Um destes dias, ouvi um político da nova vaga dizer, a sério, que o governo não mais servia, por não pretender aprovar e anunciar medidas que não eram populares.
Confesso que fiquei espantado: com a franqueza e, simultaneamente, com o seu enorme desplante.
Até então, a única queixa do mesmo género – repetida até à exaustão – era a de que faltavam reformas estruturais.
Um amigo meu, dizia-me que, sempre que ouvia tal frase, levava, de imediato, a mão à carteira.
«Estão mexendo no meu bolso» – afirmava, repisando o célebre gag do programa satírico do brasileiro Jô Soares.
Em todo o caso, essa formulação – reformas estruturais – era, ainda assim, menos agressiva e direta do que a, agora, mais explícita, mas, reconheçamos, também mais sincera, afirmação deste novo tipo de políticos.
A verdade, porém, é que os portugueses não estão mesmo nada interessados em que lhes transmitam notícias de mais medidas impopulares.
Já lhes bastou terem suportado os malefícios da primeira crise económica motivada pelas falências na banca internacional e nacional, e de terem, por causa delas, sofrido com os remédios e tratamentos da «troika».
De terem, também, mesmo por justificadas razões, sido confinados no período da pandemia.
De terem, agora, de aguentar, em simultâneo, os efeitos de uma inflação e de uma guerra que quase ninguém quer, mas que alguns pretendem expandir não se sabe até aonde, até quando e, sobretudo por que razão.
Há neste discurso da exigência das medidas impopulares algo de preocupantemente rancoroso e punitivo dos, mesmo assim modestos, resultados alcançados, a nível dos direitos cívicos e sociais, pelos portugueses durante os anos de regime democrático.
Para os que proferem tal discurso, parece ser ainda pouco impopular saber – como recentemente foi noticiado – que, na sua maioria esmagadora, os portugueses viram, nos últimos tempos, os seus rendimentos reduzidos em 4%.
Isto, enquanto os rendimentos dos gestores – e outros amantes de medidas impopulares – foram, apenas, aumentados em 2%.
Elogio, por isso, a coragem do jovem político que, sem nenhum rebuço, foi capaz de dizer ao que vinha, quando estimulava o governo e alguma oposição a que apavorassem ainda mais os portugueses, com a eventualidade de mais algumas e estruturantes medidas impopulares.
Coragem, insensibilidade, novo-riquismo intelectual, ou total irresponsabilidade?
Talvez que, ao autor de tal reivindicação, nunca lhe tenha passado pela cabeça que, em democracia, o exercício da política se deve encaminhar exatamente para a procura de soluções que, em cada momento, conduzam à melhoria das condições de vida dos cidadãos: aí reside a sua razão de ser.
Por outro lado, parece não saber tal personalidade que não é possível, em democracia, distinguir, radicalmente, entre o país, a economia e os cidadãos.
Nem é concebível que – ante a generalizada situação de perda severa dos seus proveitos – se exija da maioria dos portugueses que reduzam sempre, e cada vez mais, os exíguos rendimentos, para que uma pequena, mas bem instalada, parte da sociedade ainda consiga continuar a ver regularmente a sua situação económica melhorada.
Não tem, e nunca teve, por isso, nenhum sentido aquela outra frase do mesmo estilo, proferida, faz anos, por alguém da mesma cultura política, de que «o país está melhor, os portugueses é que não».
Não há, naturalmente, em democracia, a possibilidade de, por via de habilidades discursivas, afirmar que o que é bom para o país e a economia – enquanto conceitos abstratos – não o é para os portugueses em concreto.
Reside, no entanto, nesta assumida rutura cultural entre os discursos de alguns destes políticos novos e a vontade, necessidades e ambições da maioria dos portugueses o risco de a democracia erodir e colapsar.
É, precisamente, por sua causa, que os que defendem soluções antidemocráticas começam a ter, inesperadamente, o auditório que sempre lhes escapou.
Nada mais apelativo, neste contexto, do que – pelo menos nos discursos – procurar reunir de novo, numa única e revitalizada realidade virtual a voz do chefe, o país e os portugueses.
Que alguns se deixem enlevar por tão elaboradas construções das escolas económicas do liberalismo radical, sem que se tenham apercebido que, verdadeiramente, não há – não pode haver – nenhuma diferença entre o que é Portugal e o que são os portugueses parece, no mínimo, caricato.
O problema é que foi precisamente essa ideia fraturante que, de maneira mais suave e com formulações mais digeríveis, dominou, paulatinamente e com raras exceções, o centro da cultura política e social do país.
Afinal, a moda das ideias fraturantes também pode existir fora dos chamados círculos da esquerda radical: com essas, de resto, os radicais liberais também estão de acordo.
Porém, sempre que, sadicamente, se escava essa fratura, os que sofrem com ela mais se distanciam do regime e dos princípios constitucionais que deram uma forma originalmente solidária à democracia portuguesa.
Os portugueses sabem muito bem quais os limites objetivos que, nesta hora, os impedem de melhorar o seu destino: de melhorarem a economia e Portugal.
Conhecem, igualmente, quais a razões e quais as responsabilidades institucionais e pessoais dos que contribuíram para que a situação do país – logo, a sua situação – esteja como está.
Não precisam, por isso, que, a todas as horas do dia e da noite, os massacrem com casos graves, mas, mesmo assim, menores, relativamente à importância de muitas das opções político-económicas – reformas estruturais – que condicionaram o já de si difícil caminho para a redenção do país: para a redenção dos portugueses.
Por tal motivo se exige que os democratas – todos os democratas – através do seu exemplo, mais do que por via das suas palavras, deixem de reproduzir e agravar a falaciosa dicotomia entre a melhoria da situação do país e o agravamento da condição dos seus cidadãos.
A melhoria da situação económica do país não pode continuar a identificar-se, apenas, com a melhoria da situação económica dos gestores das suas mais emblemáticas empresas.
Se nisso insistirem, os portugueses podem ser tentados, pela ação dos falsos profetas e do discurso da raiva que eles repetem até à exaustão, a construir um outro país.
Um país que acreditam poder unificar – agora pela força – a ideia de Portugal com a falaciosa identidade dos portugueses de gema.
Raras são, com efeito, as vozes dos novos políticos – e, o que parece ser o mesmo, dos novos gestores – que ainda levam a sério os desígnios da Constituição.
Com isso, começa a falecer, no discurso político dominante, o princípio da esperança que sempre distinguiu e animou os democratas e de que os portugueses tanto hoje necessitam, para aguentar e superar as dificuldades presentes.
Em muitos casos, isso sucede, porque, na verdade, muitas das vozes dos responsáveis pela gestão de áreas relevantes do país perderam, por culpa própria, autoridade moral e política para tanto.
Noutros, porque, propositadamente, não são propiciados câmaras e microfones aos que se dispõem a elevar o nível do discurso político, pois, assim, muitas dos sofismas que encobrem a crua realidade deste nosso país seriam desvendados.
Noutros, ainda, porque a estética da sua intervenção – mesmo que rigorosa e verdadeira – deixou, quando ultrapassada a barreira do silêncio que lhe é imposta, de ser inteligível pelas novas gerações de portugueses e suficientemente mobilizadora dos que antes a escutavam com esperança.
Se, mesmo que faseadamente, não se criarem, desde já, condições e resultados palpáveis para que, com renovada esperança, os portugueses irem alcançando, seguidamente, os mais ambiciosos desígnios constitucionais, os uivos dos lobos far-se-ão ouvir de novo, agora mais perto, com mais força e mais despudor.