Quando o sol ainda estava alto sobre Rio Águeda e sobre o Cais das Laranjeiras, o meu avô Joaquim sentava-se numa cadeira de palhinha de estender, no Quarto Grande da Casa de São Bernardo a fazer as palavras cruzadas de O Primeiro de Janeiro, assim todas de enfiada, à uma, verticais ou horizontais, pouco importava, ele começava numa ponta e acabava na outra, sabia todas as respostas, desde rio da Suíça com dois A a ara, só para não sair da primeira letra do alfabeto, e depois dedicava um bocado de tempo a abrir os Atlas à minha frente e a mostrar-me com a ponta do dedo indicador sempre suave e bem cuidado onde ficavam as velhas ruínas de Pagan, o curso do Irrawaddy, Timbuktu das ruas de tijolos de ouro e Abu Simbel sempre a descer por ali abaixo às nascentes do Nilo com “Mr. Livingstone, I presume…” incluído porque ele era uma enciclopédia ambulante e sabia tudo, mesmo tudo, nunca lhe fiz uma pergunta que tivesse ficado sem explicação completa para minha imensa sede de aprender com ele. Havia muito calor nesses Setembros, os dióspiros esbeiçavam-se no chão com as vespas excitadas em redor de toda aquela doçura que lhes caíra positivamente do céu, o meu avô também me caiu do céu, pouca gente terá tido um avô tão profundamente e tão profundamente sábio, agradeço para todo o sempre a felicidade de o ter tido e continua a doer-me a sua ausência, todos os dias, apesar de a morte o ter levado há quase quarenta anos. Quando, por fim, me levantei da cadeira da vida e fui em busca dos arrozais que ele me descreveu de um verde esmeraldino nos campos do Laos, do Vietname e do Cambodja, ainda não sonhava sequer que um dia viveria numa casa que tem uma varanda sobre o Sado e sobre os arrozais verdes esmeraldinos que estão do lado de lá da corrente castanha da água que neste momento corre para poente porque a maré vai baixando. E toda a pacificação do redor talvez queira dizer que estou cada vez mais próximo da maré vazia da minha vida.
Maré vazante
Havia muito calor nesses Setembros, os dióspiros esbeiçavam-se no chão com as vespas excitadas em redor de toda aquela doçura que lhes caíra positivamente do céu, o meu avô também me caiu do céu, pouca gente terá tido um avô tão profundamente e tão profundamente sábio, agradeço para todo o sempre a felicidade de o…
JORNAL I
-
Edição de
Maré vazante
Havia muito calor nesses Setembros, os dióspiros esbeiçavam-se no chão com as vespas excitadas em redor de toda aquela doçura que lhes caíra positivamente do céu, o meu avô também me caiu do céu, pouca gente terá tido um avô tão profundamente e tão profundamente sábio, agradeço para todo o sempre a felicidade de o…
Quando o sol ainda estava alto sobre Rio Águeda e sobre o Cais das Laranjeiras, o meu avô Joaquim sentava-se numa cadeira de palhinha de estender, no Quarto Grande da Casa de São Bernardo a fazer as palavras cruzadas de O Primeiro de Janeiro, assim todas de enfiada, à uma, verticais ou horizontais, pouco importava, ele começava numa ponta e acabava na outra, sabia todas as respostas, desde rio da Suíça com dois A a ara, só para não sair da primeira letra do alfabeto, e depois dedicava um bocado de tempo a abrir os Atlas à minha frente e a mostrar-me com a ponta do dedo indicador sempre suave e bem cuidado onde ficavam as velhas ruínas de Pagan, o curso do Irrawaddy, Timbuktu das ruas de tijolos de ouro e Abu Simbel sempre a descer por ali abaixo às nascentes do Nilo com “Mr. Livingstone, I presume…” incluído porque ele era uma enciclopédia ambulante e sabia tudo, mesmo tudo, nunca lhe fiz uma pergunta que tivesse ficado sem explicação completa para minha imensa sede de aprender com ele. Havia muito calor nesses Setembros, os dióspiros esbeiçavam-se no chão com as vespas excitadas em redor de toda aquela doçura que lhes caíra positivamente do céu, o meu avô também me caiu do céu, pouca gente terá tido um avô tão profundamente e tão profundamente sábio, agradeço para todo o sempre a felicidade de o ter tido e continua a doer-me a sua ausência, todos os dias, apesar de a morte o ter levado há quase quarenta anos. Quando, por fim, me levantei da cadeira da vida e fui em busca dos arrozais que ele me descreveu de um verde esmeraldino nos campos do Laos, do Vietname e do Cambodja, ainda não sonhava sequer que um dia viveria numa casa que tem uma varanda sobre o Sado e sobre os arrozais verdes esmeraldinos que estão do lado de lá da corrente castanha da água que neste momento corre para poente porque a maré vai baixando. E toda a pacificação do redor talvez queira dizer que estou cada vez mais próximo da maré vazia da minha vida.
JORNAL I
-
Edição de