Em vez de um, oito Chega – batota e democracia sem qualidade


É possível avançar para a revisão da Constituição sem ter apresentado a questão aos eleitores, nem pedido qualquer tipo de mandato. É assustador: nesta matéria, não temos um Chega; temos oito.


Se me dissessem que iria acontecer, eu não ia acreditar. Há vários factos que vão acontecendo e degradam a qualidade da nossa democracia. Mas que pudesse chegar-se ao ponto de alvejar a própria Constituição, de a atingir não só no texto, mas na alma, e de aqueles que a golpeiam serem não um ou outro, mas todos ao mesmo tempo, parecer-me-ia impossível. Não estranharia tanto o atrevimento, mas a insanidade política de o fazerem.

A Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, na Assembleia da República, é a arena a que está entregue este atentado à qualidade da democracia. O cortejo foi inaugurado a 6 de Outubro de 2022, quando o Chega apresentou o seu projecto de revisão. Nada de muito novo: havia feito o mesmo na legislatura anterior. Porém, enquanto anteriormente o Chega foi deixado sozinho e o processo acabaria por expirar, desta feita seria bem diferente: não um, não dois, não três, mas todos os outros sete partidos com assento parlamentar decidiram juntar-se ao Chega, apresentando também projectos de revisão constitucional no limite do prazo: a 11 de Novembro, deram entrada os textos de BE, PS, IL, Livre, PCP, PSD e PAN. Este é o cortejo partidário e parlamentar de destino incerto, contra a democracia e a cidadania em Portugal. Era inimaginável. Merece o mais severo repúdio e condenação.

A estranheza não está em que pudesse ser aberta uma revisão constitucional ordinária. Desde 2009, cinco anos após a última revisão ordinária, que nova revisão poderia acontecer. Mas, na verdade, passaram quatro legislaturas sem que nada acontecesse – a não ser, na última, a iniciativa isolada e inconsequente do Chega. Ao longo de todos estes 13 anos (2009 a 2022), ninguém dissera pretender nova revisão constitucional, nem em que matérias, por que razões e com que propostas. Mesmo o Chega, que sacara da cartola um projecto na legislatura anterior, nada disse para esta legislatura de 2022/26 – olhando os seus programa eleitoral e programa político, sem uma única palavra a este respeito, o natural era presumir que o Chega abandonara aquela intenção.

Dir-se-á que não surpreende o Chega, em 2022, ir à cartola repetir furtivamente o que já fizera em 2020. Tê-lo escondido dos eleitores seria tradução da natureza antidemocrática que lhe denunciam. Mas já merece surpresa que todos os partidos tenham feito o mesmo, apoiando o Chega, acompanhando-o e seguindo-o no mesmíssimo movimento antidemocrático contra a Constituição. Bloco de Esquerda, Partido Socialista, Iniciativa Liberal, Livre, Partido Comunista Português, Partido Social-Democrata e Pessoas-Animais-Natureza decidiram agir em conformidade com a doutrina democrática e constitucional do Chega: é possível avançar para a revisão da Constituição sem ter apresentado a questão aos eleitores, nem pedido qualquer tipo de mandato. É assustador: nesta matéria, não temos um Chega; temos oito. Se me dissessem que iria acontecer, eu não ia acreditar. E você?

As eleições foram a 30 de Janeiro de 2022. Se alguém perguntasse, em 31 de Janeiro, se ia haver revisão constitucional nesta legislatura, a resposta seria certamente negativa – e a pergunta considerada disparatada. Não é imaginável rever a Constituição em modo caixa de surpresas. Mesmo que o Chega, no habitual modo provocador, dissesse ir apresentar projecto, o mais natural é que fosse deixado a falar sozinho, como na legislatura anterior. Na verdade, nem BE, PCP ou Livre, nem PS ou PSD, nem IL ou PAN tinham apresentado qualquer ideia, sugestão ou proposta de revisão constitucional nos debates eleitorais, nem escrito uma só palavra a seu respeito nos programas eleitorais com que se apresentaram aos eleitores. Numa democracia normal, transparente e saudável, a conclusão é só uma: rever a Constituição estava totalmente fora da agenda. Afinal… havia batota generalizada.

A nossa Constituição não surgiu numa gruta. Foi feita em largo e longo debate democrático aberto. Começou nas eleições constituintes, as primeiras a seguir ao 25 de Abril. Todos os partidos expuseram ideias e propostas, de que resultaram os projectos de Constituição apresentados pelos que elegeram deputados: PS, PPD, PCP, CDS, MDP/CDE e UDP. Aprovada em 1976, a Constituição teria revisões ordinárias em 1982, 1989, 1997 e 2004, sempre na sequência de debate democrático aberto na sociedade e de intenções anunciadas nos debates e programas eleitorais dos principais partidos. As últimas, em 1997 e 2004, têm ponto de partida, nomeadamente, nos programas eleitorais de PS e PSD nas eleições de 1995 e 2002. Foi preciso chegar a 2022 para assistirmos a este vergonhoso atropelo do que é básico e elementar em democracia.

Também pode haver revisões extraordinárias, como em 1992, 2001 e 2005. São revisões pontuais, limitadas, dirigidas a questões específicas, que poderiam não ser previsíveis de antemão. Por isso, a Constituição diz que, nestes casos, “a Assembleia da República pode (…) assumir em qualquer momento poderes de revisão extraordinária por maioria de quatro quintos dos Deputados em efetividade de funções.” Mas, tratando-se de revisão ordinária, com objecto amplo, em que “a Assembleia da República pode rever a Constituição decorridos cinco anos sobre a data da publicação da última lei de revisão ordinária”, o dever dos partidos é, nas eleições que abrem a legislatura de revisão, anunciarem as suas intenções e ideias. Se apresentam, nos programas e debates eleitorais, propósitos legislativos sobre as matérias mais diversas e propostas de medidas de governo, como entender que, no tocante à Constituição – a lei das leis -, silenciassem intuitos e agissem pela calada?

A Constituição, no artigo 1.º, define: “Portugal é uma República soberana, baseada (…) na vontade popular (…).” Qual é a dúvida? Como pôde a vontade popular, em 2022, exprimir-se de alguma maneira sobre a revisão ordinária da Constituição? Os eleitores foram enganados. 

A Constituição acrescenta no artigo 2.º: “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, (…) na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais (…), visando (…) o aprofundamento da democracia participativa.” Qual é a dúvida? Como é possível violar neste grau o Estado de direito democrático e esmagar, quanto à própria Constituição, a democracia representativa e os mínimos da democracia participativa? Os eleitores foram impedidos de se informar e de exercer os seus direitos.

A Constituição remata no artigo 3.º: “A soberania (…) reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição.” Qual é a dúvida? Todas estas (e outras) expressões, terminando nesta última, mereceriam odes ditirâmbicas sobre a nossa excelência democrática. É lamentável que a soberania esteja a ser furtada por partidos e deputados, agindo nas costas do povo e com desprezo dos cidadãos eleitores.

A democracia apaga-se quando os representantes usurpam o poder que é dos representados e o manejam em superficial legalidade formal, violando a sua legitimidade substancial. A democracia degrada-se quando capturada por grupos que interagem sem aquele mandato democrático cuja transparência é indispensável à saúde do ambiente político. Já aconteceu chegar-se, assim, à ruptura ou à ditadura. O entretanto é um pântano apodrecido de descrença generalizada, porque se destruiu a confiança nas leis e desgastou o crédito das instituições.

 

Advogado

Subscritor do “Manifesto: Por 

Uma Democracia de Qualidade”

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

Em vez de um, oito Chega – batota e democracia sem qualidade


É possível avançar para a revisão da Constituição sem ter apresentado a questão aos eleitores, nem pedido qualquer tipo de mandato. É assustador: nesta matéria, não temos um Chega; temos oito.


Se me dissessem que iria acontecer, eu não ia acreditar. Há vários factos que vão acontecendo e degradam a qualidade da nossa democracia. Mas que pudesse chegar-se ao ponto de alvejar a própria Constituição, de a atingir não só no texto, mas na alma, e de aqueles que a golpeiam serem não um ou outro, mas todos ao mesmo tempo, parecer-me-ia impossível. Não estranharia tanto o atrevimento, mas a insanidade política de o fazerem.

A Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, na Assembleia da República, é a arena a que está entregue este atentado à qualidade da democracia. O cortejo foi inaugurado a 6 de Outubro de 2022, quando o Chega apresentou o seu projecto de revisão. Nada de muito novo: havia feito o mesmo na legislatura anterior. Porém, enquanto anteriormente o Chega foi deixado sozinho e o processo acabaria por expirar, desta feita seria bem diferente: não um, não dois, não três, mas todos os outros sete partidos com assento parlamentar decidiram juntar-se ao Chega, apresentando também projectos de revisão constitucional no limite do prazo: a 11 de Novembro, deram entrada os textos de BE, PS, IL, Livre, PCP, PSD e PAN. Este é o cortejo partidário e parlamentar de destino incerto, contra a democracia e a cidadania em Portugal. Era inimaginável. Merece o mais severo repúdio e condenação.

A estranheza não está em que pudesse ser aberta uma revisão constitucional ordinária. Desde 2009, cinco anos após a última revisão ordinária, que nova revisão poderia acontecer. Mas, na verdade, passaram quatro legislaturas sem que nada acontecesse – a não ser, na última, a iniciativa isolada e inconsequente do Chega. Ao longo de todos estes 13 anos (2009 a 2022), ninguém dissera pretender nova revisão constitucional, nem em que matérias, por que razões e com que propostas. Mesmo o Chega, que sacara da cartola um projecto na legislatura anterior, nada disse para esta legislatura de 2022/26 – olhando os seus programa eleitoral e programa político, sem uma única palavra a este respeito, o natural era presumir que o Chega abandonara aquela intenção.

Dir-se-á que não surpreende o Chega, em 2022, ir à cartola repetir furtivamente o que já fizera em 2020. Tê-lo escondido dos eleitores seria tradução da natureza antidemocrática que lhe denunciam. Mas já merece surpresa que todos os partidos tenham feito o mesmo, apoiando o Chega, acompanhando-o e seguindo-o no mesmíssimo movimento antidemocrático contra a Constituição. Bloco de Esquerda, Partido Socialista, Iniciativa Liberal, Livre, Partido Comunista Português, Partido Social-Democrata e Pessoas-Animais-Natureza decidiram agir em conformidade com a doutrina democrática e constitucional do Chega: é possível avançar para a revisão da Constituição sem ter apresentado a questão aos eleitores, nem pedido qualquer tipo de mandato. É assustador: nesta matéria, não temos um Chega; temos oito. Se me dissessem que iria acontecer, eu não ia acreditar. E você?

As eleições foram a 30 de Janeiro de 2022. Se alguém perguntasse, em 31 de Janeiro, se ia haver revisão constitucional nesta legislatura, a resposta seria certamente negativa – e a pergunta considerada disparatada. Não é imaginável rever a Constituição em modo caixa de surpresas. Mesmo que o Chega, no habitual modo provocador, dissesse ir apresentar projecto, o mais natural é que fosse deixado a falar sozinho, como na legislatura anterior. Na verdade, nem BE, PCP ou Livre, nem PS ou PSD, nem IL ou PAN tinham apresentado qualquer ideia, sugestão ou proposta de revisão constitucional nos debates eleitorais, nem escrito uma só palavra a seu respeito nos programas eleitorais com que se apresentaram aos eleitores. Numa democracia normal, transparente e saudável, a conclusão é só uma: rever a Constituição estava totalmente fora da agenda. Afinal… havia batota generalizada.

A nossa Constituição não surgiu numa gruta. Foi feita em largo e longo debate democrático aberto. Começou nas eleições constituintes, as primeiras a seguir ao 25 de Abril. Todos os partidos expuseram ideias e propostas, de que resultaram os projectos de Constituição apresentados pelos que elegeram deputados: PS, PPD, PCP, CDS, MDP/CDE e UDP. Aprovada em 1976, a Constituição teria revisões ordinárias em 1982, 1989, 1997 e 2004, sempre na sequência de debate democrático aberto na sociedade e de intenções anunciadas nos debates e programas eleitorais dos principais partidos. As últimas, em 1997 e 2004, têm ponto de partida, nomeadamente, nos programas eleitorais de PS e PSD nas eleições de 1995 e 2002. Foi preciso chegar a 2022 para assistirmos a este vergonhoso atropelo do que é básico e elementar em democracia.

Também pode haver revisões extraordinárias, como em 1992, 2001 e 2005. São revisões pontuais, limitadas, dirigidas a questões específicas, que poderiam não ser previsíveis de antemão. Por isso, a Constituição diz que, nestes casos, “a Assembleia da República pode (…) assumir em qualquer momento poderes de revisão extraordinária por maioria de quatro quintos dos Deputados em efetividade de funções.” Mas, tratando-se de revisão ordinária, com objecto amplo, em que “a Assembleia da República pode rever a Constituição decorridos cinco anos sobre a data da publicação da última lei de revisão ordinária”, o dever dos partidos é, nas eleições que abrem a legislatura de revisão, anunciarem as suas intenções e ideias. Se apresentam, nos programas e debates eleitorais, propósitos legislativos sobre as matérias mais diversas e propostas de medidas de governo, como entender que, no tocante à Constituição – a lei das leis -, silenciassem intuitos e agissem pela calada?

A Constituição, no artigo 1.º, define: “Portugal é uma República soberana, baseada (…) na vontade popular (…).” Qual é a dúvida? Como pôde a vontade popular, em 2022, exprimir-se de alguma maneira sobre a revisão ordinária da Constituição? Os eleitores foram enganados. 

A Constituição acrescenta no artigo 2.º: “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, (…) na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais (…), visando (…) o aprofundamento da democracia participativa.” Qual é a dúvida? Como é possível violar neste grau o Estado de direito democrático e esmagar, quanto à própria Constituição, a democracia representativa e os mínimos da democracia participativa? Os eleitores foram impedidos de se informar e de exercer os seus direitos.

A Constituição remata no artigo 3.º: “A soberania (…) reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição.” Qual é a dúvida? Todas estas (e outras) expressões, terminando nesta última, mereceriam odes ditirâmbicas sobre a nossa excelência democrática. É lamentável que a soberania esteja a ser furtada por partidos e deputados, agindo nas costas do povo e com desprezo dos cidadãos eleitores.

A democracia apaga-se quando os representantes usurpam o poder que é dos representados e o manejam em superficial legalidade formal, violando a sua legitimidade substancial. A democracia degrada-se quando capturada por grupos que interagem sem aquele mandato democrático cuja transparência é indispensável à saúde do ambiente político. Já aconteceu chegar-se, assim, à ruptura ou à ditadura. O entretanto é um pântano apodrecido de descrença generalizada, porque se destruiu a confiança nas leis e desgastou o crédito das instituições.

 

Advogado

Subscritor do “Manifesto: Por 

Uma Democracia de Qualidade”

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990