A organização e a Guerra


As instituições políticas vão, entretanto, propondo e aprovando novas medidas, a um ritmo que, por vezes, revela, no que às questões jurídicas diz respeito, alguma impaciência e imponderadas expectativas.


Nem a Justiça pode ser percecionada como uma arma de guerra, nem qualquer dos instrumentos jurídicos ao seu serviço devem, também, ser vistos – mesmo que erradamente – como tal.

Mesmo que mais tensos, os dias sucedem-se relativamente calmos e iguais na organização europeia em que trabalho.

Mais trabalho e mais processos envolvendo vários países e associações criminosas, relacionados, maioritariamente, agora, com burlas, extorsões e outros crimes praticados através da internet.

Parece, até, que devíamos inverter o quadro, colocando agora, no plano dos crimes excecionais, todos os que eram considerados os mais comuns, mas que ocorrem, ainda hoje, à margem da internet.

Os magistrados e funcionários de várias nações que trabalham nesta organização, cruzam-se e encontram-se sobretudo à hora das refeições, na sala do seu restaurante privativo: comida muito razoável, tendo em conta o nível da qualidade média da culinária praticada na restauração local.

Sempre a mesma educação, os mesmos sorrisos protocolares, acenos de mãos e a busca das mesas por afinidades nacionais, geográficas e linguísticas.

Em alguns casos, a escolha das mesas para o almoço resulta, também, da integração dos comensais em algum grupo de trabalho, facto que ajudou ao conhecimento mais próximo e pessoal dos que, de várias origens nacionais, se incluem em tais equipas.

Esgotado o tema da COVID, passou-se, nas conversas do dia, ao ciclo das notícias sobre a guerra.

Muitos comensais evitam, todavia, o assunto: parece-lhes indigesto.

Outros discorrem sobre o tema, mas, rapidamente, se calam quando se aproxima alguém que não lhes merece a intimidade e a confiança.

Ninguém diverge, muito ou pouco, da opinião institucional, pelo menos de forma explicita e percetível.

Neste contexto, a organização – por vontade própria ou por sugestão e intervenção das instituições políticas que a geraram – vai acumulando novas funções e prepara-se, por antecipação, para as consequências da guerra.

Tudo passa, agora, por tal prioridade: anos antes, foi a do terrorismo e, depois, a das redes que traficavam com os refugiados.

Para atender a essas prioridades, foram, entretanto, empenhados na organização mais e mais fundos. 

Passou-se, assim, de um ciclo a outro sem que, contudo, alguém tivesse decretado o fim dos anteriores.

As instituições políticas vão, entretanto, propondo e aprovando novas medidas, a um ritmo que, por vezes, revela, no que às questões jurídicas diz respeito, alguma impaciência e imponderadas expectativas.

Não raro, tais medidas parecem não coincidir – contrariando mesmo algumas – os princípios básicos estabelecidos nos tratados fundacionais e nas cartas de direitos que deram a atual configuração política à União e legitimidade à organização: princípios que são, também, os únicos a permitir validar a sua intervenção indireta nos conflitos provocados pela guerra.

Isso obriga, não raramente, os aplicadores do Direito a uma sua leitura enviesada, que busca, sobretudo, reconduzir tais medidas aos valores constitutivos por que devem reger a sua intervenção.

Há, todavia, como em todo o lado, quem sobrevoe tais princípios e quem, na verdade, mal os conheça.

Isso torna, por vezes, a discussão de algumas matérias e propostas numa conversa sem sentido.

As diferenças na formação e cultura jurídicas de muitos – e na organização existem-nos com histórias bem diferentes – ressalta, assim, de uma maneira mais patente, quando se discutem assuntos que tanto podem ser analisados política, como juridicamente e, mais ainda, quando as duas componentes se cruzam.

Acontece que a maioria deles, tem, de facto, essas duas facetas.

Na verdade, isso sucede com todos, ou quase todos, os assuntos: no que respeita à guerra, porém, o que sobreleva é, devido à importância dos crimes e valores em causa, não só o risco de, politicamente, se pisarem linhas vermelhas do Estado de Direito, como o de se obterem resultados evidentemente contrários aos objetivos que presidiram à sua proposta e adoção.

O perigo no complexo esforço legitimador dos aplicadores das leis que, inevitável e incessantemente, se segue à sua adoção, tantas vezes imponderada, é o de, em consequência, acabarem por subverter de tal maneira a harmonia do sistema jurídico-judiciário que, em última análise, este perde coerência e adesão à realidade e ao Direito instituído.

Recordo aqui, a propósito de algumas ideias, não ainda definitiva e formalmente configuradas como propostas, o que diz o artigo 47.º a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia:

«Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei.»

Na discussão de algumas medidas inovadoras, de exceção em exceção, tem-se, por vezes, a sensação, incómoda e politicamente perigosa, de que, fechando os olhos, todos se começam a assemelhar um pouco: os de cá e os de lá.

A mínima possibilidade de, assim, se formar uma perceção pública de que tais semelhanças existem realmente, mesmo que totalmente desfocada da realidade, afeta, de imediato, pesadamente, a convicção dos que têm de aplicar as leis.

Isto, hoje, quando os tribunais europeus, e logo os nacionais – e bem – vêm apertando a rede das garantias processuais devidas a um processo justo e, nesse sentido, desenvolvem um controlo apurado sobre a conformidade das normas que dão vida aos instrumentos de cooperação usados pela organização e pelos magistrados nacionais.

Assim, o facto de, com franqueza, se dizer o que se pensa sobre a premência desprevenida de algumas de tais propostas, não pode, nem deve surpreender ou despertar qualquer tipo de reação negativa.

Na realidade, isso nunca aconteceu até hoje no seio da organização, e a utilidade do confronto dos diferentes pontos de vista foi aí sempre valorizado.

Por isso, todos continuam a nela coexistir amigavelmente, não se inibindo, os que pensam de uma maneira ou de outra, de anotar o que julgam ser as incongruências de algumas de tais ideias e propostas e as consequências temerárias que delas podem resultar.

Com prudência, e mesmo com alguma subtileza para não abalar a confiança mútua, procuram fazê-lo sem confrontar nem os proponentes das medidas mais voluntariosas e precipitadamente divulgadas, nem os eventuais supostos beneficiários das mesmas.

Se certas arestas mais agudas de algumas menos bem dilucidadas propostas não forem, em devido tempo, limadas, os resultados que, com elas, se pretendem alcançar serão contraproducentes, mesmo do ponto de vista político.

Pior, arriscam comprometer, também, se mal configuradas e efetivamente usadas, a validade jurídica dos resultados já alcançados, sem problemas legais, através do uso regular dos instrumentos jurídicos já em vigor.

A Justiça nacional ou supranacional não pode ser percecionada como uma arma de guerra, nem qualquer dos instrumentos jurídicos e judiciários ao seu serviço devem, também, ser vistos – mesmo que erradamente – como tal.

Para preservar a fiabilidade internacional alcançada pela organização, é, pois, necessário que todos continuem, no seu âmbito, a assumir, como sempre aconteceu, os princípios jurídico-constitucionais que legitimam a sua intervenção.

São eles que, a nível interno, asseguram a confiança mútua e que, externamente, credibilizam a organização nos países terceiros que, com ela, aceitam, normalmente, colaborar.

Também no que respeita à Justiça internacional, o que parece é.   

 

A organização e a Guerra


As instituições políticas vão, entretanto, propondo e aprovando novas medidas, a um ritmo que, por vezes, revela, no que às questões jurídicas diz respeito, alguma impaciência e imponderadas expectativas.


Nem a Justiça pode ser percecionada como uma arma de guerra, nem qualquer dos instrumentos jurídicos ao seu serviço devem, também, ser vistos – mesmo que erradamente – como tal.

Mesmo que mais tensos, os dias sucedem-se relativamente calmos e iguais na organização europeia em que trabalho.

Mais trabalho e mais processos envolvendo vários países e associações criminosas, relacionados, maioritariamente, agora, com burlas, extorsões e outros crimes praticados através da internet.

Parece, até, que devíamos inverter o quadro, colocando agora, no plano dos crimes excecionais, todos os que eram considerados os mais comuns, mas que ocorrem, ainda hoje, à margem da internet.

Os magistrados e funcionários de várias nações que trabalham nesta organização, cruzam-se e encontram-se sobretudo à hora das refeições, na sala do seu restaurante privativo: comida muito razoável, tendo em conta o nível da qualidade média da culinária praticada na restauração local.

Sempre a mesma educação, os mesmos sorrisos protocolares, acenos de mãos e a busca das mesas por afinidades nacionais, geográficas e linguísticas.

Em alguns casos, a escolha das mesas para o almoço resulta, também, da integração dos comensais em algum grupo de trabalho, facto que ajudou ao conhecimento mais próximo e pessoal dos que, de várias origens nacionais, se incluem em tais equipas.

Esgotado o tema da COVID, passou-se, nas conversas do dia, ao ciclo das notícias sobre a guerra.

Muitos comensais evitam, todavia, o assunto: parece-lhes indigesto.

Outros discorrem sobre o tema, mas, rapidamente, se calam quando se aproxima alguém que não lhes merece a intimidade e a confiança.

Ninguém diverge, muito ou pouco, da opinião institucional, pelo menos de forma explicita e percetível.

Neste contexto, a organização – por vontade própria ou por sugestão e intervenção das instituições políticas que a geraram – vai acumulando novas funções e prepara-se, por antecipação, para as consequências da guerra.

Tudo passa, agora, por tal prioridade: anos antes, foi a do terrorismo e, depois, a das redes que traficavam com os refugiados.

Para atender a essas prioridades, foram, entretanto, empenhados na organização mais e mais fundos. 

Passou-se, assim, de um ciclo a outro sem que, contudo, alguém tivesse decretado o fim dos anteriores.

As instituições políticas vão, entretanto, propondo e aprovando novas medidas, a um ritmo que, por vezes, revela, no que às questões jurídicas diz respeito, alguma impaciência e imponderadas expectativas.

Não raro, tais medidas parecem não coincidir – contrariando mesmo algumas – os princípios básicos estabelecidos nos tratados fundacionais e nas cartas de direitos que deram a atual configuração política à União e legitimidade à organização: princípios que são, também, os únicos a permitir validar a sua intervenção indireta nos conflitos provocados pela guerra.

Isso obriga, não raramente, os aplicadores do Direito a uma sua leitura enviesada, que busca, sobretudo, reconduzir tais medidas aos valores constitutivos por que devem reger a sua intervenção.

Há, todavia, como em todo o lado, quem sobrevoe tais princípios e quem, na verdade, mal os conheça.

Isso torna, por vezes, a discussão de algumas matérias e propostas numa conversa sem sentido.

As diferenças na formação e cultura jurídicas de muitos – e na organização existem-nos com histórias bem diferentes – ressalta, assim, de uma maneira mais patente, quando se discutem assuntos que tanto podem ser analisados política, como juridicamente e, mais ainda, quando as duas componentes se cruzam.

Acontece que a maioria deles, tem, de facto, essas duas facetas.

Na verdade, isso sucede com todos, ou quase todos, os assuntos: no que respeita à guerra, porém, o que sobreleva é, devido à importância dos crimes e valores em causa, não só o risco de, politicamente, se pisarem linhas vermelhas do Estado de Direito, como o de se obterem resultados evidentemente contrários aos objetivos que presidiram à sua proposta e adoção.

O perigo no complexo esforço legitimador dos aplicadores das leis que, inevitável e incessantemente, se segue à sua adoção, tantas vezes imponderada, é o de, em consequência, acabarem por subverter de tal maneira a harmonia do sistema jurídico-judiciário que, em última análise, este perde coerência e adesão à realidade e ao Direito instituído.

Recordo aqui, a propósito de algumas ideias, não ainda definitiva e formalmente configuradas como propostas, o que diz o artigo 47.º a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia:

«Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei.»

Na discussão de algumas medidas inovadoras, de exceção em exceção, tem-se, por vezes, a sensação, incómoda e politicamente perigosa, de que, fechando os olhos, todos se começam a assemelhar um pouco: os de cá e os de lá.

A mínima possibilidade de, assim, se formar uma perceção pública de que tais semelhanças existem realmente, mesmo que totalmente desfocada da realidade, afeta, de imediato, pesadamente, a convicção dos que têm de aplicar as leis.

Isto, hoje, quando os tribunais europeus, e logo os nacionais – e bem – vêm apertando a rede das garantias processuais devidas a um processo justo e, nesse sentido, desenvolvem um controlo apurado sobre a conformidade das normas que dão vida aos instrumentos de cooperação usados pela organização e pelos magistrados nacionais.

Assim, o facto de, com franqueza, se dizer o que se pensa sobre a premência desprevenida de algumas de tais propostas, não pode, nem deve surpreender ou despertar qualquer tipo de reação negativa.

Na realidade, isso nunca aconteceu até hoje no seio da organização, e a utilidade do confronto dos diferentes pontos de vista foi aí sempre valorizado.

Por isso, todos continuam a nela coexistir amigavelmente, não se inibindo, os que pensam de uma maneira ou de outra, de anotar o que julgam ser as incongruências de algumas de tais ideias e propostas e as consequências temerárias que delas podem resultar.

Com prudência, e mesmo com alguma subtileza para não abalar a confiança mútua, procuram fazê-lo sem confrontar nem os proponentes das medidas mais voluntariosas e precipitadamente divulgadas, nem os eventuais supostos beneficiários das mesmas.

Se certas arestas mais agudas de algumas menos bem dilucidadas propostas não forem, em devido tempo, limadas, os resultados que, com elas, se pretendem alcançar serão contraproducentes, mesmo do ponto de vista político.

Pior, arriscam comprometer, também, se mal configuradas e efetivamente usadas, a validade jurídica dos resultados já alcançados, sem problemas legais, através do uso regular dos instrumentos jurídicos já em vigor.

A Justiça nacional ou supranacional não pode ser percecionada como uma arma de guerra, nem qualquer dos instrumentos jurídicos e judiciários ao seu serviço devem, também, ser vistos – mesmo que erradamente – como tal.

Para preservar a fiabilidade internacional alcançada pela organização, é, pois, necessário que todos continuem, no seu âmbito, a assumir, como sempre aconteceu, os princípios jurídico-constitucionais que legitimam a sua intervenção.

São eles que, a nível interno, asseguram a confiança mútua e que, externamente, credibilizam a organização nos países terceiros que, com ela, aceitam, normalmente, colaborar.

Também no que respeita à Justiça internacional, o que parece é.