Este artigo de opinião, parte da perceção de existir um desconhecimento generalizado sobre o enquadramento legal do “estatuto do denunciante”, gerando ideias incompletas ou erradas sobre direitos, deveres e garantias, daí que se coloque em nota de rodapé a base legal do que se refere.
«Os trabalhadores da Administração Pública e de empresas do setor empresarial do Estado, assim como os trabalhadores do setor privado, que denunciem o cometimento de infrações de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções ou por causa delas não podem, sob qualquer forma, incluindo a transferência não voluntária ou o despedimento, ser prejudicados»[1].
O Regime Geral de Proteção de Denunciantes de Infrações (RGPDI)[2], prevê[3] que a pessoa singular que denuncie ou divulgue publicamente uma infração, incluindo a prática de crimes[4], com fundamento em informações obtidas no âmbito da sua atividade profissional, independentemente da natureza desta atividade e do setor em que é exercida, é considerada denunciante.
O RGPDI prevê ainda que podem ser considerados denunciantes, nomeadamente (portanto, a título exemplificativo) os trabalhadores do setor privado, social ou público; os prestadores de serviços, contratantes, subcontratantes e fornecedores, bem como quaisquer pessoas que atuem sob a sua supervisão e direção; os titulares de participações sociais e as pessoas pertencentes a órgãos de administração ou de gestão ou a órgãos fiscais ou de supervisão de pessoas coletivas, incluindo membros não executivos; e os voluntários e estagiários, remunerados ou não remunerados.
Não obsta à consideração de pessoa singular como denunciante a circunstância de a denúncia ou de a divulgação pública de uma infração ter por fundamento informações obtidas numa relação profissional entretanto cessada, bem como durante o processo de recrutamento ou durante outra fase de negociação pré-contratual de uma relação profissional constituída ou não constituída.
Para beneficiar das condições de proteção conferidas pelo RGPDI, isto é, situações de proibição de retaliação (licitas – não proibidas por lei) e medidas de apoio[5], o denunciante tem de estar de boa-fé, ter fundamento sério para crer que as informações são, no momento da denúncia ou da divulgação pública, verdadeiras e respeitar as regras de precedência entre os meios de denúncia interna e externa e a divulgação pública[6].
Refira-se ainda que a proteção conferida pelo RGPDI é extensível, com as devidas adaptações, a pessoa singular que auxilie o denunciante no procedimento de denúncia e cujo auxílio deva ser confidencial, incluindo representantes sindicais ou representantes dos trabalhadores; terceiro que esteja ligado ao denunciante, designadamente colega de trabalho ou familiar, e possa ser alvo de retaliação num contexto profissional; bem como pessoas coletivas ou entidades equiparadas que sejam detidas ou controladas pelo denunciante, para as quais o denunciante trabalhe ou com as quais esteja de alguma forma ligado num contexto profissional.
O disposto no RGPDI não deve prejudicar a aplicação de outras disposições de proteção de denunciantes mais favoráveis ao denunciante ou às pessoas referidas, bem como não prejudica a aplicação do direito nacional ou da União Europeia sobre a proteção de informações classificadas; a proteção do segredo religioso e do segredo profissional do médico, dos advogados e dos jornalistas; e o segredo de justiça.
No que respeita ao segredo religioso e dos jornalistas, o legislador nacional foi além do que previa o legislador europeu, numa norma que não é de harmonização mínima, isto é, em que há margem para os países poderem ir além das regras previstas na diretiva, tal como a que permite que os Estados-Membros alarguem a proteção de denunciantes a domínios ou atos não abrangidos no âmbito de aplicação material da Diretiva Whistleblowers[7].
Crê-se que o legislador nacional tentou compatibilizar o normativo europeu com o Código do Processo Penal (CPP), no que respeita à possibilidade[8] de os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas, a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo, poderem escusar-se de depor sobre os factos por ele abrangidos.
Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. No entanto algumas regras[9], não se aplicam ao segredo religioso. Este tipo de segredo tem maior proteção do que os demais.
A proteção do segredo religioso, blinda não só o titular do segredo, nos termos do CPP, como também quem o conhece por lhe ser permitido o direito ao silêncio, nos termos do artigo Lei de Liberdade Religiosa[10] e da Concordata entre a República Portuguesa e a Santa Sé[11], a saber: os ministros do culto/eclesiásticos não podem ser perguntados pelos magistrados ou outras autoridades sobre factos e coisas de que tenham tido conhecimento por motivo do seu ministério.
A liberdade de consciência, de religião e de culto está consagrada na Constituição da República Portuguesa[12]. Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa e, de igual modo, deve ser garantido o direito à objeção de consciência.
De acordo com a Lei de Liberdade Religiosa[13], a liberdade de consciência compreende o direito de objetar ao cumprimento de leis que contrariem os ditames impreteríveis da própria consciência, dentro dos limites dos direitos e deveres impostos pela Constituição e nos termos da lei que regula o exercício da objeção de consciência.
Consideram-se impreteríveis aqueles ditames da consciência cuja violação implica uma ofensa grave à integridade moral que torne inexigível outro comportamento.
Todavia, para efeitos da referida lei, o exercício do ministério é considerado atividade profissional do ministro do culto quando lhe proporciona meios de sustento[14].
Assim sendo, poderá ser considerado denunciante e protegido pela lei, a pessoa (o ministro de culto/eclesiástico) que denuncie ou divulgue publicamente crimes que envolvam menores com fundamento em informações obtidas no âmbito da sua atividade profissional, incluindo no setor social, a partir da entrada em vigor do RGPDI[15], não podendo, sob qualquer forma, ser prejudicado.
Note-se que, em situações anteriores ao RGPDI, salvo melhor opinião, não encontramos enquadramento legal para que um queixoso da prática de crimes ou infrações disciplinares possa ter o “estatuto de denunciante”, se a sua atividade profissional não se enquadrar no setor público ou privado.
[1] Assim dispõe o artigo 4.º da Lei n.º 19/2008, de 21 de abril, alterada pela Lei n.º 30/2015, de 22 de abril.
[2] Estabelecido pela Lei n.º 93/2021, de 20 de dezembro, e que transpôs para ordenamento jurídico nacional a Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019 (Diretiva Whistleblowers), relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do direito da União
[3] No artigo 5.º.
[4] Tais como os previstos na alínea d) do n.º 1 do artigo 2.º.
[5] Artigos 21.º e 22.º.
[6] Previstos, sobretudo, no artigo 7.º.
[7] Artigo 2.º, n.º 2.
[8] Cf. artigo 135.º.
[9] As previstas nos n.os 3 e 4 do artigo 135.º.
[10] Cf. artigo 16.º da Lei n.º 16/2001, de 22 de junho, na sua versão em vigor.
[11] Artigo 5.º
[12] Artigo 41.º.
[13] Artigo 12.º
[14] Cf. artigo 16.º, n.º 3.
[15] A partir de 18 de junho de 2022, nos termos do artigo 31.º do RGPDI.