As Mil e Uma Noites do sultanato lusitano


A história do corcundinha cujos protagonistas, na iminência do castigo de um inocente, voluntariamente confessaram os seus atos, teve então um desfecho baseado em novos e surpreendentes enredos e para saber o seu desenlace aconselho a ler os capítulos seguintes das Mil e Uma Noites, uma maravilha, ou esperar por uma próxima crónica. 


E já tinham passado mais de 500 noites quando Xerazade contou a história do corcundinha, jogral de um sultão dos confins da Tartária. 

Era uma vez um alfaiate que encontrou um corcundinha a cantar e o levou a sua casa para a sua mulher também o ouvir. Convidado para cear, o corcundinha engasgou-se com uma espinha de peixe, sufocou e morreu. Temendo ser acusado pela sua morte, o alfaiate transportou o corpo ao consultório de um médico judeu, dizendo que se tratava de alguém gravemente enfermo e, enquanto a empregada chamava o médico, arrastou o corpo para as escadas sem luz. Ao descer, o médico tropeçou no corpo, rebolando ambos pelas escadas, e viu que o doente tinha morrido na queda. Com temor acrescido pela sua condição de judeu, levou o cadáver para o telhado, fazendo-o escorregar, preso a uma corda, pela chaminé do vizinho, despenseiro muçulmano. Julgando este tratar-se de um ladrão, agrediu-o à paulada ao ponto de ver que o tinha assassinado. E enquanto já pensava no castigo, pegou no morto e arranjou maneira de o pôr de pé na esquina de uma rua, encostado à parede. Passou então um mercador cristão que inadvertidamente tocou no corpo fazendo-o cair sobre si. Julgando ser atacado, esmurrou o sujeito até que o guarda do bairro apareceu e procurou levantar o homem caído. Vendo que estava morto, entregou o cristão ao juiz que logo o condenou à forca.  

Estava já o mercador com a corda ao pescoço, quando apareceu o médico a gritar que o criminoso era ele, pelo que o juiz libertou o mercador e condenou o médico. Estava o médico a ser dependurado e apareceu o despenseiro a confessar a sua culpa, ao que o juiz ordenou que fosse ele o executado. Fazia já o carrasco os preparativos para a execução, apareceu o alfaiate a contar a sua história, passando a ser ele o homicida.

O conto fez-me lembrar histórias passadas noutro sultanato dos confins da Europa, em que, em vez de uma Xerazade a contar histórias ao sultão para defender a cabeça, era o sultão quem contava histórias ao povo para preservar a sua, procurando esconder os escândalos dos seus vizires, xeiques e emires, e até os seus próprios, nunca confessando responsabilidades e endossando as espinhas e os espinhos para o vizinho de ocasião.  

Entediava-se já o povo com as histórias do sultão e começou a prestar atenção a outras, mais reais, passadas no seu próprio palácio, como a forma distraída com que recrutava colaboradores com manifesto jeito para “hackear” a password da caverna do depauperado tesouro que fora de Alibabá, ou a tentativa de comprometer o Califa na desatenção.   

Desentendimento insanável na companhia dos tapetes voadores levou ao descaminho de uma xeica, discretamente entregue ao vizir que tutelava a companhia, forma de ter o justo suplemento devido pela coagida cedência da função. Um oneroso fardo para o vizir, que logo a fez entrar pelo telhado da empresa que assegurava o tráfico dos tapetes voadores, enquanto a recomendava ao seu colega vizir das finanças como guardiã do tesouro do sultão. 

Lembrou-se alguém de questionar quem autorizara as condições em que a xeica fora extraviada da sua atapetada função. Pressentindo grossa espinha na garganta, invocaram então os vizires e sub-vizires histórias de ignorância e esquecimento, de passa-culpas e endosso de responsabilidades, perguntando mesmo à entidade de regulação dos bazares e à empresa da companhia se teriam desempenhado algum papel no evento. 

Estava o cristão para ser enforcado, quando o sultão soube que a vítima tinha sido o seu jogral e chamou todos ao palácio. A história do corcundinha cujos protagonistas, na iminência do castigo de um inocente, voluntariamente confessaram os seus atos, teve então um desfecho baseado em novos e surpreendentes enredos e para saber o seu desenlace aconselho a ler os capítulos seguintes das Mil e Uma Noites, uma maravilha, ou esperar por uma próxima crónica. 

Mais fácil será futurar a sorte dos vizires lusitanos. É que os critérios da ética republicana são os que a retórica recria ou faz esquecer. E até pode calhar que antes de passarem mil e uma noites se tornem novamente vizires, ou ascendam mesmo ao sultanato. 

Economista e Gestor
Subscritor do Manifesto Por 
uma Democracia de Qualidade 
pcardao@gmail.com

As Mil e Uma Noites do sultanato lusitano


A história do corcundinha cujos protagonistas, na iminência do castigo de um inocente, voluntariamente confessaram os seus atos, teve então um desfecho baseado em novos e surpreendentes enredos e para saber o seu desenlace aconselho a ler os capítulos seguintes das Mil e Uma Noites, uma maravilha, ou esperar por uma próxima crónica. 


E já tinham passado mais de 500 noites quando Xerazade contou a história do corcundinha, jogral de um sultão dos confins da Tartária. 

Era uma vez um alfaiate que encontrou um corcundinha a cantar e o levou a sua casa para a sua mulher também o ouvir. Convidado para cear, o corcundinha engasgou-se com uma espinha de peixe, sufocou e morreu. Temendo ser acusado pela sua morte, o alfaiate transportou o corpo ao consultório de um médico judeu, dizendo que se tratava de alguém gravemente enfermo e, enquanto a empregada chamava o médico, arrastou o corpo para as escadas sem luz. Ao descer, o médico tropeçou no corpo, rebolando ambos pelas escadas, e viu que o doente tinha morrido na queda. Com temor acrescido pela sua condição de judeu, levou o cadáver para o telhado, fazendo-o escorregar, preso a uma corda, pela chaminé do vizinho, despenseiro muçulmano. Julgando este tratar-se de um ladrão, agrediu-o à paulada ao ponto de ver que o tinha assassinado. E enquanto já pensava no castigo, pegou no morto e arranjou maneira de o pôr de pé na esquina de uma rua, encostado à parede. Passou então um mercador cristão que inadvertidamente tocou no corpo fazendo-o cair sobre si. Julgando ser atacado, esmurrou o sujeito até que o guarda do bairro apareceu e procurou levantar o homem caído. Vendo que estava morto, entregou o cristão ao juiz que logo o condenou à forca.  

Estava já o mercador com a corda ao pescoço, quando apareceu o médico a gritar que o criminoso era ele, pelo que o juiz libertou o mercador e condenou o médico. Estava o médico a ser dependurado e apareceu o despenseiro a confessar a sua culpa, ao que o juiz ordenou que fosse ele o executado. Fazia já o carrasco os preparativos para a execução, apareceu o alfaiate a contar a sua história, passando a ser ele o homicida.

O conto fez-me lembrar histórias passadas noutro sultanato dos confins da Europa, em que, em vez de uma Xerazade a contar histórias ao sultão para defender a cabeça, era o sultão quem contava histórias ao povo para preservar a sua, procurando esconder os escândalos dos seus vizires, xeiques e emires, e até os seus próprios, nunca confessando responsabilidades e endossando as espinhas e os espinhos para o vizinho de ocasião.  

Entediava-se já o povo com as histórias do sultão e começou a prestar atenção a outras, mais reais, passadas no seu próprio palácio, como a forma distraída com que recrutava colaboradores com manifesto jeito para “hackear” a password da caverna do depauperado tesouro que fora de Alibabá, ou a tentativa de comprometer o Califa na desatenção.   

Desentendimento insanável na companhia dos tapetes voadores levou ao descaminho de uma xeica, discretamente entregue ao vizir que tutelava a companhia, forma de ter o justo suplemento devido pela coagida cedência da função. Um oneroso fardo para o vizir, que logo a fez entrar pelo telhado da empresa que assegurava o tráfico dos tapetes voadores, enquanto a recomendava ao seu colega vizir das finanças como guardiã do tesouro do sultão. 

Lembrou-se alguém de questionar quem autorizara as condições em que a xeica fora extraviada da sua atapetada função. Pressentindo grossa espinha na garganta, invocaram então os vizires e sub-vizires histórias de ignorância e esquecimento, de passa-culpas e endosso de responsabilidades, perguntando mesmo à entidade de regulação dos bazares e à empresa da companhia se teriam desempenhado algum papel no evento. 

Estava o cristão para ser enforcado, quando o sultão soube que a vítima tinha sido o seu jogral e chamou todos ao palácio. A história do corcundinha cujos protagonistas, na iminência do castigo de um inocente, voluntariamente confessaram os seus atos, teve então um desfecho baseado em novos e surpreendentes enredos e para saber o seu desenlace aconselho a ler os capítulos seguintes das Mil e Uma Noites, uma maravilha, ou esperar por uma próxima crónica. 

Mais fácil será futurar a sorte dos vizires lusitanos. É que os critérios da ética republicana são os que a retórica recria ou faz esquecer. E até pode calhar que antes de passarem mil e uma noites se tornem novamente vizires, ou ascendam mesmo ao sultanato. 

Economista e Gestor
Subscritor do Manifesto Por 
uma Democracia de Qualidade 
pcardao@gmail.com