam comovidas. É uma coisa bonita. E isto existe hoje. E estas congregações têm muitas vocações e as outras um bocadinho mais liberais não têm vocações. Algures Deus está-nos a dizer isto.

Qual é a necessidade de a pessoa não ter um colchão para dormir?

Isso é a relação que a pessoa tem com Nosso Senhor. E estão disponíveis para renunciar a coisas. Eu tenho colchão para dormir. Não é essa a questão. Mas se a pessoa se sente chamada a renunciar, a uma pobreza mais radical… Jesus disse a certa altura que o filho do homem não tem onde reclinar a cabeça. É uma expressão simbólica. Quer dizer que Deus não está descansado, Jesus não está descansado, está sempre preocupado connosco. Mas a radicalidade  de algumas vocações – de algumas, não temos que generalizar isso – são também ajudas para aqueles que não vivem tão radicalmente a perceberem que há coisas que nós estamos agarrados e são secundárias.

Vou fazer-lhe uma pergunta que lhe pode parecer parva, mas que me ocorre. Na cabeça das pessoas, quando se fala em Opus Dei, pensa-se em dinheiro, normalmente são pessoas ricas. Mas depois são as pessoas que querem autoinfligir sacrifícios…

Os sacrifícios corporais têm que ser muito bem acompanhados por uma boa formação espiritual, se não perdem o sentido, tornam-se uma maluqueira. Mas dentro de um contexto espiritual forte, uma renúncia, o jejum, a ascese, têm efeitos. Também tem a ver isto com a experiência do todo que a pessoa humana é. Mas, insisto, isto são coisas muito delicadas que a gente fala e depois, como não se percebe… Algumas coisas só quem experimenta… que confia…

Mas vemos os cilícios e pensamos ‘por que raio uma pessoa faz isto?’. E tenho a filosofia de que cada um pode fazer o que quiser desde que não incomode o outro… questiono só o que leva a pessoa a fazer isso.

Acho que é um ato espiritual que consiste em dizer a Nosso Senhor que se quer estar mais com os olhos em Deus, no espiritual e no essencial do que na comodidade, no prazer. Estes cilícios ou os pequenos e grandes sacrifícios, jejuns e assim, são momentos muito purificadores. Acho que é mesmo preciso experimentar para se perceber. Agora, há uma coisa nos EUA que é o Exodus que é uma plataforma que faz retiros só para homens em que uma das propostas é que durante o mês, ou durante 40 dias – aliás, têm uma coisa que é 90 dias -, durante 90 dias propõem que se tome banho de água fria, que não se veja televisão, e mais exigências… não sei exatamente os pormenores. Mas tenho acompanhado jovens que dizem que estes retiros online têm sido fantásticos. Fazer a experiência destas coisas ajuda. Não explica esta experiência dizer: só ‘se fizeres isto, vais ter aquilo’, porque depois podes não vir a ter. Estas coisas não funcionam só porque sim. Não é porque me vou chicotear que vou ficar santo. Fico chicoteado, não fico santo. Tem que haver uma oferta da pessoa, se não, não se salva.

Como deve calcular, para quem não tem essa fé, faz um bocado de confusão estar a dar-se primazia à dor em vez de se dar primazia ao prazer.

Mas por isso é que não convém fazer muitas interpretações sem fé. Algumas coisas fazem sentido na fé; sem fé, não se percebem. Mas ao menos que se respeite quem vive assim. Se eles gostarem, quem sou eu para dizer que não podem fazer.

Sim, no sexo também existem os sadomasoquistas.

Há coisas que fazem mal por fazer mal.

Como assim? Dor no prazer?

A dor no sacrifício não se confunde com prazer. A dor num sacrifício é dor, não é uma dor de faz de conta. Mas aquilo que a dor pode ser experimentada como sacrifício, como sentido de oferta – sacrifício quer dizer oferta, eu ofereço-me qualquer coisa -, o sacrifício de ir visitar a avó. Os miúdos têm muitas vezes o sacrifício de ir visitar a avó. Não lhes apetece nada, estão em frente à televisão e querem ficar em casa. Dizemos para fazerem um sacrifício de ir ver a avó que está com Alzheimer, e eles vão. E voltam contentes, mais contentes do que se estivessem a ver televisão. Porquê? Porque foi muito divertido? Não, foi chato. Mas fizeram um ato de amor. E um ato de amor não é só o prazer sexual. Há muito amor que não tem sexualidade nenhuma.

O sofrimento pode ser um ato de amor.

Se for vivido como uma oferta. Se for simplesmente vivido como tipo de pagamento não é amor… Há pessoas que podem viver assim: ‘Vou-me sacrificar para ter assim uma espécie de tesouro, e depois pedir a Deus para comprar graças e favores’. Isso aí não funciona. Conto muitas vezes a história que me contou um capelão do Santuário de Fátima nos anos 80. De uma coisa que se passou ainda antes do 25 de Abril. Uma senhora velhota estava de joelhos à volta da capelinha de Fátima. Deu ali uma, duas, três voltas. O padre vai ter com a senhora e diz-lhe: ‘Nosso Senhor já está contente consigo, já chega’. E ela vira-se para ele e diz: ‘O senhor padre não tem um filho na guerra, pois não?’. E ele disse-me: ‘De, facto, o que é que podia fazer?’ A senhora estava a tentar fazer qualquer coisa para estar em comunhão com Nossa Senhora e poder, com isso, não sei como, ajudar de alguma maneira o filho. Nesse género de coisas, quem sou eu para dizer à senhora que não fizesse aquilo?

Não o incomoda ver aquelas pessoas em Fátima de joelhos?

Nada.

Mesmo a sangrar?

Acho que há exageros. A mim preocupa-me às vezes qual é a motivação que leva… Se é uma motivação comercial com Deus…

O que é uma motivação comercial com Deus?

Como disse, ‘vou fazer este sacrifício e Tu depois dás-me uma graça’. Isso acho uma deturpação da verdade da experiência. Agora, se é um ato de oração… Uma amiga minha dizia-me que desconfiava muito daquilo e, portanto, um dia foi a Fátima, assim, às 4 da manhã, quando não estava lá ninguém. Saiu da casa de retiros onde estava e foi fazer de joelhos desde lá de cima da cruz alta até à capelinha. E foi uma experiência fantástica, disse. Disse que percebeu que, de facto, espiritualmente, aquilo é muito bom. É preciso experimentar.

E acredita que Nossa Senhora apareceu aos pastorinhos?

Ah, isso não tenho dúvidas nenhumas. Tantos sinais, tantas confirmações e tantos efeitos da força que Fátima tem.

Ninguém questiona a força que Fátima tem.

Se fosse baseado numa mentira, acho um bocadinho estranho que Deus Nosso Senhor fosse abençoar uma mentira.

Por que é que só terá então aparecido a três crianças, uma que não via, outra que não ouvia, outra que não falava...

É muito interessante. Muitas vezes também penso se Nossa Senhora, lá no conselho do céu, tivesse que dizer ‘vamos fazer qualquer coisa para aquele mundo que está um bocadinho desorientado’. Se chamasse os marketeers mais competentes para ver como fazer para divulgar bem essa mensagem, creio que ninguém diria que o ideal seria chamar três crianças de um país, na altura em guerra, numa aldeiazinha perdida, de analfabetos… E, no entanto, 100 anos depois, vou para onde for e digo que sou de Portugal, padre português e dizem logo: de ‘Fátima?’. Toda a gente conhece Fátima e, de repente, aquilo pegou. E pegou como? Não pegou só porque foi uma estratégia. Pegou porque há uma graça mais forte. Não é pegável uma coisa destas se não tiver uma coisa mais forte por trás.

Recordo-me sempre que a minha mãe tinha uma fé inabalável, mas não gostava da dor.

Amar a dor não é bom, aceitar a dor como um caminho é que é bom.

Não acha que a moral cristã fez com que as pessoas sofressem durante tantos anos em Portugal? Por exemplo, não havia, nos hospitais a especialidade da dor. As pessoas sofriam porque Nosso Senhor queria. Havia a ideia de que se devia aceitar a dor…

Isso são coisas que, à medida que a ciência se desenvolve, vão sendo postas questões à Igreja e a Igreja muda. Nestas coisas muda. Os hospitais foram inventados pela Igreja. São João de Deus e São Camilo de Lellis foram os grandes fundadores dos hospitais. E fizeram uma coisa tão simples como repartições. Havia já uma espécie de hospitais, mas ia o que partiu a perna e o que estava com doenças contagiosas para o mesmo sítio. E eles começaram a separar em repartições, a cuidar dos doentes, a ajudar. Este é o trabalho que a Igreja tem, de consolação, de consolo, de cura. E, também por isso, muito desenvolvimento científico, mesmo dentro da Medicina, vem de experiências católicas e religiosas. Não só católicas mas também. A questão de podermos ter uma droga que nos tira a dor é uma coisa que a certa altura apareceu e não se sabia. Tínhamos uma doutrina, digamos assim, como é que eu ajudo uma pessoa que está com dores se não consigo tirar-lhe a dor? É dizer ‘aceita essa dor, estou aqui para te ajudar, dou-te a mão, acompanho-te na dor’. De repente, agora há uma coisa que eu posso usar para tirar a dor… Isto é bom ou mau? Houve ali uns anos que a Igreja não sabia como estar diante disso, teve de pensar e de verificar à luz da fé… mas o Papa Pio XII escreveu uma carta a dizer que as anestesias e aquilo que tira a dor são coisas boas. E hoje em dia a Igreja é a grande promotora dos cuidados paliativos. Que é exatamente a pessoa poder não ter dor porque também já se foi percebendo que ter dor torna muito mais fácil uma revolta interior. Não ter dor dá muito mais paz. Isso são coisas que a Igreja muda e ainda bem que há uma evolução científica.

Mas o que os outros querem em relação ao fim do celibato é uma evolução na Igreja.

A Igreja deve-se confrontar…

Antigamente a dor era uma coisa aceite.

O que é uma evolução na Igreja? A meu ver, evolui na Igreja aquele que se aproxima mais do objetivo último da Igreja, que é a santidade. Por exemplo, os mais evoluídos na Igreja são os mais santos. A madre Teresa de Calcutá estava mais evoluída que eu. Isto é o meu objetivo. Não quero ir para a lua. Quero viver a minha vida e a minha vida pode evoluir. Pode crescer na santidade? Posso ser mais caridoso, ter mais fé, mais esperança, estar mais atento às pessoas…

Não tem a ver com estar mais próximo de Sua Santidade?

Não, não quer dizer Sua Santidade, o Papa… quer dizer, também pode ser mais santo. Há um aspeto muito importante na santidade que é a comunhão da Igreja. E toda esta coisa do Sínodo e da sinodalidade só faz sentido por causa daquilo que a Igreja é na sua natureza, que é uma comunhão de pessoas e comunhão quer dizer também encontro, discussão de ideias, partilhas… Toda esta ideia da sinodalidade, como os Papas têm dito, o Papa João Paulo II, o Papa Bento XVI e agora o Papa Francisco, tem muito a ver com esta natureza da Igreja que é a comunhão. Se somos comunhão, então encontremo-nos, falemos, partilhemos…

O que pensa quando olha para o mundo e vê que não é preciso um homem e uma mulher para fazer um filho? Barrigas de aluguer, transexualidade, como olha para estes fenómenos…

Acho que isso são provocações, tentativas muito ligadas a esta ideia de que o homem não tem que responder a ninguém. Sou dono de mim mesmo. Acho que isso não é o ponto. A felicidade dos homens devia estar associada à humildade. Não posso manipular tudo, posso desenvolver isto ou aquilo para ajudar a que as coisas sejam melhores dentro do que elas são. Não posso mudar a natureza das coisas. Ao tentar mudar a natureza das coisas, torno-me numa espécie de criador, de inventor de uma coisa nova. Esta coisa toda do transumanismo, não é só da transexualidade, mas do transumanismo, que no fundo é mais sério do que parece. Vai haver mudanças muito grandes e há muitas coisas a acontecer. E a gente pergunta se isto é feito sobretudo por uma sociedade que não tem diante de si Deus e, portanto, acho que no fundo não tem diante de si o bem comum, de todos, mas tem o bem de indivíduos, porque é isso que eu acho que é diferente. Uma coisa é criarmos uma sociedade em que há uma preocupação pelo bem comum, se calhar esse é o caminho para que haja mais igualdade. Mas não quer dizer que todos, ou este A e B, estejam muito mais felizes. Alguns têm que ceder para haver um bem comum, mais forte. E é diferente do individualismo, do egoísmo, do eu tenho que cuidar de mim e eu tenho que pensar em mim, eu tenho que ter o meu prazer, eu tenho que fazer o que eu quero, porque eu tenho direito a… Esse género de reivindicações individualistas, que é muito misterioso, porque no fundo é uma mistura de uma lógica marxista, que é de reivindicação, com uma lógica liberal, que é do individualismo. Estas duas correntes unidas juntam-se e fazem este transumanismo. A minha pergunta é até onde é que isto nos vai levar. Mas há mudanças que já estão a acontecer agora. Esta coisa do ChatGTP, o que é que isto vai dar? É muito interessante. O jornalista escreve lá três ou quatro coisas e sai dali um artigo fantástico. Que é que isto vai mudar? Não sei bem, mas vai mudar alguma uma coisa. Temos que estar atentos para aproveitar os instrumentos mas também para julgar. A capacidade do homem não é simplesmente de ‘olha, inventou-se, a gente aproveita’. Toda a polémica da bomba atómica, o Einstein inventou a energia atómica e com isso inventou a bomba. E é boa a bomba?  Não. Mas foi boa a energia atómica? Sim. De repente, todas as invenções dos homens são colocadas à liberdade do homem, à sua ética, à sua moral, nós temos muitas coisas que podemos usar bem ou usar mal. E também os conhecimentos.

Inevitavelmente temos que falar da pedofilia. Há uma corrente que diz – embora seja facilmente rebatido por si, penso eu – que uma das razões para estes casos de pedofilia é o celibato.

O celibato tem dado muitos santos. Se uma pessoa é descontrolada e tem que se casar para não ir atacar crianças… Acho um bocadinho estranho. O celibato bem vivido é uma coisa que é exigente. Há muitas quedas, uma coisa é o pecado. A pedofilia não acho que esteja só no campo do pecado, é uma coisa mais complexa. A pedofilia está no campo de uma doença, uma tara. Além de ser crime – e pecado, com certeza, porque é uma violência às crianças. É mais que simplesmente uma falta de castidade. É uma coisa mais profunda. Ligar o celibato a isto é como dizer ‘aqueles tipos são uns selvagens mas pelo menos ponham uma mulher ao pé dele e assim ele está mais calminho’. Não acredito. Se é selvagem, será selvagem mesmo com a mulher ao lado. Acho que a pedofilia é uma coisa muito mais complexa, na sociedade inteira, mas na Igreja é muito triste, é mesmo muito triste. Acho que tem a ver com a falta de fé, uma injustiça que nasce também… uma pessoa que violenta uma criança é uma pessoa que se está nas tintas para ela. É uma falta de caridade. E não se dá conta  sequer que Deus o vai julgar. Então aqueles que depois se põem com questões mais ou menos espirituais envolvidas na pedofilia acho uma coisa escabrosa.

Como coisas espirituais?

Como dizer ‘é Deus que quer que estejas ao pé de mim’. Isso é uma coisa escabrosa e um pecado gravíssimo. Blasfémias mesmo.

Mas por que acha que houve tantos casos na Igreja?

Não sou o primeiro a dizer que não sei, tem a ver com muitas coisas. Há uma crise, em geral, na Igreja, de há uns anos para cá, que pode ter sido causada pela revolução sexual. O pós-Segunda Guerra, introduziu muita desbunda, muita confusão. Pode ser isso também. Mas o pecado dos homens, dentro e fora da Igreja, não foi invenção do século XX. Hoje temos relatórios e mais ou menos sabemos. Não sei o que se passava há 200 anos. Sei que o mundo que tem menos temor de Deus tem mais facilidade em fazer asneiras graves. E isso acontecer dentro da Igreja, a mim, faz-me muita confusão. Como é que não se tem temor de Deus no sentido nobre deste termo. Ter medo de ficar sem Deus, ter medo de ser condenado. Não ter isso e fazer… isto dá para muitos pecados, não é só para a pedofilia, mas para a pedofilia particularmente é muito grave.

E como vê, apesar de o relatório ter identificado 100 padres que cometeram crimes que prescreveram, que a Igreja não os queira afastar? Ou pelo menos que não assuma.

Isso não está dito.

Não há questão de crime porque o crime prescreveu.

O crime prescreveu não é o suficiente para dizer que não se afasta o padre. Tem que haver mais que isso de se saber se o crime não prescreveu. Tem que se ter a certeza que quem o cometeu não está a repetir. Seria crime da parte da Igreja se houvesse uma pessoa que só porque o crime prescreveu há 50 anos ou 30 anos mas continuasse a ser um perigo e nada se fizesse… A Igreja, acho eu, como todas as famílias e sociedades, não pode tolerar nem abusos nem abusadores. Se há uma pessoa que abusa, será verificada e, se, de facto, a pessoa é perigosa, não se permita que ela faça mal. Falta saber o que vai acontecer a estes 100 padres, para já acho uma pena fazerem isto assim levantando suspeitas. As pessoas agora andam todas a olhar para nós e a pensar ‘serás tu um deles?’.

Sente isso na rua?

Não, graças a Deus. Mas é uma sensação estranha. Despachem-se lá o mais depressa possível para ver. Acho que a Igreja é séria e está muito preocupada. Desde o Papa, aos bispos, aos leigos, querem que estas coisas sejam resolvidas. Não acho que vá haver encobrimentos, ninguém quer encobrir mais nada. Agora, também não se quer fazer injustiças, as coisas têm que ter um caminho de justiça. Não vá haver uma falsa acusação. Também já tive colegas meus que foram falsamente acusados, e também digo que é muito difícil, uma pessoa depois fica com o nome marcado para toda a vida e injustamente. É preciso ter um cuidado de averiguação das coisas. A comissão fez as suas averiguações mas, em alguns casos, como ela própria disse, mandou para a Procuradoria para ser mais investigado, não tinham capacidade para uma investigação com aquele detalhe.

Uma última pergunta. O que é um capelão de Sua Santidade?

É decorativo. Confesso que me envergonha um bocadinho o que eu sou. Sou um Monsenhor porque, no fundo, trabalhava nas conferências episcopais da Europa e, como secretário, o presidente pediu ao Papa que me nomeasse Monsenhor. É uma coisa mesmo decorativa. É um título que se dá a uns padres para uma função que exercem. Como tinha uma relação que andava muito com bispos, tinha esta relação de ser Monsenhor.

Mas se formos à internet e colocarmos capelão de Sua Santidade diz que são os herdeiros eunucos..

Isso não sei. Devia ter estudado a história disso mas não faço ideia. Há três tipos de Monsenhor. Eu sou o mais baixinho deles todos. Posso usar a batina com os botões roxos, pequenos detalhes. Hoje em dia, então, o Papa Francisco disse que os Monsenhores só podem ser ou por uma função específica que tenham na Santa Sé ou com mais de 65 anos. Em Portugal nunca houve muito isso, mas numa altura havia algumas dioceses lá fora que muitos padres pediam ao Papa para nomeá-los Monsenhor, assim numa espécie de título de agradecimento.

Tem a ver com o Opus Dei?

Não, não sou do Opus Dei.